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quarta-feira, 18 de julho de 2012

Um conto de São Gabriel



        Se ela tivesse desconfiado antes daquelas tais reuniões nas noites de quarta-feira...

Em parte, era por questões de status e aceitação social que ela tolerava, sem qualquer indagação, o crescente interesse do marido pelos preceitos maçônicos. Aquele sonho, no entanto, deixou-a intrigada, despertando-lhe dúvidas que não soube de imediato expressar em palavras.
Beatriz orgulhava-se do marido e considerava-se uma fêmea de sorte, pois deixara Jacutinga pra trás, há cerca de cinco anos, para casar-se com um  juiz de direito e estabelecer-se em São Gabriel, cidade de nomenclatura angelical. Lugar com um nome desses, matutou ela certa vez, só pode trazer felicidade. Parecia uma convicção simplória, contudo não houve quem a dissuadisse de apoiar-se nela. Muito pelo contrário, amigos e familiares encorajaram-na ainda mais a acreditar em conto de fadas. Seus pais desejavam, acima de qualquer preocupação, vê-la bem casada e sua educação fora toda ela voltada para esse objetivo.            
Álvaro desempenhara em Jacutinga, por dois anos, a função de promotor público, tempo suficiente para engravidar, desposar a moça e ser aprovado num concurso público para juiz em São Gabriel. Transferiram-se para lá, adquirindo uma sólida posição social e invejável estabilidade econômica, tudo o que uma mulher como ela almejara um dia.
Havia, porém, aquele sonho... A sua intuição feminina reclamava uma atitude, um esforço que pelo menos dissipasse aquelas dúvidas semeadas nas profundezas de seu subconsciente. Naquela quarta-feira, dia de reunião, como de costume, às dezenove horas, ele beijou-a enquanto apalpava com delicadeza as suas nádegas.

- Tchau paixão!
- Tchau amor!

O carro já estava estacionado em frente à casa.  Ele virou a chave de ignição uma vez e, apesar do frio intenso, o motor da pick-up respondeu. Com a mão esquerda, tirou um charuto e o celular do bolso de seu sobretudo marrom, enquanto a destra engatava a primeira marcha. Desapareceu então do campo de visão de Beatriz, que fresteara todos os seus movimentos da janela.
Havia certo ponto de táxi a um quarteirão dali, e ela correu ao telefone, decidida a seguir o seu homem. Menos de três minutos após, já estava sentada no banco traseiro do Santana prefixo 382, dando instruções para o motorista seguir à distância a pick-up que dobrava em direção à BR.
Na altura do Km 11, o magistrado pegou uma estrada de chão batido e, rodando uns 200 metros, brecou em frente a uma mansão, onde acabavam de chegar, em um Apolo Classic preto, os legisladores federais Horácio Lopes e Ruan de Britto. Os carros trocaram buzinadas e eles um demorado sorriso cúmplice e sem palavras. Um criado abriu o pesado portão de ferro e entraram os três, dois artífices da lei mais aquele que julga.
Lá dentro, numa ampla sala toda envolta em penumbra, algumas adolescentes em trajes de mulheres proporcionavam volúpia visual a alguns coroas perfumados de loção pós-barba e muito bem polidos. Tinham elas corpos anatomicamente saudáveis, mas todas as dez, sem exceção, eram meninas.
Cinco minutos após, a esposa desconfiada, que dispensara o táxi na BR, aproximou-se da opulenta residência com cautela, em meio à escuridão e à fina garoa daquele início de noite. Observou a entrada de um último retardatário no casarão. Era o pediatra de Tiffany, sua filhinha, o Dr. Edgar. A mulher, vendo-o, deu um longo suspiro e levou a mão ao peito, sorrindo aliviada. Se o Dr. Edgar estava ali, matutou, não havia margens para desconfianças. Ele era “tão legal... adorava crianças...”
         Beatriz foi-se, decidida a apagar da memória o maldito sonho em que a estátua de Themis, personificação da justiça, de olhos vendados e semblante sombrio, pareceu-lhe tão horripilante. Era melhor deixar pra lá.


                  Cesar S. Farias

4 comentários:

Marcia Pimentel disse...

Que conto Cesar! Me arrepiei no final. E olha que isso acontece mesmo. Vemos nos jornais, casos como esses, que os homens importantes de uma cidade pequena, veredores, médicos, advogados e outros, que durante o dia são pais amorosos, maridos dedicados e bons trabalhores, se tornam uns monstros a noite. Muitas vezes não conhecemos as pessoas que moram conosco a tantos anos. Infelismente é uma triste realidade.

Parabéns pelo conto Cesar.

bjs.

http://marcia-pimentel.blogspot.com.br/2012/07/mais-uma-divulgacao.html

vendedor de ilusão disse...

Olá Cesar, além de agradecer-lhe a visita e o cometário lisonjeiro, quero deixar registrada impressão sobre esse seu magnífico conto. É soberbo, meu caro amigo, gostei demais! Não só pelas narrativas, - coisa que lhe é peculiar, mas pelo tema atual, realístico e lamentável...
Um abraço.

Emma Lopes disse...

Obrigada pelo comentário no meu blog e seu texto me pareceu ser muito fascinante... Perdoe a falta de melhores palavras para descrevê-lo... Abraços.

Se possível, siga e comente em minha página, pois preciso de boas opiniões como a sua... Felicidades.
http://www.ladomalucadeser.blogspot.com

Marcia Pimentel disse...

Olá Cesar,

passando para deixar um abraço.bjs

http://marcia-pimentel.blogspot.com.br/2012/07/noticia-sobre-o-proximo-livro.html