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sábado, 25 de junho de 2016

São Leopoldo e o cânhamo em solo gaúcho



Hoje cultivar cannabis sativa dá cadeia, mas essa planta foi determinante para o maior meio de transporte e comércio da humanidade por milênios: a navegação. Foi com a fibra mui resistente do cânhamo que se produziu boa parte das velas e cordas dos navios antigos. Em meio às aventuras responsáveis pelos ditos Descobrimentos, Portugal torrou fortunas comprando essa fibra que chamavam de linho-cânhamo. Para diminuir a importação e economizar sangrentas moedas de ouro, a coroa portuguesa optou por investir no plantio de cannabis a partir do século XVII. Em 1617, o rei Felipe II criou a Feitoria do linho-cânhamo da Vila de Moncorvo. Em 1625, Felipe III criou mais duas: a Real Feitoria do Linho-cânhamo de Coimbra e a da Vila de Santarém. As três feitorias transformaram muita maconha em fibra têxtil antes de serem fechadas em 25\02\1771 pelo Marquês do Pombal.

Portugal também plantou cânhamo no Brasil. Em 1747, o Capitão-general Gomes Freire de Andrades fez a primeira tentativa oficial na Ilha de Santa Catarina (atual Florianópolis), mas lá o cultivo não vingou. Então, em 06\10\1764, o Vice-Rei do Brasil, Antônio Alvares da Cunha, pediu ao governador do Rio Grande de São Pedro (hoje, Rio Grande do Sul) que ajudasse Antônio Gonçalves de Pereira Lima, negociante que queria plantar Cannabis e manufaturar linho-cânhamo por aqui. Antônio Gonçalves teve sucesso em 1766 e, segundo o historiador Monsenhor Pizarro, o resultado foram 38 arrobas de linho (cerca de 570 Kg), além de 80 arráteis de estopa (quase 40 Kg) e muitas sementes.


Essa boa experiência, aliada à necessidade portuguesa de substituir importações e ocupar o sul do Brasil ameaçado pela Espanha, foi fundamental para que, em 10\10\1783, o Vice-Rei, Luis de Vasconcelos e Souza, fundasse a real Feitoria do Linho-cânhamo do Rincão do Canguçu, que após cinco anos seria transferida para onde depois surgiu São Leopoldo.


Matéria-Prima estratégica



Aos 80 anos, o coronel Claudio Moreira Bento é um dos maiores nomes vivos da historiografia militar brasileira: publicou 74 obras sobre o tema, dirigiu o Arquivo Histórico do Exército e hoje preside a Academia de História Militar Terrestre do Brasil, o instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul e a Academia Canguçuense de História. Natural de Canguçu, passou anos reconstituindo a história de sua terra e lamenta: “Como toda a história de Canguçu, (a Feitoria) foi esquecida”. Um dos seus feitos foi ter descoberto as ruínas da manufatura em 1972: ” Eu era membro da comissão de História do Exército, tava de férias, fui lá e me deparei com as ruínas do sobrado no meio do mato crescido”. O militar achou o local seguindo um mapa feito pelo Capitão de Infantaria Alexandre Portelli em 1783. O documento está na biblioteca Nacional e mostra a Feitoria no topo da Serra dos Tapes, entre o arroio corrente e o atual Arroio Turuçu (ou Arroio Grande).
                                                 


Segundo Claudio, o linho-cânhamo “era como o petróleo hoje, um item essencial para a navegação”. Por isso a Feitoria sempre foi um empreendimento grande. Para tocá-la o Vice-Rei designou dez homens livres assalariados: quatro feitores, escriturário, cirurgião, capelão, almoxarife e os administradores, o primeiro e o segundo Inspetor. O trabalho braçal ficou para 40 escravos trazidos do Rio de Janeiro – grupo que logo cresceu, pois em menos de três anos nasceram 17 crianças negras no local.


