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terça-feira, 2 de novembro de 2021

A Liga dos Judiados- parte I

 



           Mais uma pincelada do primeiro livro. Talvez o conto, futuramente, ganhe uma continuação. Aqui vai a primeira parte.

          O dia 4 de junho de 1989 ficou imortalizado na memória dos munícipes rio-grandinos como a data de fundação da maior organização oposicionista das associações de bairros no Rio Grande do Sul. Descontentes com a política exclusivicionista e arbitrária do então prefeito e coronel reformado do glorioso Exército Brasileiro, Valadão Paiva, líderes comunitários resolveram elaborarem em conjunto um programa alternativo de administração e ações populares. Na referida oportunidade foi redigida uma moção de repúdio, enviada no mesmo dia ao gabinete executivo e distribuída posteriormente à imprensa. O documento chamou a atenção dos jornais da capital pela singeleza do seu conteúdo, que traduzia os anseios e frustrações do proletariado local:



                   MOÇÃO DE REPÚDIO AO PREFEITO:



            Ao 4º dia do mês de junho de 1989, nós, membros da recém fundada Liga dos Judiados, viemos através do presente instrumento externarmos a nossa profunda decepção com a atual administração intervencionista que nos é imposta goela abaixo.

            Até então, apaziguados pela turma do “deixa disso”, havíamos simplesmente cruzado os nossos braços diante dessa agressiva política implementada nos moldes típicos da ditadura, que teoricamente fora já extinta.

            O apelo principal que aqui lançamos, mais em forma de petição do propriamente em tom de ameaça é a seguinte, Sr. Prefeito: PARE COM ISSO. Deixe-nos viver dignamente e sonharmos com uma sociedade mais justa para nossos necessitados filhos. Ponha a mão na consciência pelo menos uma vez na vida e arrependa-se de seus atos intransigentes. Abandone essa arrogância expressa gratuitamente em seu semblante e aceite as reivindicações de seus governados. PARE COM ISSO, PREFEITO. Pare, por favor. Nós já não agüentamos mais essa sua perseguição contra todos que não pertencem ao seu partido e com dificuldades lutam por maiores oportunidades. Seja mais imparcial e permita aos menos favorecidos iguais chances de usufruírem as muitas potencialidades da nossa terra, sem distinções de cor, crença ou conta bancária. Até quando esse inferno ainda vai durar?

            Muitos de nós, companheiros de Liga, estamos já desesperados, sem perspectivas imediatas de auxílio. Uma antipatia irremediável em relação a sua pessoa começa a surgir nos cortiços e favelas. Tente resolver isso por meios diplomáticos enquanto há tempo. Caso contrário a revolta popular poderá atingir dimensões ainda mais alarmantes. Estamos abertos ao diálogo e buscamos tão somente justiça. O povo também merece ser ouvido.

            A presente moção é um manifesto coletivo de todas as entidades pertencentes à Liga:


                                                                            

                                              Associação dos Descascadores de Camarão

                                              Cooperativa dos Biscateiros Autônomos

                                              Liga Federativa de Futebol de Sete

                                              Ordem dos Músicos de Boteco

                                              Clube das Senhoras Datilógrafas

                                              Conselho dos Bairros Periféricos





            O prefeito, tão logo teve conhecimento do referido texto, sem deixar transparecer o seu ódio, desculpou-se publicamente numa emissora de rádio local, esquivando-se estrategicamente de maiores esclarecimentos ideológicos. Ao final da entrevista ao radialista Afrânio Lazarini, apresentador do programa matinal “Manhã da Gente”, fez publicamente um convite às associações pertencentes a Liga:


- (...) Nêssi dumingo estaremos recebendo di braços abertos toda a população rio-grandina pru nóssu tradicional Carretêro du Dia di São Pedro nóssu amado padroeiro... Us portão du Ginásio Municipal vão ta aberto pra quem quisé chegá i cumê essi suculento prato dus gaúcho acompanhado pur uma saladinha di maionese... Vai tê pagode, vai tê fandango, vai tê música pra todus us gostu depois da comilança!... Vâmo acabá cum essa história di dizê qui eu não mi preocupo cum us meus conterrâneo... Eu faço u qui posso. Quando dá, dá, quando não dá, não dá...


                                                                 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨


            O carreteiro acabou, de fato, criando uma perspectiva otimista aos estômagos do proletariado, que simpatizou-se de imediato com o convite.

             Aparentemente a moção de repúdio havia surtido um efeito maior do que o esperado e alguns estavam já arrependidos de terem alimentado ressentimentos contra o chefe do Executivo Municipal durante tanto tempo. Vivas e mais vivas foram surgindo, já que a integração social tão almejada agora parecia mais próxima do que nunca. “E viva o prefeito!”

            O artigo a seguir, extraído do periódico sul riograndense “Folha Papareia”, ilustrará o impacto da atitude conciliadora do prefeito.



Folha Papareia, 9 de julho de 1989- Coluna Espaço do Leitor:


                        O homem não é ruim, pessoal!


