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domingo, 17 de junho de 2012

O homem da ganja



           Afora aquele inconfundível cheiro que exalava pela janela quatro ou cinco vezes por semana, não havia nenhum outro motivo para reclamações na vizinhança. Dona Íria e Seu Jacinto que o digam. Moravam ao lado da cabana de madeira envernizada que  pertencia ao inofensivo maconheiro, novo morador daquela pacata Rua das Bromélias. O casal de anciãos era freqüentemente acudido pelo rapaz, que possuía avançados conhecimentos de eletricidade e conserto de eletrodomésticos em geral. Foi ele quem recuperou, sem cobrar qualquer tostão, a batedeira, o aparelho de som e o ferro de passar roupas dela. Em pouco tempo, tornou-se Cauã o mais confiável quebra-galhos da rua. Quando o assunto era rede elétrica, quase todos, exceto a família do Humberto, requisitavam-no em suas horas de folga. A todos acolhia com um semblante sempre tranqüilo e agradável que conquistava crianças, adultos e idosos. Trabalhava de sol a sol, de segunda a sábado, na Instalsul Engenharia Ltda., firma solidamente estabelecida no centro da cidade. Mesmo assim, atendia a vizinhança sem demonstrar cansaço ou contrariedade, pelo simples prazer de ajudar.
            Dona Íria, que adorava conversar sobre plantas, chás e ervas medicinais, encontrou nele um perfeito parceiro para a troca de receitas e novas fórmulas contra as mazelas do corpo. Aprendeu a usar o capim cidrão para elevar a sua pressão e a espinheira santa para combater a úlcera do Seu Jacinto. Também, graças ás dicas do moço, conseguiu finalmente curar a cistite da neta apenas com o chá de cavalinha e pata-de-vaca. Ela e o marido admiravam-no, mas andavam um tanto confusos pelos comentários surgidos em torno dele.
           Apesar de viver honestamente, com o suor do próprio trabalho, respeitando cada morador vizinho sem distinção, Cauã e a sua cabana nº 12 da Rua das Bromélias andavam na mira da lei. O tal cheiro que incomodava, cheiro de erva queimada, atiçava, dia após dia, a inimizade de Humberto, proprietário de uma granja situada na descida da rua. O eletricista era um sujeito caseiro, que muito raramente recebia visitas, contudo, boatos começaram a associá-lo ao tráfico de drogas. Não tardou ele a perceber que a vizinhança começava a tratá-lo com certa frieza e que alguns pais já não deixavam os seus filhos pequenos demorarem-se para ouvi-lo em frente á cabana. Isso naturalmente incomodou-lhe um pouco, mas não o suficiente para fazê-lo mudar a postura com todos eles, pois era incapaz de guardar ressentimentos. Mudara a menos de um ano para o bairro, tendo em si a mesma determinação de um João-de-barro quando constrói o novo ninho. Fez questão de pregar, do assoalho ao telhado, cada tábua de sua casa. O trabalho lhe consumiu os domingos de folga durante dois meses inteiros. Nesse período, enquanto pacientemente erguia as paredes do “lar doce lar”, começou a cativar os vizinhos com o seu jeito simples, calmo e atencioso. Comprara aquele terreno com recursos que vinha ajuntando na caderneta de poupança à cerca de quatro anos.
            Inicialmente, logo que se transferiu para o novo núcleo residencial, o odor da cannabis sativa foi atenuado pelo forte cheiro do verniz que ele ia aplicando à madeira. Com o tempo, porém, os olfatos mais apurados não tiveram muitas dificuldades para notarem que ele fumava maconha. Foi Dona Íria, a sua amiga de ar maternal, quem procurou abordar de frente o assunto durante uma conversa sobre a infusão das benditas ervas que curam. A explicação dada por ele tranqüilizou-a um pouco, pois afastou a hipótese do tráfico de drogas.
             A sua relação com a ganja(*) tinha um caráter totalmente místico. Fumava para refletir melhor sobre problemas e esquecer experiências negativas, obtendo paz de espírito e coragem. A erva era para ele um canal de acesso ao Pai, deixando-o na freqüência certa para entoar os seus cânticos devocionais e preces ao mundo extrafísico. Além disso, auxiliava-o a exercitar o seu lado músico, que nunca, em nenhuma fase da sua vida, deixara de lado. Tinha um violão Giannini vermelho e nesses momentos de inspiração conseguia compor e aperfeiçoar as canções que escrevia. A ganja que consumia, comprava-a diretamente no sítio de um plantador anônimo na região metropolitana de Porto Alegre.
            Nem todos tiveram a disposição e boa vontade de Dona Íria para ouvi-lo em suas justificativas. O tal Humberto da granja encabeçava a lista dos que desejavam vê-lo bem longe dali. O homem de 44 anos, criador de galinhas, tinha como principal fonte de renda a comercialização de ovos. Tinha também uma micro criação de suínos. Ano após ano ele comprava cinco ou seis porcos, alimentava-os bem e em dezembro, um pouco antes dos festejos natalinos, sangrava-os até a morte, vendendo-os em pedaços para a vizinhança. Do pai, já falecido, herdou a granja e a paixão pelo samba. Samba que não era feito com pandeiro, surdo, cavaco e violão, mas com cachaça e coca-cola, servidas em botecos da periferia. Bebia diariamente e sob o amparo da lei, dois ou três copos do “elixir” que o ajudava a esquecer mágoas, ganhar ânimo e tomar decisões. Costumava dirigir  o seu  velho  Passat   cinza  em   alta  velocidade quando se embriagava e ficava violento quando era contestado. Em março de 2005, durante a festa de aniversario da prima, num acesso de fúria, deu um tiro em seu cunhado, que, segundos antes, chamara o Grêmio Foot Ball Porto Alegrense de “timinho mixuruca”. Contratou logo em seguida um bom advogado e alegou, com sucesso, ter agido apenas em legítima defesa.
            Numa noite qualquer, ao voltar do boteco, Humberto sentiu o odor proibido exalando da cabana e tomou finalmente a decisão que há algum tempo vinha arquitetando. Estacionou o veículo a dois quarteirões do local, em frente a um orelhão, desceu um pouco cambaleante e daquele aparelho telefônico acionou uma patrulha policial. Vinte minutos após, quando a nuvem de fumaça já havia se desvanecido no ar, uma viatura da Brigada deslocou-se ao endereço apontado para proceder às averiguações. Da cabana escutavam-se apenas os precisos acordes do violão de Cauã, e o único cheiro que exalava desprendia-se da graciosa árvore pitangueira plantada por Dona Íria em sua calçada.       Uma brisa fresca encarregava-se de espalhar pela rua o perfume daquele fruto tropical, proclamando aos moradores da Terra o pleno domínio da primavera.
            O criador de galinhas, após a frustração, ficou ainda mais obstinado em meter aquele usuário criminoso na cadeia. Gastou aquela madrugada inteira refletindo sobre a melhor maneira de entregar em flagrante delito o eletricista. Quando os primeiros raios de sol romperam as espessas folhagens da cerca verde que circundava a sua granja, Humberto saltou da cama com ar de triunfo. Seus olhos estavam ainda vermelhos e o hálito simplesmente insuportável. Entrou no Passat, que estacionara ao relento no pátio, e tomou o rumo do bairro Floresta, onde morava o seu tio, um policial civil aposentado. Não existia grande amizade ou simpatia entre ambos e havia quase dez anos que não se procuravam. Contudo, a ocasião oportuna lhe fez tomar a iniciativa. Teve o cuidado de comprar antes uma caixa de uísque importado, Ballantines, para amenizar a frieza do reencontro. O velho apreciava as delícias de um bom malte, pois com ele descontraía, ficava ousado com as mulheres e sentia-se jovem. A conversa durou o tempo suficiente para o granjeiro receber das mãos do tio um cartão de recomendações indicando-lhe a certa delegacia que se encarregaria de investigar a denúncia. Sem perder tempo, deslocou-se até o distrito policial indicado e acertou todos os detalhes necessários para a prisão do seu vizinho. Eufórico, tão logo saiu de lá, Humberto começou a desabafar pelos botecos da redondeza que a sua vitória estava próxima.
            Durante um mês e meio, agentes civis infiltrados nos arredores monitoraram as noites de Cauã e descobriram a melhor hora para agir. A abordagem certeira foi planejada e no dia e hora marcados o rapaz foi revistado quando chegava em casa com um pequeno embrulho enrolado em papel alumínio. Levou dois tapas na cara e sem reagir conservou-se encostado no muro com as mãos e pés afastados. Dois transeuntes passaram rapidamente naquele instante e sem encará-lo apenas comentaram entre si:

