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terça-feira, 3 de julho de 2012

Preta, pobre e feia



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MOÇAS e Rapazes de 16 a  25
anos, p/panfletagem. Tratar: Av.
Cairu 1084/308. POA dia 19/03.
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  - Bah... Essa tá fudida... Preta, pobre e feia... 

Uma gargalhada estrondosa e homérica escapou por entre os lábios apertados de Silvânia, que, diga-se a verdade, até tentou ser discreta diante daquele comentário. Nilson, o gerente, era um debochado, todos funcionários da Cairu Empréstimos Ltda. o sabiam. Contudo, durante aquela seleção de candidatos fez-se evidente a sua verdadeira índole. 
Diante de ambos, apresentava-se o antepenúltimo candidato que conseguira retirar a senha para a entrevista. O Citzen na parede marcava já doze horas e dez minutos. A empresa, apenas mais uma no ramo da agiotagem, buscava dois novos profissionais para contratação imediata, visto a recente inauguração da primeira filial, situada no limite norte do próprio bairro.
O serviço de panfletagem seria, na verdade, apenas um estágio de duas semanas e seis dias, que conduziria os selecionados ao Quadro Efetivo de Funcionários da Cairu.                                            
Nilson era o único filho do ex-deputado Ornella Hutzler, um viúvo alegre que acumulou, com alguns méritos, em sete mandatos consecutivos, um patrimônio que permitiu a ele e aos seus uma tranquila condição financeira, bem como algumas excentricidades.
A falecida Sra. Iria Hutzler fora a católica mais convicta da família e tentara consagrar o coração do filho a São Lázaro, presenteando-o com uma medalhinha de ouro, relíquia do santo. Misteriosamente, o adorno acabou causando-lhe alergias no pescoço, semelhantes a marcas de açoite. O flagelo foi encarado por ela como um sinistro presságio do destino que aguardava o seu rebento na vida além-túmulo. Contudo, depois de frustradas tentativas, a velha desistiu de querer incutir-lhe o Evangelho. Decepcionada, guardou a correntinha de metal precioso no baú de relíquias, mantido até os dias de hoje no cofre do deputado, atrás do quadro de Portinari, no quarto do casal.                         
A mocinha afrodescendente, com certeza, não ouviu a sentença em tom de murmúrio proferida a seu respeito. Porém foi-lhe impossível ignorar o riso daquela rapariga no momento em que cruzou, cheia de esperanças, o umbral da sala 308. Na peça não havia qualquer mobília, exceto as três cadeiras pretas acolchoadas e com braços. A primeira vazia, plantada em frente à janela na parede dos fundos e envolta pela escassa claridade daquele dia cinza. As outras duas, logo em frente, na penumbra, ocupadas por Silvânia e seu chefe. Enquanto ela, a cada novo candidato, rabiscava anotações em uma folha presa à sua prancheta de madeira, ele limitava-se a formular breves perguntas informais e esquadrinhá-los com o olhar.
A jovem sentou-se e preencheu a Ficha, já bastante desanimada pela recepção que tivera. Suas roupas eram um pouco desbotadas pelo tempo e o tênis descolara na parte de trás durante os quilômetros de percurso a pé que fizera desde o Terminal de Ônibus do Mercado Público.
Faltava-lhe apenas um ano para concluir o Ensino Médio. O pai, desempregado, andava pressionando-a demais:
  
 - Vai à luta, tchê... A minhas irmã com a tua idádi já trabalhavam... Só istudá não dá... Tu não é filha di rico.
                         
***
- Qualquer coisa a genti liga pra êssi teu telefoni di contato, tá? Por enquanto tâmo só fazendo cadastro...
- Tá, então tá bom. 


                

                Cesar S. Farias                                              





2 comentários:

vendedor de ilusão disse...

Olá amigo, pelo visto você não recebeu meu e-mail. Publiquei ontem minha crônica sobre seu livro. Dê uma olhada, espero que goste.
Até mais ver!...

|Dioceli disse...

Com certeza as pessoas em geral tem um conceito de beleza totalmente deturpado, sem falar na maldade com que algumas,espresam seu preconceito muitas vezes magoando outras pessoas sem nessessidade.Por isso se colocar no lugar do outro se tornou tão dificil é mais fácil fazer piada ou debochar onde está a compaixão.