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domingo, 8 de abril de 2012

O carteiro





Porto Alegre, 7 de dezembro de 2000.

          Espero que esta te encontre gozando da mais perfeita saúde e, mesmo um tanto quebrantada pela tua frieza em relação a mim, não deixei de querer a tua felicidade, acredite. Não pense que nada me custa aceitar essa nova realidade que se desenha tão tristonha ante o horizonte. Pelo contrário, ela muito me corrói por dentro. Talvez leve um longo tempo até que eu me esqueça completamente de ti, pois muitas coisas divertidas e gratificantes fizemos nós juntas. O passado é agora, no entanto, tudo o que temos para nos orgulharmos, já que apenas escombros restaram daquilo que um dia foi uma amizade.
          Esta é a terceira carta que escrevo sem obter qualquer resposta e percebo estarem sendo infrutíferas as minhas tentativas de reaproximação. Se ao menos eu soubesse o real motivo que te fez erguer esse muro de concreto frio entre nós, poderia argumentar ainda mais algumas linhas pra tentar reverter a situação. Torna-se inútil, porém, lutar contra um fantasma invisível que nos ataca sem que eu o enxergue. Tudo o que sei é que ultimamente andas evitando a minha companhia e nem as mensagens no celular me respondes mais.
          Saiba que não mais insistirei, pois estou fraca, exaurida e sem forças para escrever algo que talvez esteja sendo transcrito em vão. Lamento que acabe assim, sem quê nem porquê, a nossa ligação construída ao longo de muitos anos. Sempre gostei de receber cartas e executar todo aquele ritual que envolve o recebimento e abertura do envelope lacrado entregue pelo carteiro. Era, até então, a única amiga que me proporcionava esse prazer, mantendo comigo uma regular correspondência.
          Se vou conseguir substituí-la, isso é uma incógnita cruel. Faço desta missiva a minha derradeira saudação e o grito último de adeus. Seja feliz nesse teu novo mundo em que, decididamente, não consigo mais penetrar.

                                                  
                                                 Tenra e delicada é a flor da amizade.
                                                 Mas  se  o  verme  da desconfiança a
                                                 morde, fecha doridamente os olhos e
                                                 fenece.


Quando leu esta citação final, que encerrava a tão melancólica carta em suas mãos, Ângela percebeu que magoara a amiga de tantos anos. Sorriu um sorriso estranho, mórbido, expressando através dele toda a confusão e desordem mental que vivia naquele instante. Aquela folha de papel era agora um espelho onde se refletia um perfil que ela não havia ainda reparado em si própria. Essa autocontemplação causou-lhe uma imediata crise de consciência. A imagem que viu fez-lhe enrubescer e mentalmente começou a reconstituir os seus últimos encontros com Alice. Sem muito esforço, percebeu que havia de fato enxotado a amiga para outras pastagens, tratando-a com bastante frieza. A antiga intimidade entre elas tinha acabado há algum tempo, e isso lhe doeu naquela hora.
O orgulho a havia cegado de tal forma que só ali pôde finalmente colocar-se no lugar da outra. Tão inflamada havia estado que esquecera por completo a amizade anteriormente vivida desde que recebera uma outra carta. Carta que, na verdade, semeara na horta bem-aventurada da amizade o fungo bolorento da discórdia.      



Porto Alegre, 14 de setembro de 2000.


Ângela, minha querida.

Pensei muitas vezes antes de te escrever essas linhas e, quando no correio selei o envelope, lacrei e larguei na caixa coletora, me perguntei ainda se devia me intrometer em tua vida particular. Quero que recebas como as palavras de uma tia mais velha e experiente as observações que eu aqui vou fazer.
Sempre admirei o teu namoro com Elton, e acho que vocês só estão há tanto tempo juntos porque realmente existe afinidade entre os dois. Por outro lado, enxergo coisas que tu, ao que parece, não consegues ver e que estão atrapalhando e ameaçando a relação de vocês. Tua colega Alice anda trocando com ele olhares suspeitos, tão sutis que só uma mulher já calejada como eu pode pescar no ar e te fazer essa advertência. Já perdi um homem pra uma ex melhor amiga e sei o quanto dói à decepção dupla que se sofre nesses casos. Infelizmente, não tive naquela época alguém que me alertasse e abrisse os olhos para que eu cortasse o mal pela raiz. Quando fui perceber, os dois já estavam por demais envolvidos e cúmplices totais na arte da traição.
Peço-te que consideres melhor, a partir de agora, a tua ligação com ela e que procures ver até que ponto a intimidade entre vocês duas pode deixar vulnerável o teu noivado e os sonhos que tens. Acho que mereces ser uma pessoa realizada, contudo a tua ingenuidade, apesar de admirável em alguns instantes, pode te causar ainda algumas dores de cabeça, e dessas dores entendo eu bem. Posso te afirmar que nenhum homem, por mais que tente, consegue aguentar por tanto tempo as investidas de uma mulher atraente como ela. Há um “clima” no ar e, se ainda não “rolou” nada, do jeito que está, isso vai ser uma questão de tempo e oportunidade.
Abre o olho, meu anjo, só quero a tua felicidade.