-- Finalmente pegaram ele...
-- É, já tava na hora.

            Para surpresa dos inspetores, no entanto, o embrulho continha Boldo do Chile, uma erva com características diferentes da procurada. Havia junto uma folha de papel manuscrito contendo uma breve instrução medicinal:
     


A/c de Humberto, domiciliado à Rua das Bromélias nº 34:

                  Remédio natural contra a ressaca

    Coma iogurte natural antes de se deitar. Quando acordar tome 1 colher de mel. Fazer uma infusão de boldo e beber pela manhã. Antes de beber tome 1 colher de sopa de óleo de oliva.


            Dona Íria, que assistira toda a operação pela fresta da janela, assim que a viatura se foi, surgiu rapidamente no vidro e ambos, ela e o eletricista deram uma cúmplice piscada de olhos.

 (*) Também conhecida como marijüana e cannabis, é uma erva medicinal milenar usada pelos adeptos da filosofia rastafári, não para diversão ou prazer, mas sim para  limpeza  e  purificação  em  rituais controlados. Muitos sustentam o seu uso através de Gênesis 1:29: “E disse Deus: Eis que vos tenho dado todas as ervas que dão semente e se acham na superfície de toda a terra e todas as árvores em que há fruto que dê semente. Isso vos será para mantimento”.





                                     Cesar S. Farias


2 comentários:

Marcia Pimentel disse...

Olá Cesar,

Uma bela história sobre Cauã.

Bom dia.

bjs.

Olá Antonio,

Que maravilha deveria ser essa época não é. Eu também queria ter visto essa coisas, ter sentindo essa alegria que voce sentiu ao estar lá. Você pode se considerar um felizardo por ter visto todas essas coisas.

Bom dia!!!

bjs.

http://marcia-pimentel.blogspot.com.br/2012/06/novidades-de-ultima-hora.html

Dioceli disse...

Existe muitas pessoas nesse mundo assim como cauã que são trabalhadores ,e só porque escolhem canábis ,e não o tabaco ,são vistas como marginais!