            Os últimos acontecimentos nos fazem admitir que esse prefeito não é tão desumano o quanto se supunha. Tem lá os seus excessos como todo cidadão normal, mas nem por isso deve sofrer maiores condenações. Já tivemos administrações piores. Lembram do falecido Gadêncio Duarte, o “Coisa Ruim”? Depois do próprio Gadêncio teve ainda o Pompeu Dutra, que convenhamos, meteu bonito a mão nos cofre. Se eu for me lembrar de todos que ocuparam o trono de ¹Silva Paes certamente muita coisa suja viria à tona.

            Esse carreteiro promete ser o grande acontecimento da zona-sul em termos de integração política e por que não dizer, social. Chegou o momento de tirarmos o nosso orgulho bairrista de dentro do armário e nos congratularmos nesse autêntico banquete de núpcias.

            Acabam assim as nossas diferenças. Não há vencedores, não há vencidos. A diplomacia desse homem público está conseguindo suavizar as pendengas antigas que atrasavam o progresso do povo. Agora sim, os pessimistas de plantão irão render-se às evidências. Nada mais deve ou pode atrapalhar o nosso desenvolvimento tão sonhado. Deram com a língua nos dentes esses que só pensam no pior.

            O homem não é ruim... pessoal! Se fosse, jamais abriria pra nós o seu salão de baile. Bom apetite a todos! Nos encontramos lá!


                                                                                       Beto Molina

                                            2º tesoureiro do CBF (Conselho dos Bairros Periféricos)

                                                                          

                                                         ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

                     A publicação do emotivo desabafo abalou consideravelmente a homogeneidade da Liga, visto que alguns companheiros acharam prematura a sua declaração pública. Mesmo assim, apenas dois ²judiadeístas atreveram-se à pedirem cautela e prudência. Todos os demais, como cuscos de rua famintos, abanaram o rabo diante da eminente refeição. Com efeito, a situação daquela gente era quase desesperadora, por isso ninguém arriscou-se a menosprezar uma oportunidade gastronômica como aquela. Suas narinas, paladares e estômagos ansiavam pelo momento. Que se danassem, pelo menos por ora, as convicções ideológicas e posturas de combate. Que se colocasse, pois, uma pedra em cima de tudo que pudesse despertar ressentimentos contra o prefeito.       

                                            ......................................................

        

- Bá lokô, vai tê altos rango dumingo agora lá nu Ginásio da Prefeitura. Vô chegá lá na cara dura...

- Quê, mas... é só chegá?

- Claro lôko, u prefeito dissi qui a gênti pódi metê essi rango di graça i qui dá até pra repetí

- Olha só... Pódi crê... Quando qui é mesmo?

- Dumingo. Nessi dumingo agora.

- Baaah... vô dá u tóqui lá na báia... Mas vem cá Luizinho, é real qui tu anda matando a Inês, filha du Leleco?

- É, é real... Tô curtindo cum ela já faz uns dois mês... A mina faz tudo im cima duma cama, lokô...

- Ah é? Eu sempri achei aquela mina tri quiridinha... Eu curti a uns cinco anos atrás cum a irmã dela.

- A pára! A Valeska? HA HA HA HA HA HA HA!

- Só... a Valeska... Mas ela é tri quiridinha também...

- Bá lôko, eu acho aquela mina “nada à ver”.

- Luizinhô, vô ti dá u tóqui: Não entra nessas aí di querê mi rebaixá purquê vai dá merda...

- Eu só tô ti dando a real lôko, qualé?


                                                   ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨



  SALMONELA ATRAPALHA  A  BRILHANTE

  INICIATIVA DO PREFEITO VALADÃO PAIVA.

  DIARRÉIAS E VÔMITOS INTERROMPERAM A

  “FESTA DE SÃO PEDRO”.



          Com esta manchete estampada na contracapa de sua edição de segunda-feira, 30 de junho (um dia após o incidente) o diário “Aqui” sintetizou parcialmente o que ocorrera no tão aguardado banquete. Fazem-se necessários, porém, alguns esclarecimentos que visam alargar o horizonte de apreciação do leitor. As preciosas informações a seguir foram prestadas por Mariângela Torres, empregada do prefeito.

            Segundo a doméstica, seu patrão comportou-se de uma maneira bastante estranha naquele almoço, tratando-a com descortesia por um motivo aparentemente banal:


-... Si  eu subéssi qui a colherada di salada qui eu dei pru guri dêli di nóvi anos fôssi dexá u homi doido di raiva, eu nem teria servido...


            Mariângela salientou que isto aconteceu bem antes de surgir o primeiro sintoma de infecção intestinal nos presentes. Acrescentou ainda, que viu ele cochichar no ouvido do seu secretário de gabinete, algo que fez o mesmo gentilmente ceder toda a sua salada para um vira-latas amarelo de patinhas marrom que insinuava-se ao pé da mesa:


-... Depois disso êli saiu feito um lôko im direção à mesa du Comandanti da Guarda Municipal, qui já tava ingulindo uma garfada di salada... Êli também falô umas coisa pra êli i u homi só cumeu um pôko di carretêro i foi imbora...