Da tia que te ama de paixão,
                                                                    Verônica
            
Não esqueças que a tua prima tá de aniversário no final deste mês. Vem aqui comer uma carne de porco assada com a gente. Todos aqui sentem muitas saudades de ti. Precisamos botar as fofocas em dia.

                                                                                      Beijão! 


           
            Alice conseguiu um estágio numa clínica em Santos-SP, região centro-sul do país. Tão transtornada estava que não avisou a ninguém acerca da sua partida, nem mesmo à antiga e inseparável confidente. Três cartas de Ângela chegaram sem sucesso ao seu antigo endereço na Avenida Intendente Azevedo, 441, bairro Glória. A quarta delas, que acabou sendo a última, foi aberta pelo carteiro Claiton, que ficou curioso, ao colocar por debaixo da porta os envelopes anteriores. O funcionário da Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos costumava entregar um grande volume de correspondências comerciais, propagandas e materiais impressos em geral. Ironicamente, as cartas propriamente ditas, de pessoas para pessoas, andavam em baixa na porcentagem de postagens. Significavam menos de 10% do volume total entregue a cada dia, e isso particularmente lhe frustrava. Quando reparou, carta após carta, que o destinatário não mais ocupava aquele endereço, confiscou a quarta e derradeira tentativa de reconciliação.
Naquele dia, ao terminar as suas entregas, chegou em casa e, sem partir para o seu rotineiro banho, trancafiou-se no quarto com o envelope branco ainda lacrado. Consumou ali a sua contravenção, violando uma mensagem que, ao final das contas, permaneceria de qualquer forma extraviada.





Porto Alegre, 22 de novembro de 2002.

Alice, minha amiga:

Agora sinto e experimento o esgotamento de quem escreve mais de duas cartas sem obter qualquer resposta, provando da solidão e da incerteza. Tenho, neste instante, reflexões pessimistas dentro de mim, pois minha consciência dói ainda. Tens toda a razão em querer me punir com essa tua indiferença, pois foi isso que um dia enxertei entre nós. Naquele tempo, eu queria defender a minha felicidade futura com o Elton, porém hoje só o que me resta ao ouvir esse nome são as mágoas e cicatrizes da traição. Verônica, minha “tia querida”, cinquentona fogosa, usou de tudo o que tinha e era capaz para protagonizar com ele uma paixão sem escrúpulos.
Quando os enxerguei aos beijos dentro do carro dela, a princípio me senti injustiçada. Porém, tão logo senti a tua falta para desabafar, aceitei com triste conformismo essa punição que o destino me impôs. Não pretendo mais te molestar com minhas dramáticas palavras que tanto pedem perdão.  Apenas quero aqui repetir pela quarta e última vez o quanto gostaria eu de poder voltar no tempo para novamente viver aquela alegre amizade de anos atrás. Recordo o quanto me sentia segura naquela época e como apoiávamos uma à outra em nossas aspirações e projetos de vida.
Os borrões no papel são das lágrimas que caem aqui, autênticas, enquanto penso no que fiz contigo. Afastei a melhor e única amiga que tive, tudo isso em nome de uma falsa ideia e ingênua fantasia. Meu casamento desmoronou antes de existir e eu, francamente, não pretendo mais depositar esperanças em algum romance para nutrir e completar os meus dias.
           Ninguém consegue me dar notícias tuas, e eu aqui me declaro          exausta para prosseguir nessa busca obstinada, via celular e via carta.  Fui pessoalmente visitá-la, mas nenhum sinal teu encontrei, por isso dou-me agora por vencida. Seguirei a minha sina, desejando-te toda a felicidade do mundo, pois mereces amizades bem mais consistentes do que esta, encenada por mim com tanta vacilação.












Um comentário:

Anônimo disse...

Nossa amigo, que inspiração viu, que emaranhado de situação, mas é tão bom quando acordamos e reconhecemos nossos erros, nos faz crescer...o problema é quando magoamos alguém, mas tudo passa nessa vida...beijos na família linda viu...