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quinta-feira, 10 de setembro de 2020

A escravidão e presença negra em Rio Grande- Parte V



 5 – A DIALÉTICA DA LIBERDADE 

De fato, o discurso abolicionista afirmava explicitamente que o escravismo constituía um obstáculo à modernização econômica. Isto, entre outras razões, por ser visto como empecilho à promoção da imigração européia, requisito do almejado progresso. A noção de civilização vinha sempre à baila quando o tema era a escravidão ou a abolição. Para pertencer ao clube dos civilizados, pensava-se, era preciso incorporar as idéias e valores da sociedade européia e, portanto, repudiar o trabalho escravo. (29)  

 No Brasil, aproximadamente 95% dos descendentes de africanos já eram livres quando da assinatura da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888. Isso parece absurdo frente à visão tradicional de que a liberdade dos escravos foi realizada por meio de um ato oficial da Monarquia e assinado pela Princesa Isabel, que respondia pelo Imperador D. Pedro II. As vésperas da Lei Áurea, as fugas ocorriam em massa, desorganizando o sistema escravista. O lento e persistente caminho de resistência dos escravos, que passou pelas fugas, pela organização de quilombos, pelo suicídio, pelo homicídio, pela compra de alforria, pela ação política através dos jornais, pela atuação do movimento republicano e emancipacionista, são fatores que promoveram o quadro de desintegração das relações escravistas em 1888. Além desses fatores, a pressão inglesa, exercida desde a proibição do tráfico em 1831, e a imigração européia, especialmente a italiana a partir da década de 1870, pressionaram para uma mudança na atitude senhorial de aversão ao trabalho braçal exercido por homens brancos livres, os quais poderiam ser mais econômicos que a manutenção de escravos. A passagem da dramática existência na condição de escravo para a de homem livre revestiu-se de outros dramas ligados ao abandono, ao preconceito e ao despreparo para a nova condição de cidadão brasileiro. Além disso, a mudança jurídica não significou uma ampla mudança da mentalidade escravista constituída desde o período colonial da formação histórica brasileira. A realidade de desarticulação do sistema atropelou a legislação que protelava o fim da instituição do escravismo. Entre a proibição do tráfico de africanos para o Brasil em 1831 até a Lei Eusébio de Queiroz em 1850, mais de um milhão de escravos chegaram ilegalmente ao Brasil. Essa ilegalidade foi motivação para ações judiciais movidas por filhos de escravos que questionavam a sua condição de propriedade de um senhor se a compra fora feita à margem da lei. A repressão inglesa e a prisão de alguns senhores escravistas que desrespeitaram a nova legislação levou o senhorio ao abandono do tráfico ultramarino e desencadeou o tráfico entre as províncias brasileiras. As áreas de cafeicultura de São Paulo e Rio de Janeiro, enriquecidas e sedentas de mão-de-obra, passam a comprar escravos das áreas economicamente decadentes como o Nordeste brasileiro. Mesmo com o impacto da Guerra de Secessão nos Estados Unidos (que provocou o fim da escravidão nesse país) e com a insatisfação dos negros e brancos que retornaram da Guerra do Paraguai, a legislação continuou a protelar a liberdade aos escravos. A Lei do Ventre Livre (1871), que estabelecia a libertação de crianças nascidas de mãe escrava, previa indenização aos senhores pela criação delas até os 8 anos de idade. As crianças poderiam pagar pela liberdade aos senhores trabalhando até os 21 anos ou o Império indenizaria o proprietário. 

O movimento abolicionista intensificou-se a partir de 1879 através da atuação dos clubes abolicionistas e o crescente número de fugas. Em 1885, a Lei dos Sexagenários previa que para os escravos com 60 anos ou mais ganharem a liberdade, deveriam indenizar os senhores trabalhando por mais cinco anos gratuitamente. A articulação política dos senhores, através de deputados e senadores, procurava protelar a abolição com uma legislação conservadora. A Lei da Abolição ou Lei Áurea, que reconheceu liberdade civil a todos os brasileiros, foi aprovada sem indenização aos senhores, que perdiam a propriedade dos escravos, mas também sem reparações ou apoio para inserção dos escravos que se tornavam cidadãos na sociedade brasileira. (30)

 Muitos negros permaneceram com os seus ex-senhores após a liberdade, seja para cumprir contratos de indenização ou para exercer atividades. A extinção das senzalas foi um fator que originou bairros pobres na periferia das cidades. A disputa por vagas menos qualificadas nas indústrias nascentes também foi um espaço de alocação dessa grande mão-de-obra. Ao Brasil chegaram mais de três milhões de escravos negros até a proibição do tráfico. Produzir riquezas, seja na grande propriedade, na charqueada, no trabalho portuário ou no espaço doméstico de uma família luso-brasileira, era o papel histórico imposto ao negro por mais de três séculos. E mais de um século após a derrocada da instituição escravista, a construção da cidadania continua a se impor como um desafio situado entre os preconceitos herdados do passado e os caminhos da modernidade urbano-industrial no presente. (31)


                                                                        

                                                                    REFERÊNCIAS


29  PRADO, Joana et al. Abolição e branqueamento. Ciência Hoje, São Paulo: SBPC, nov. 1988.

30 MATTOS, Hebe Maria. A face negra da abolição. Nossa História. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, maio 2005. 

31 Negritude e cidadania foi um dos enfrentamentos políticos do deputado Carlos Santos. Ver: TORRES, Luiz Henrique. Carlos Santos: trajetória biográfica. Porto Alegre: CORAG/Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, 2004. 


                                                                      



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