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segunda-feira, 4 de janeiro de 2016

O verme- Parte I






          O ano começa com novidades por aqui. Apresento-lhes, em primeira mão, um dos novos contos a serem incluídos em meu próximo livro, que, aliás,demorará um pouco pra sair. Aos meus fãs e críticos ferrenhos, aqui vai, pois, uma incontestável prova de que continuo na ativa, produzindo um pouco menos, diga-se a verdade.
    Faço, no entanto, uma séria advertência aos leitores que aventurarem-se nos próximos parágrafos: Não leiam durante as refeições, por favor.

                          



                                                       O verme


            Existem diversos tipos de comportamentos, que correspondem às diferentes fases de crescimento e desenvolvimento corporal humano, estando, cada uma delas, associadas a idade do indivíduo, ao seu nível de experiência e de maturidade. Na infância, a propósito disso, estamos sujeitos, inevitavelmente, a uma série de enfermidades próprias do nosso organismo ainda em formação. Entre estas, encontramos a Oxiuríase, doença causada por um verme cientificamente chamado Enterobus vermicularis, bichinho quatro ou cinco vezes menor do que uma minhoca, que provoca incômoda coceira na região retal. A título de curiosidade apenas, a tal coceira ocorre devido a ação da fêmea,  que utiliza as paredes do ânus para depositar os seus ovos.
          Em condições normais, no entanto, quando o ciclo evolutivo do bicho homem segue o seu curso esperado, chegamos à idade adulta livres de tais inconvenientes. Principalmente quando adotamos saudáveis hábitos de alimentação e higiene corporal, essa e outras enfermidades detestáveis batem na nossa porta mas não entram.
          Encontramos certos indivíduos, contudo, que atraem pra si, através do que comem, falam e pensam, patologias que nem sempre estão aptos à enfrentarem. Comedores insaciáveis de carne, que defecam sem lavarem as mãos, pessoas que com os dedos retiram secreções do nariz e em seguida seguram crianças no colo, são, sem sombra de dúvida, por si só, nojentas. Infelizmente, para gregos e troianos, chimangos e maragatos, colorados e gremistas, homenzinhos assim existem aos milhares e um deles, em particular, merece o foco investigativo desse breve relato. Por mais que duvidem ou classifiquem a minha narrativa como mera e barata literatura fantástica, o conto aqui apresentado apoia-se em relatos fidedignos de um amigo íntimo da própria vítima.
          Ítalo era um clássico e socialmente respeitado pai de família, com dois filhos legítimos e um fora do casamento, segredo este que nem a sua própria "nega véia" (esposa) sabia. Aliás, não foram poucas as coisas que a santa e submissa Inácia ignorara durante os vinte anos em que coabitara com o ex vigilante da empresa TRUDER, que prosperara na vida após assumir cargo no sindicato da categoria. As ambições políticas do homem, com efeito, eram grandes. O partido, já há algum tempo vinha lhe cobrando uma candidatura à Câmara Municipal de Araçá.
          O tal sindicalista personificava o protótipo do cara que se deu bem na vida, cheio de segredos, vícios, taras e cacuetes. Entre esses últimos, destacava-se um tremor e contração da face direita, que costumava acontecer inesperadamente, sempre que ele permanecia um longo tempo em silêncio. Talvez fosse algum sinal de nervosismo ou impaciência em relação a algo, ninguém nunca soube.
          Era corpulento, mas não musculoso. Os seu colegas mais achegados, com especial carinho, batizaram-no de Panela de Banha, visto a grande quantidade de massa gordurosa acumulada ao longo do seu tronco, membros e pescoço. Panela de Banha, apesar disso, era um garanhão atrevido e galanteador com as mulheres que desejava, manifestando especial predileção pelas mais novinhas. Algumas delas, em concordância, reclamaram posteriormente do seu mau hálito, chulé e odor acre das axilas, que chegavam a estontear raparigas em quartos excessivamente fechados de motéis. E já que o assunto descambou pra falta de pudor e asseio corporal, cumpre-me acrescentar que um segundo alcunha fora criado em sua homenagem, este, inspirado num outro comportamento seu: Peidão. Faça-se justiça, Ítalo só soltava gazes na presença de homens, em sua maioria colegas de serviço. Segundo relatos, costumava contorcer-se teatralmente toda vez que eliminava os seus mais barulhentos e pútridos peidos, que deixavam irrespiráveis até mesmo ambientes abertos, ao ar livre. Apenas para rapidamente mudarmos de foco, numa última alegoria ilustrativa, o cheiro dos seus puns aproximava-se do odor próprio ao feijão azedo misturado à ovo podre.
          Usava pesados óculos, daqueles fundo de garrafa, que ficavam totalmente embaçados e gordurentos quando ele, ofegante, discutia com alguém ou, por algum outro motivo, ficava tenso. Trazia cabelo e barba impecavelmente aparados, orgulhando-se de não ter "jeito de vagabundo maconheiro." Em algumas ocasiões, quando lançava-se a paqueras amorosas extraconjugais, vestia-se com finas camisetas de grife e tomava banhos de desodorante para tapear a sua natural catinga, que parecia embrenhada à  pele.
          Ítalo possuía visões curiosas de vida. Não era muito adepto da caridade e quando a praticava, fazia-o com excessivo alarde, para convencer os Araçazenzes, possíveis eleitores, o quanto era generoso. Nos jornalecos da cidade, abundavam fotos dele a entregar sacolões em creches, afagando mãos de idosos no asilo e até mesmo vestido de papai noel, dando presentes na tradicional festa de final de ano da Escola Estadual de Ensino Fundamental Otomar Vivian, na zona rural do município. Já em casa, por outro lado, sempre que algum produto manufaturado expirava o prazo de validade, ou alguma comida estragava na geladeira, ele mandava, sem exceção, dar pros "negrinhos dos fundo". Os tais pretinhos em questão, moravam e viviam em condições precárias junto aos pais, ambos papeleiros, dentro de um pequeno barraco onde amontoavam-se seis irmãos mais o casal. Certa vez, de acordo com informações do amigo Celso, uma panelada de linguiça ardida e arroz encaruchado, gentilmente doado à família afrodescendente, fez o pequenino Estephan, de apenas três aninhos, parar na emergência pediátrica do hospital local, esvaindo-se em vômitos e diarreia crônica, desidratado pela excessiva perda de líquido em seu jovem e magro corpo. O gurizinho ficou em estado de observação, por dois dias, na U.T.I. e por muito pouco não matou a sua mães de desgosto e sentimentos de culpa.
           O grau de apreço e consideração que o tal vigilante sentia pelos animais tornou-se indiscutivelmente evidente no episódio do cachorro sarnento da família. Skip, um cusco de dois anos, presente da cumadre Chica à sua filha menor, a Biba, contraiu sarna e começou a agonizar de tanta coceira, sangramento e perda de pêlo. Um dia, em conversa privada com a esposa, prometeu uma solução definitiva para o drama que começava a entristecer e causar constrangimento à família.

