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quinta-feira, 23 de maio de 2024

Passando o tempo- Parte I


 

         O assunto por aqui, ainda que de forma indireta, continua sendo a nossa histórica enchente. Acontece que a sede da empresa de tecnologia responsável pela criação de sistemas, manutenção do banco de dados  e suporte na informática dos órgãos públicos do Estado, ficou totalmente alagada. Isso obrigou-lhes a desligar a energia elétrica , pra não comprometer os equipamentos que transmitem o sinal de intranet e eu, que dependo 95% dessa conexão de rede pra desempenhar minhas tarefas, encontro-me praticamente de mãos atadas durante o horário de expediente nesses últimos dias. Pra aproveitar de maneira produtiva essas horas de ócio, fiz visitas mais frequentes à biblioteca que temos no trabalho, resultando em duas obras lidas em duas semanas, o que pra mim pode ser considerado um recorde mundial. Começo aqui a dar algumas breves pinceladas daquilo que, aleatoriamente, escolhi nas estantes.

            O primeiro livro, de poucas páginas, é de um autor daqui do sul, Arnaldo Campos, numa bem-humorada narrativa ambientalizada nos tempos da ditadura militar aqui no país, coincidentemente, pelas ruas de Porto Alegre. “Réquiem para um burocrata”, como o próprio título antevê, narra o drama de um funcionário público que lida com papel e burocracia, o que de imediato me fez identificar-me, numa segunda coincidência, com o protagonista.

             Argemiro, sem imaginar, levado por um colega, participa de uma reunião com membros do Partido Comunista e a partir de então vê-se às voltas com retaliações no ambiente de trabalho, atormentando-se com a possibilidade eminente de perder o emprego. O autor focaliza, com profusão e bom humor, as crises de consciência e temores que surgem na mente de alguém, às vésperas de se aposentar, até então acomodado as circunstâncias. Desempenhara, exemplarmente, a sua função pública na repartição, sem maiores ambições, tranquilo quanto ao futuro. A sua vida, no entanto, passa a ser um verdadeiro tormento após receber uma intimação para depor perante uma comissão de militares. O pavor se reflete principalmente no ambiente doméstico, em sua relação com esposa e filhas. A narrativa centra-se nos dias que antecedem a tão temida inquirição com os agentes da ditadura.

          Curiosa e irônica acaba sendo a sua intensa relação com a já falecida cadela de estimação Princesa, evocada constantemente, com doce nostalgia, em suas lembranças. Ao final da história, já fora de si, num melancólico desfecho, o homem surpreende o leitor,  numa última expressão desordenada de angústia.

 


“Argemiro saiu do banheiro tateando as paredes. Gritou pela mulher. Gritou pelas meninas. O que estavam fazendo com elas? O que estavam fazendo com ele? De volta a sala, onde o som do violino era mais forte, o velho funcionário tapou as orelhas com as mãos. Durante longos minutos ficou dando voltas como um animal enfeitiçado. Até que, ofegante, foi esconder-se atrás da poltrona verde.
Dona Júlia tinha ido ao galpão buscar uns panos. Entrando na sala reparou no guarda-chuva em cima da mesa. Gotejava sobre o tapete. Ia protestar contra o desleixo mas conteve-se estarrecida, vendo o marido agachado atrás da poltrona.
– O que é isso?

Sem ouvir a pergunta da mulher, o velho funcionário ergueu a cabeça tal como Princesa quando escutava o violino do estudante. E começou a uivar.”









4 comentários:

Citu disse...

Gracias por la reseña. Te mando un beso.

❦ Cléia Fialho ❦ disse...

Muito interessante seu artigo.
Infelizmente o meu Rio Grande do Sul aqui, está debaixo d'água, muito triste.
Abraços.

https://sensualidadeeerotimo.blogspot.com/

Elvira Carvalho disse...

Muito interessante.
Estou tentar recomeçar a vida mas ainda está difícil.
Abraço e saúde

RÔ - MEU DIÁRIO disse...

Passando para ler e deixar meu Bju de bom fim de semana.