             Ao final das contas acabou ficando “o dito pelo não dito”, já que inexistiam provas concretas que pudessem responsabilizar o administrador. Mariângela foi despedida e no ato da rescisão contratual ouviu acusações e ameaças do seu ex-patrão, que amaldiçoou o dia em que a havia contratado.  A moça, á partir dali, enfrentou sérias dificuldades para fazer ficha em estabelecimentos comerciais e indústrias da região, optando posteriormente pela atividade informal. Comprou uma carrocinha para comercializar cachorro-quente em frente ao terminal de ônibus da Vila Naba, no centro da cidade, contudo, devido as precárias condições de higiene em suas instalações, foi proibida pela Vigilância Sanitária de exercer as suas atividades. Tentou recorrer da decisão judicial contratando os serviços do advogado Guarnielli Silva, que após pessoalmente certificar-se das condições deploráveis da carrocinha, alegando indisponibilidade de tempo, negou-se à “descascar aquele abacaxi”. Conforme confidências da sua esposa a uma colega... 

-... U negro nunca mais quis cumê cachorro-quente depois di tê ido vê u relaxamento duma mulher qui quiria contratá êli... Êli dissi pra mim qui viu até um carrapato gordo caminhando na borda du póti di milho verde...

- É? Qui barbaridadi... Como tem gênti porca...

                                                          ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨


            A Liga do Judiados, que teve grande parte dos seus membros infectados intestinalmente pela salmonela, sentiu-se traída e humilhada, assumindo á partir dali uma postura bem mais atuante. Passaram a panfletear no mínimo uma vez por semana, disseminando denúncias alarmantes contra o Executivo. Por essa época começou a sobressair-se em liderança o co-fundador da Liga Federativa de Futebol de Sete (LFFS) e ex-segurança de boate, Simão Veiga, o “Tarrafa”. Tarrafa tentou conduzir os seus companheiros a uma tendência bem mais baderneira e anarquista, ganhando de imediato a antipatia dos judiadeístas moderados. 

            Segundo ele, somente teriam fim os males que afligiam o município quando os governantes tivessem medo do povo. Para tal, de acordo com o seu raciocínio, tornava-se necessário à criação de uma Frente Permanente de Algazarra (FPA), que seria a responsável pelas imprescindíveis conturbações da ordem pública. Levando adiante o seu intento oposicionista, recrutou na periferia, jovens elementos dispostos a esculhambarem com o sistema papareia³. Téia, Ganso, Jaques Pezão e Naldo eram alguns dos encrenqueiros que toparam sem maiores pudores a incumbência. Depredaram praças, tombaram placas de sinalização do trânsito e sabotaram viaturas oficiais da prefeitura (furando pneus), tudo isso em nome de um ideal revolucionário alicerçado na raiva e no menosprezo pela lei orgânica em vigor.

            A ousadia do esquadrão acabou, porém extrapolando. Na noite do dia 11 de dezembro de 1989, na tradicional Chegada do Papai Noel realizada anualmente no largo da prefeitura, os cinco integrantes mais ativos da FPA (Frente Permanente de Algazarra) dirigiram-se desrespeitosamente ao “bom velhinho” após demolirem no local, á pauladas, uma árvore de natal feita inteiramente com lâmpadas multicoloridas. Acionada pelos guardas municipais de serviço no local, a Brigada Militar entrou em ação numa das ofensivas mais bárbaras de sua história naquele município. Tarrafa, que observou á distância toda a operação, no momento da batida policial fugiu em sua CG 125 sem ao menos pensar em intervir a favor dos comparsas, que levaram safanões até não quererem mais. Uma semana após, recebeu em casa uma visita pouco amistosa de Jaques Pezão, que tinha ainda no corpo os hematomas do confronto com os PM’s.


- Intão a tua jogada era aquela, né Tarrafa? Botássi uma baita pilha na gênti i na hora du pau tu foge... Sai pra rua qui eu quero trová um bagulho cuntigo aqui fora...

- Pô neguinho, tu acha qui eu dexei vocês na mão? Eu saí pra vê si achava uns reforço pra nus ajudá... Quando eu voltei, já apavorado pur não tê achado ninguém, us homi já tinham levado vocês.

- Aaaah, tá... Então vem aqui na rua... Vem mesmo lokô.

- Pô neguinho, qualé? Vai pra casa i isfria a cabeça... Ôtra hora a gênti cunversa...

- Ou tu sai agora ou eu arrebento essa cerca!


                                                         Continua



¹ O  brigadeiro que fundou e administrou a cidade de Rio Grande.

² Designação empregada para discernir os membros ativos da Liga.

³ Devido o território arenoso e o vento sempre presente, os moradores dessa região do extremo-sul gaúcho, nos primórdios da colonização,  ficaram  conhecidos como Papareia.


                                              

Um comentário:

Elvira Carvalho disse...

Passei para deixar um abraço e desejar um feliz Novembro.