-- Dêxa qui eu vô dá um sumiço nêssi cachorro... Já té sei onde vô largá êli...
-- Mas negro... paréci qui passá óleo queimado no pêlo do bichinho resolve.... Dêxa êli novinho em folha...
-- Qui óleo queimado o quê... Dêxa cumigo.

           Na manhã seguinte, acordou-se bem mais cedo que o de costume, principalmente pra não despertar desconfianças na pequena Biba. Calçou as botas de couro cru, jogou água no rosto, mordiscou um pedaço de mursilha preta e um naco de torresmo que estavam em tigelas de louça na mesa, sorveu apenas dois goles de café preto e foi buscar, no galpão de ferramentas, uma coleira com corrente. Em seguida, amigavelmente, assoviou, á intervalos curtos e sincronizados, para Skip, que mesmo adoentado demonstrou surpreendente alegria e gratidão ao ser solicitado para um passeio. O cachorrinho estava acostumado a caminhar pelas redondezas com o dono, que sempre tentara desempenhar frente à filha um papel de bom pai, que brinca e diverte-se como criança. Foi por isso, provavelmente, que o cusco nem sequer desconfiou que naquele instante havia algo de diferente nas intenções daquele cara, entregando-se inocentemente à coleira, abanando freneticamente o rabinho já pelado e castigado pela sarna. Andaram uma, duas, três, quatro, cinco, seis quadras e chegaram à um matagal próximo à um arroio que fazia divisa com o Sítio do Almeida. O animalzinho, ofegante pela longa distância percorrida, em condições tão debilitadas de saúde, sentou-se ao pé de um arbusto, dando oportunidade para Ítalo esconder-se sem ser notado, atrás de um cinamomo. Skip, alheio ao eminente perigo de abandono, passou a coçar-se, já quase sem forças para tal, oferecendo a definitiva oportunidade de fuga em disparada ao homem, que retornou à passos rápidos para casa. Olhava de tempos em tempos pra trás, certificando-se que não estava, de fato, sendo seguido. Fazia um rigoroso frio naquela manhã do inverno gaúcho e o bichinho enrolou o corpo como pôde, para esperar relativamente aquecido o destino não muito promissor que lhe aguardava nas próximas horas. Faltava-lhe energia para qualquer tentativa de locomoção. Nunca mais foi visto por alguém da família ou vizinhança.



                                                   (continua )


 

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