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domingo, 14 de abril de 2024

Do baú do Raul

 


Eu já entrei vinte vezes no escritório do psicanalista
Depois paguei ao médico e depois fui ao dentista
Para ver o que eu tenho e não consigo dizer.
Perguntei a toda gente que passava na rua
Ao patrão, à minha sogra, à São Jorge na lua
Mas nenhuma dessa gente conseguiu me responder.
Por causa disso eu fui pra casa e fiquei pensando
Se era eu que estava errado com as minhas maluquices
Ou se era o mundo todo que estava me enganando.
Arrumei as malas
Deixei as perguntas na gaveta
Procurei saber o horário do próximo cometa
Me agarrei em sua cauda e fui morar noutro planeta.


Fonte: Raul Seixas



segunda-feira, 1 de abril de 2024

O Pecado

 


          QUANDO NAQUELE DIA  São Pedro despertou, despertou risonho e de bom humor. E, terminados os cuidados higiênicos da manhã, ele se foi à competente repartição celestial buscar ordens do Supremo e saber que almas chegariam na próxima leva.

          Em uma mesa longa, larga e baixa, em grande livro aberto se estendia  e debruçado sobre ele, todo entregue ao serviço, um guarda-livros punha em dia a escrituração das almas, de acordo com as mortes que Anjos mensageiros e noticiosos traziam de toda extensão da terra. Da pena do encarregado celeste escorriam grossas letras, e de quando em quando ele mudava a caneta para melhor talhar um outro caráter caligráfico.

          Assim páginas ia ele enchendo, enfeitadas, iluminadas em os mais preciosos tipos de letras. Havia no emprego de cada um deles, uma certa razão de ser e entre si guardavam tão feliz disposição que encantava o ver uma página escrita do livro. O nome era escrito em bastardo, letra forte e larga; a filiação em gótico, tinha um ar religioso, antigo, as faltas, em bastardo e as qualidades em ronde arabescado.

          Ao entrar São Pedro, o escriturário do Eterno, voltou-se, saudou-o e , à reclamação da lista d'almas pelo Santo, ele respondeu com algum enfado (endado do ofício) que viesse à tarde buscá-la.

          Aí pela tardinha, ao findar a escrita, o funcionário celeste (um velho jesuíta encanecido no tráfico de açúcar da América do Sul) tirava uma lista explicativa e entregava a São Pedro a fim de se preparar convenientemente para receber os ex-vivos no dia seguinte.

          Dessa vez ao contrário de todo o sempre, São Pedro, antes de sair, leu de antemão a lista; e essa leitura foi útil, pois que se a não fizesse talvez, dali em diante, para o resto das idades - quem sabe? - o céu ficasse de todo estragado. Leu São Pedro a relação: havia muitas almas, muitas mesmo, delas todas, à vista das explicações apensas, uma lhe assanhou o espanto e a estranheza. Leu novamente. Vinha assim:

          P.L.C., filho de..., bisneto de ... - Carregador, quarenta e oito anos. Casado. Casto. Honesto. Caridoso. Pobre de espírito. Ignaro. Bom como São Francisco de Assis. Virtuoso como São Bernardo e meigo como o próprio Cristo, É um justo.

          Deveras, pensou o Santo Porteiro, é uma alma excepcional, com tão extraordinárias qualidades bem merecia assentar-se à direita do Eterno e lá ficar, per saecula saeculorum,, gozando a glória perene de quem foi tantas vezes Santo...

          - E por que não ia? deu-lhe vontade de perguntar ao seráfico burocrata.

          - Não sei, retrucou-lhe este. Você sabe, acrescentou, sou mandado...

          - Veja bem nos assentamentos. Não vá ter você se enganado. Procure, retrucou por sua vez o velho pescador canonizado.

          Acompanhado de dolorosos rangidos da mesa, o guarda-livros foi folheando o enorme Registro, até encontrar a página própria, onde com certo esforço achou a linha adequada e com o dedo afinal apontou o assentamento e leu alto:

          - P.L.C., filho de ..., neto de ..., bisneto de ... - Carregador. Quarenta e oito anos. Casado. Honesto. Caridoso. Leal. Pobre de espírito. Ignaro. Bom como São Francisco de Assis. Virtuoso como São Bernardo e meigo como o próprio Cristo. É um justo.

          Levando o dedo pela pauta horizontal e nas "Observações", deparou qualquer coisa que o fez dizer de súbito:

          - Esquecia-me... Houve engano. É! Foi bom você falar. Essa alma é a de um negro. Vai para o purgatório.


    

Lima Barreto (Publicado originalmente na Revista Souza Cruz, Rio, agosto 1924).

                                                                           


          


             

domingo, 24 de março de 2024

Semana de Páscoa

 


            Estamos na semana de páscoa e como de costume, o blog entra no clima. Dessa vez trago trechos do "Evangelho de Maria Magdalena", texto originalmente escrito em língua copta, que veio à tona, em forma de fragmentos,  em 1896 no Cairo, capital do Egito. O evangelho, com fortes orientações gnósticas, nos traz uma visão mais aprofundada sobre o papel de Maria Magdalena entre os primeiros discípulos de Yeshua, confrontando certos conceitos machistas introduzidos posteriormente na própria doutrina cristã paulina.

     Não tenho a intenção nem tampouco conseguiria, esgotar na presente postagem toda a teologia que essa questão envolve. Apenas ofereço-lhes uma versão alternativa de palavras atribuídas ao Salvador, por algum motivo, não incluídas na Bíblia.

     Encerrando com uma confidência, não me agrada em nada essa história de ficar recordando o sangue e martírio do Cristo. O que traz a vida eterna são os Seus ensinamentos e não o sofrimento das Suas últimas horas.


                                         Shalon 🙏


                "Tudo o que nasceu tudo o que foi criado, todos os elementos da natureza estão estreitamente ligados e unidos entre si. Tudo o que é composto se decomporá; tudo retornará as suas raízes; a matéria retornará às origens da matéria. Que aquele que tem ouvidos para ouvir, ouça."


                                "Velai para que ningúem vos engane, dizendo: Ei-lo aqui. Ei-lo lá. Porque é em vosso interior que está o Filho do Homem; Ide a ele: aqueles que o procuram o encontram."