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sábado, 23 de maio de 2020

Ana Terra- Érico Veríssimo



          Vieram outros dias e outras noites. E nunca mais o nome de Pedro foi pronunciado naquela estância. O inverno entrou e houve horas, longas horas em que o minuano arrepelou as macegas e cortou o ar como uma navalha. Vieram as chuvas, que prenderam na cabana os cinco membros da família, que ás vezes se reuniam junto do fogo, onde os homens ficavam a falar da lavoura, do gado, do tempo. Para Maneco Terra a filha estava morta e enterrada: não tomava conhecimento de sua presença naquela casa. Antonio e Horácio tratavam Ana com uma aspereza meio constrangida, que lhes vinha duma consciência culpada. Ao lhe dirigirem a palavra, não olhavam para ela de frente, e ficavam desconcertados quando, para lhe evitar os olhos, baixavam a cabeça e davam com o ventre crescido da irmã.
          Quando não chovia Ana descia para a sanga. Agora levava duas cargas: a cesta de roupa e o filho, que cada vez lhe pesava mais. Muitas vezes pela manhã seus pés pisavam a geada do caminho. E na água gelada seus dedos ficavam roxos e entanguidos.  Durante todo o tempo que passava junto da sanga, a lembrança de Pedro permanecia com ela.
          Um dia, olhando o bordado branco que a espuma do sabão fazia na água, teve a sensação de que Pedro nunca tinha existido e que tudo o que acontecera não passara dum pesadelo. Mas nesse mesmo instante o filho começou a mexer-se em suas entranhas e ela passou a brincar com uma idéia que dali por diante lhe daria a coragem necessária para enfrentar os momentos duros que estavam para vir. Ela trazia Pedro dentro de si. Pedro ia nascer de novo e portanto tudo estava bem e o mundo no fim de contas não era tão mau. Voltou para casa exaltada...
          Mas num outro dia foi tomada de profunda melancolia e escondeu-se para chorar. Ficou na frente da casa, olhando o horizonte e esperando que longe surgisse o vulto dum cavaleiro -- Pedro voltando para casa; porque ele não tinha morrido: conseguira fugir e agora vinha buscar a mulher e o filho. Um entardecer sentiu o repentino desejo de montar a cavalo e sair pelo campo em busca do cadáver de seu homem: levaria uma pá, revolveria a terra ao redor de todas as árvores solitárias que encontrasse... Mas montar a cavalo no estado em que se encontrava? Loucura. Seu ventre estava cada vez maior. E Ana notava que quanto mais ele crescia, mais aumentava a irritação dos irmãos. O pai, esse nunca olhava para ela nem lhe dirigia a menor palavra. Comia em silêncio, de olhos baixos, pigarreando de quando em quando, conversando com os filhos ou pedindo uma ou outra coisa à mulher.


sábado, 16 de maio de 2020

O Iluminado- J.C. Bridon


           Tinha caminhado já um bom trecho de mato fechado, quando novamente, meu cão empinou as orelhas e partiu em desabalada carreira em uma direção contrária àquela que me dirigia.
        Outra vez, pensei já meio contrariado. Porém, logo me veio à mente, que cada vez que assim procedia, algo maravilhoso acontecia, por esse motivo, fiz de conta que se tratava de algum pequeno animal e prossegui na caminhada.
          Andei bem uns bons metros, quando ouvi um latido conhecido que parecia vir de algum ponto à frente. Não me preocupei com aquilo, se bem que meu coração parecia querer saltar pela boca, e continuei andando calmamente.
        Estava disposto a primeiro fazer o que me havia proposto, pois se começasse a parar por motivos desconhecidos, seria muito difícil conseguir madeira suficiente para passar a estação das chuvas, pois aquela altura as nuvens que pareciam tão longe, com o vento se aproximaram rápido, em um prenúncio de chuva eminente.
       Alcancei o lugar que desejava e comecei a me preparar para derrubar algumas árvores e o fiz tão rapidamente que até eu mesmo estranhei, mas, como estava com um pouco de pressa, creditei a ela a ligeireza.
     Cortei o necessário para passar toda a temporada e como teria de fazer algumas viagens até que tudo estivesse recolhido e bem guardado, apressei-me para terminar antes que os primeiros pingos de chuva se fizessem presentes.
      Levei um bom tempo e devo ter gasto bastante energia, pois tão logo adentrei a cabana e me atirei com tudo na cadeira de balanço e adormeci um pouco. Acordei às escuras, sinal de que havia anoitecido, enquanto dormia.
    Tomei um banho quente e gostoso. Como estava com muita fome, comi e atirei-me na cama. Dormi até o corpo reclamar que já estava na hora de levantar, se bem que o frio agora se fazia mais presente e as chuvas caíam feito corredeiras.
      Minha vontade talvez fosse ficar na cama mais um pouco, porém tinha muitas coisas a fazer, como recolher ao rancho as ferramentas, carrinhos e tudo o mais e ainda teria de consertar o telhado do mesmo, pois vivia cheio de goteiras e aquilo não era muito bom.
      Em todo o tempo de chuvas, pouco havia para fazer lá fora, por isso passei a maior parte do tempo escrevendo e colocando minhas coisas em ordem. Aquilo me fez um bem enorme, pois revi poemas e textos que havia escrito já há algum tempo e que agora me pareciam bem mais atuais, tanto é que os deixei à mão, caso precisasse deles neste novo romance.
     Durante toda a temporada de chuvas, eu ouvia sons estranhos e esquisitos, vindos lá de fora, principalmente à noite, porém não me atrevia a sair para precisar o que era.
      Meu fiel cão permanecia comigo a maior parte do tempo, e de vez em quando, latia em frente a porta, sinal de que desejava sair. Prontamente, abria a porta e ele desaparecia em desabalada carreira.