Durante os cinco anos de funcionamento em Canguçu, a Feitoria do Linho-Cânhamo enviou à Coroa 1380 Kg de estopa e 8400 Kg de linho. Porém, relatos justificam sua transferência devido à infertilidade do solo. O coronel Claudio questiona isso, crendo que a real razão foi a ameaça espanhola: “Estava indefinido o limite entre Espanha e Portugal, havia predisposição para uma guerra. Foi uma medida para proteger aquele estabelecimento”. Alguns historiadores especulam que a mudança tenha levado em conta o interesse econômico de particulares, mas o fato é que em 25\09\1978 a Feitoria foi levada para o Faxinal do Courita, às margens do Rio dos Sinos, a uns 30 Km de Porto Alegre.

                                                       



Quando chegou onde depois seria São Leopoldo, a Real Feitoria do Linho-Cânhamo contava com 135 negros cativos, soma enorme para a época (era difícil alguém rico ter 20 deles). A historiadora Renata Finckler pesquisou os batismos e a relação de compadrio entre os negros da Feitoria e afirma que “havia uma realidade bem singular” no local: “Os escravos estavam ali sem um dono. O dono deles era uma entidade, o Rei, mas que nunca aparecia. Tinha um administrador, que muitas vezes não residia na Feitoria e os feitores”.


Isso permitiu uma certa autonomia rara para a escravidão. No início do século XIX, já eram 240 negros da Feitoria e sua mão-de-obra subaproveitada era alugada para diversos fins em Porto Alegre. Assim, muitos deles andavam quase livremente pela região. Com o tempo, formou-se uma rede de comércio informal onde os negros vendiam o excedente do que produziam para si mesmos. “Os administradores reclamavam muito que os escravos estavam mais preocupados com suas próprias roças do que com a lavoura do cânhamo e que essa produção era vendida em Porto Alegre”, conta a historiadora. Não se sabe ao certo por que, mas o Brigadeiro Rafael Pinto Bandeira (que assumiu o governo gaúcho em 1784) proibiu que os escravos reais fossem açoitados na Feitoria. A sorte dos negros complicou os feitores, pois boa parte do incentivo ao trabalho escravo obviamente vinha dos açoites. Isso só mudou em 1801, quando foi nomeado um novo inspetor disposto a acabar com tanta liberdade, o padre Antônio Gonçalves Cruz.


Esse clérigo havia sido capelão da Feitoria e sua indisposição com os negros era feroz. Em 1803, os escravos fizeram um requerimento ao governador se queixando do padre e em seguida começaram as revoltas. Em carta desse período, o Pe. Cruz reclama que não dormia a três dias por causa dos “motins, bailes e fandangos” dos negros. “Eles tinham grande força, os escravos colocavam a ordem tanto na produção quanto na vida social ali dentro”, afirma Renata. Não há documento que comprove, mas muitos historiadores supõem que esses conflitos tenham causado o assassinato do padre, relatado em 14\12\1814 ao governador da época.

Em 1822, houve mais violência. Conforme carta do Inspetor José Thomaz de Lima, os escravos roubavam gado diariamente da Feitoria e, para cessar isso, ele mandou “alguns soldados prenderem aqueles que eram os principais roubadores”. Mal sabia José que seu ato provocaria um levante: ao invés de se entregarem, os negros foram às senzalas e voltaram armados e furiosos a ponto de expulsarem os soldados apavorados. O Inspetor narra ainda que, após tal fiasco, ele juntou todos os seus homens e foi em pessoa prender os rebelados. Porém: “Estando o partido mais engrossado, e até instigado pelas mulheres que gritavam que nos matassem, (os negros) saíram ao nosso encontro armados e dirigindo-me ameaças e injúrias, nos atacaram fortemente, levando eu uma bordoada em um braço. Conhecendo a desproporção e vendo  que se ia tornando mais sério o caso, retirei-me com o Destacamento”, assumiu o Inspetor derrotado. Ele foi o último administrador da Feitoria do Linho-Cânhamo, que fechou em 1824.