     Creio que ele conhecia a floresta de trás para frente, como se costuma dizer, inclusive conhecia lugares que eu não havia estado ainda, pois quando retornava mostrava-se alegre, balançando a cauda em sinal de satisfação. Os dias foram passando, os céus a cada manhã se tornavam diferentes, menos carrancudos, prenúncio de breve mudança.

                                                                     " O Iluminado" J.C. Brindon- Editora Ísis
                                                                        1ª edição, 2012.  

sexta-feira, 8 de maio de 2020

Iracema- José de Alencar


A primeira cena antecipa o fim do livro, o que reforça a unidade da obra: Martim e Moacir deixam a costa do Ceará em uma embarcação, quando o vento lhes traz aos ouvidos o nome de Iracema.
No segundo capítulo, a narrativa retrocede no tempo até o nascimento de Iracema. A personagem é então apresentada ao leitor: “Virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asa da graúna, e mais longos que seu talhe de palmeira”. A índia é descrita como uma linda e excelente guerreira tabajara, “mais rápida que a ema selvagem”. Por isso mesmo, sua reação ao avistar o explorador Martim é desferir-lhe uma flechada certeira. Essa é também uma referência à flecha de cupido, já que, desde o primeiro olhar trocado pelos personagens, se percebe o amor que floresce entre os dois.
Martim desiste de atacar a índia assim que põe os olhos nela. Iracema, por sua vez, parece ter atirado a flecha por puro reflexo, pois logo depois se arrepende do gesto e salva o estrangeiro, levando-o até sua aldeia.
Martim é recolhido à aldeia pelo pajé Araquém, pai de Iracema, e apresenta-se a ele como um aliado de seus inimigos potiguaras que se perdera durante uma caçada. O pajé o trata com grande hospitalidade e garante hospedagem, mulheres e a proteção de mil guerreiros.
Iracema oferece mulheres a Martim, que prontamente as recusa e revela sua paixão por ela. O amor de Martim é cristão, idealizado. O de Iracema também, mas por motivo diverso: ela guarda o segredo da jurema, por isso precisa manter-se virgem. Esse é o estratagema que Alencar utiliza para transpor o amor romântico europeu às terras americanas. Uma índia, criada fora dos dogmas cristãos, não teria motivos para preservar sua virgindade.
AMOR PROIBIDO
As proibições reforçam ainda mais o amor entre a índia e o português. São as primeiras de muitas provações que tal união terá de enfrentar. Em linhas gerais, o romance estrutura-se no embate entre tudo o que une e o que separa os dois amantes.
Irapuã é o chefe guerreiro tabajara e funcionará, no esquema narrativo da obra, como um antagonista de Martim. Na primeira desavença entre os dois, o velho pajé Andira, irmão de Araquém, intervém em favor do estrangeiro. Iracema pergunta ao amado o motivo de sua tristeza e, percebendo que ele tinha saudade de seu povo, pergunta se uma noiva branca espera pelo seu guerreiro. “Ela não é mais doce do que Iracema”, responde Martim. Irapuã nutre amor não correspondido pela virgem e logo reconhece no português um inimigo mortal.
Iracema conduz Martim ao bosque sagrado, onde lhe ministra uma poção alucinógena. O guerreiro branco delira, e a índia adormece entre os seus braços.
Enquanto isso, Irapuã continua alimentando planos para se livrar do estrangeiro. O amor entre os protagonistas parece impossível de se concretizar, por isso Martim é coagido por Iracema a voltar para sua terra. Caubi, irmão de Iracema, acompanha-os. No caminho de volta, porém, são atacados por guerreiros liderados por Irapuã. Martim, Iracema e Caubi refugiam-se na taba do pajé Araquém, que usa de um truque para salvar o português da ira do chefe guerreiro.
Sucede-se o encontro amoroso entre Martim e Iracema, narrado delicadamente pelo autor. Martim está inconsciente por ter ingerido a bebida da jurema e a índia deita-se ao seu lado. A frase “Tupã já não tinha sua virgem na terra dos tabajaras” é a sutil indicação de que a união amorosa se realizara.
Os acontecimentos que se seguem têm como pano de fundo a guerra entre potiguaras e tabajaras. Martim escapa de seus inimigos tabajaras e une-se aos vencedores potiguaras. Iracema, porém, sente-se profundamente triste pela morte dos entes queridos e não suporta viver na terra de seus inimigos.
O casal muda-se então para uma cabana afastada, localizada numa praia idílica. Com eles vai Poti, o grande amigo de Martim. Lá vivem um tempo de felicidade, culminando com a gravidez de Iracema e o batismo indígena de Martim, que recebe o nome de Coatiabo, ou “gente pintada”. Com o passar do tempo, contudo, o português se entristece por não poder dar vazão a seu espírito guerreiro e por estar com muita saudade de sua gente. A bela índia tabajara também se mostra cada vez mais triste.
Numa ocasião em que Martim e Poti saem para uma batalha, nasce o filho, Moacir. Quando os dois amigos voltam da guerra, encontram Iracema à beira da morte. O corpo da índia é enterrado aos pés de um coqueiro, em cujas folhas se pode ouvir um lamento. Daí vem o nome Ceará, canto de sua jandaia de estimação, uma ave que sempre a acompanhava.
CONCLUSÃO
Iracema, por amor a Martim, abandona família, povo, religião e deus. É uma clara referência à submissão do indígena ao colonizador português. Alguns dizem que o nome Iracema é também um anagrama de América.