Uma História Abandonada


A iniciativa estatal de cultivar Cannabis sativa no RS para produzir fibra têxtil durou 41 anos, mas é tida pela historiografia geral como um fracasso. O linho-Cânhamo enviado à Coroa nunca foi suficiente a ponto de compensar o investimento feito. Houve várias causas, como solos impróprios, erros administrativos e a instabilidade política fruto da guerra com a Espanha. Mas Renata Finkler se alia à tese do pesquisador Maximiliano Menz: “Ele acredita que houve problemas, mas que a Feitoria provavelmente acabou por causa dos escravos terem uma autonomia relativa”. Segundo pesquisas de Menz, os negros souberam usar as falhas estruturais a seu favor, inviabilizando a monocultura do cânhamo gaúcho.

A Feitoria foi desativada em março e, em 25\07\1824, sua sede recebeu os primeiros imigrantes alemães que chegaram no Brasil. Por causa disso, essa é a data da fundação de São Leopoldo, cidade que, como Canguçu, foi erguida ao redor de um cultivo estatal de maconha. A recente repressão à Cannabis transformou o fato em um tabu que adquiriu contornos racistas em um reduto alemão: “São Leopoldo por muito negou seu passado negro”, critica Renata.





A Real Feitoria do Linho-Cânhamo do Faxinal do Courita ainda está de pé, na Av. Feitoria número 3249, no bairro Feitoria, mas hoje se chama Casa do Imigrante. Desde 1824, a construção esteve abandonada, pertenceu à igreja Evangélica de Confissão Luterana e foi até escola municipal. Na década de 1940, a prefeitura comprou-a dos luteranos e reformou-a toda, dando à casa um estilo enxaimel (construção típica alemã) que não existia antes disso. O local virou museu em 1984, conforme Márcio Linck, historiador e diretor do Museu Histórico Visconde de São Leopoldo, entidade para a qual o município repassou a propriedade dessa casa histórica.

“O negro foi muito esquecido, reconhece Márcio, mas ele garante que “está se tentando revalorizar os demais elementos étnicos que compuseram a história de São Leopoldo”. Para o historiador, “a Feitoria teve o seu papel”, ele inclusive questiona por que o cânhamo foi abandonado enquanto matéria-prima: “As autoridades ficam constrangidas em defender projetos que descriminalizem o uso da maconha. É interessante. Por que não se utiliza ela para fazer corda novamente? Tudo é possível”. Mais possível do que parece, pois a resolução N94 da Câmara de comércio Exterior do Brasil, publicada no Diário Oficial da União em 12\12\2011, alterou a Tarifa Externa Comum do Mercosul, taxa que incide sobre muitos produtos, dentre eles, o cânhamo (cannabis sativa l.), em bruto ou trabalhado, mas não fiado” e “estopas e desperdícios de cânhamo (incluindo os desperdícios de fios e fiapos)” – prova de que alguma regulamentação existe até hoje.


Quando a Feitoria fechou de vez, seus 328 escravos deveriam ter sido mandados de volta para a corte, mas a existência de comunidades quilombolas em Canguçu e São Leopoldo indica que nem todos tenham partido. Renata Finckler crê que esses grupos “sejam remanescentes dos escravos da Feitoria”: “Provavelmente alguma leva ficou. Não se sabe pra onde foram ou o que fizeram, mas seus descendentes estão por ai até hoje”. Ironicamente, o bairro Feitoria é um dos mais violentos de São Leopoldo e lá é possível ver jovens negros revendendo maconha trazida do Paraguai pelo crime organizado. Seriam eles parentes dos escravos que foram obrigados a plantar Cannabis sativa no RS?









Fonte: coletivodar.org

3 comentários:

Elvira Carvalho disse...

Um texto muito interessante. Até à pouco tempo eu desconhecia o que se podia fazer com o cânhamo. Depois vi um vídeo de uma ponte pedonal creio que no Perú, e fui pesquisar sobre o assunto.
Um abraço

Rafa disse...

Muito bom, informativo e completo.

Unknown disse...

Chegaste a ver sobre o biocombustível ...