Fonte: guiadoestudante.abril.com.br

sexta-feira, 1 de maio de 2020

Erik- Rosane Fantin


Finalmente chegamos a área onde estavam os túneis alagados. Lá, próximo ao local onde Erik fizera a sua morada, em um dos paredões, havia sido feita uma cavidade profunda, onde o caixão , provavelmente, seria colocado. Após alguns minutos de tenso silêncio, o chefe de polícia, M. Focault, pediu que os homens colocassem o esquife para dentro do buraco. Pode-se ouvir um suspiro escapar do peito pesado de Raoul. Christine estava com o olhar tristonho, olhando para baixo, provavelmente lembrando-se do seu mestre. Achei que tinha visto uma lágrima tímida rolando por sua face. Logo ela passou um pequeno lenço, de delicada renda, sobre a face, discretamente, simulando um súbito calor, retirando qualquer vestígio de choro que pudesse ser visto por seu marido ou pelas pessoas que ali estavam. Logo em seguida, um dos trabalhadores, passou a colocar uma espécie de massa arenosa, cobrindo toda frente da tumba, lacrando para sempre o corpo de Erik nas entranhas do suntuoso prédio. Não se ouviu nenhuma palavra de pesar ou oração, nem olhares de condolência. A tristeza por aquela perda, certamente, estava apenas nos pensamentos daqueles que tinham conseguido vislumbrar a genialidade que existia naquele homem transfigurado, apaixonado pela música e por sua musa. Christine, o desconhecido, que mais tarde apresentou-se como sendo o Senhor Marback, e eu.


Baseada no conhecido romance de Gaston Leroux, esta história inicia no momento da fuga de Erik, o fantasma, através dos subterrâneos da Ópera de Paris, durante o incêndio provocado por ele. Decidido a um novo recomeço, ele terá que enfrentar seus próprios fantasmas e perseguidores que se mantêm como obstáculos aos seus planos e à possibilidade de um novo amor. Uma aventura que leva o leitor das ruas de Paris ao interior da França, passando pela cidade inglesa de Dover e chegando à fervilhante Londres de 1872, flanando entre os salões da alta sociedade e os bairros pobres à beira do Tâmisa.


Erik- Rosane Fantin