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domingo, 3 de novembro de 2024

Jamaica, arte & periferia

 


            Os bairros da periferia (como o de Trench Town (foto acima) crescem rápida e desordenadamente. Não há empregos para todos e a tensão social chega a níveis insuportáveis. Muitos jovens se entregam à criminalidade e passam a ser chamados de rude boys (em inglês, assim como em português, rude significa grosso, mal educado). Como muitos destes rude boys usavam dreadlocks ¹ , o preconceito contra os rastas, que já era grande devido ao consumo público de ganja ², cresce injustificadamente. Ás populações carentes e especialmente aos rastas, restava a esperança de ganhar a vida através da arte. Muitos deles dedicaram-se à música.  É impressionante que um país pequeno como a Jamaica, cuja população pouco supera a marca de 2,5 milhões de habitantes, tenha revelado uma quantidade tão grande de músicos, influenciando a música popular ao redor de todo o mundo. A música, principalmente o ska, dos anos 60, e o reggae, nas décadas seguintes, acabou sendo a grande divulgadora da filosofia rastafari, dentro e fora da Jamaica. Infelizmente, o movimento rastafári, talvez devido à sua complexidade, nunca foi muito entendido, mesmo na Jamaica (veja-se o exemplo dos rude boys). É comum encontrar pessoas que pouco conhecem sobre a cultura rasta ostentando enormes dreadlocks. Muitas vezes, suas atitudes acabam contribuindo para a manutenção do estereótipo segundo o qual os rastas são criminosos drogados. Mas a cultura rasta continua ganhando adeptos em todo o mundo, e está cada dia mais sofisticada. A busca pelo conhecimento de nossas raízes e, principalmente, a resistência aos valores superficiais incentivados pela sociedade de consumo, são grandes exemplos a ser seguidos por qualquer homem, seja ele negro ou não, rasta ou não.




¹  Penteado característico da cultura rastafári que consiste em fios de cabelos enrolados em formato cilíndrico.

² Maconha


Fonte: www.casadoreagge

sábado, 26 de outubro de 2024

Porã

 


            Mais uma vez, por motivo de força maior, pra matar a ociosidade que provoca a falta de energia elétrica, consegui iniciar e concluir a leitura de mais um livro pro meu currículo. Fortes ventanias aqui no sul do país deixaram grande parte das cidades gaúchas sem luz e mais uma vez esse Servidor Público ficou praticamente todo o expediente sem ter o que fazer.

     "Porã", de Antônio Hohlfeldt, é um livro bem fino, de pouquíssimas páginas, mas que transmite uma mensagem sobre o preconceito de pele, fazendo-me refletir que, não necessariamente, é preciso escrever uma obra extensa, épica, pra mergulharmos fundo na alma do leitor.  A obra narra o primeiro dia letivo de uma criança indígena numa escola da cidade. Começa e termina indo direto ao ponto da discriminação racial, apontando culpados, consequências e heróis.


" Porque a professora tinha feito aquilo comigo? Eu sempre tive muito orgulho de me chamar Porã. A mãe tinha me dito que Porã era o nome de um avô do avô do meu avô, que era muito valente, e que por isso eu devia respeitar aquele nome e ter orgulho dele. E eu tinha muito respeito e levava aquele nome com muito orgulho. Por essa razão, não liguei muito quando aos pessoas da cidade me deram outro nome, "tu agora vais te chamar Pedro", me disseram.

Porque eu era Porã e, mesmo que quisessem juntar os dois, Pedro e Porã, ou Porã Pedro, eu era Porã, este nome era meu e isso me alegrava muito."


          O autor nos faz perceber a culpa individual que cada um de nós, pai ou mãe, pode carregar perpetuando esse sentimento tão equivocado e nocivo, que faz alguém menosprezar o outro tão somente pela cor da pele.


"... Se você prende uma árvore de uma maneira, ela vai crescer assim. Se você prendeu torta, ela vai crescer torta. Se você prendeu direito, ela vai crescer bonita. Se os pais destas crianças ensinaram que o índio não é gente, ou que nós somos vagabundos, elas só vão repetir o que ouviram dos adultos."


         Conforme dito, o livro é de poucos parágrafos, mas impregnado pelo aroma e colorido das matas caingangues ¹, mostrando uma triste realidade, mas ao mesmo tempo apontando à um caminho de superação individual pra lidar com a situação. É minha sugestão de leitura, recomendável pra quem precisa, como eu, entretenimento por breves instantes, até que luz volte, ou pra uma viagem de ônibus dentro da cidade, em dia de engarrafamento.


¹ Etnia indígena retratada na obra.




domingo, 20 de outubro de 2024

Grande Pajé- O conto

 


            Lorena recebeu do médico, exultante, a notícia de sua gravidez. Não conseguia esconder a alegria que transbordava em cada recando do seu ser. As esperanças que alimentara haviam sido finalmente recompensadas. Agora poderia terminar, com novo ânimo, as últimas peças do enxoval que bordara na certeza de um dia vesti-lo em seu próprio bebê. Ela, que sempre fora a calma e a tranquilidade em pessoa, agora atingira o ápice da felicidade. Teria. enfim, a única coisa que faltava em sua virtuosa vida. Tão logo saiu do consultório começou a vagar pelas ruas do centro da cidade, com vontade de anunciar bem alto a presença da nova vida que abrigava no ventre. Com um sorriso franco e aberto nos lábios, saudava toda e qualquer criatura viva por quem passava, sem distinguir sexo, idade, raça ou espécie. Tudo parecia ter um colorido novo e não havia naqueles momentos nenhum pensamento grande o suficiente para roubar dela a felicidade estampada em seu rosto. Andando distraidamente, olhou para o segundo andar de um repartição pública, onde um pomba-rola pousara num dos três mastros da fachada para fazer uma cuidadosa limpeza nas penas da asa direita. Lorena, naquele instante, chocou-se de frente com uma menina-moça que caminhava também meio desligada, enternecida por um cãozinho de rua que abanava o rabo sem receber dos transeuntes qualquer atenção. Ambas reagiram com bom humor diante da colisão. Enquanto ajudava a jovem a apanhar os cadernos e o diário pessoal que ela deixara cair no chão, a mulher de Hélio sentiu um familiaridade marcante naquele semblante. Convidou-a para tomarem juntas um refrescante suco de abacaxi na lanchonete da outra quadra, pois o calor estava escaldante. A princípio, Aline, um pouco encabulada, alegou um compromisso qualquer, tentando se esquivar da proposta, porém Lorena acabou convencendo-a com uma habilidade maternal. No desenrolar da animada conversa que tiveram naquele dia, descobriram o parentesco próximo que as unia. Na última vez que haviam se encontrado, Aline era ainda uma garotinha de seis anos de idade, por isso não tinha qualquer lembrança do convívio com aquela senhora à sua frente, sua tia. Algumas desavenças antigas haviam dividido a família e a discórdia estendera-se aos descendentes. Na realidade, esses últimos pouco sabiam da verdade sobre os fatos, mais ainda assim não "se davam". Lorena, contudo, recordava-se perfeitamente daquele rosto delicado, que conservava os mesmos traços meigos da infância.


Fonte: Trecho de "O Grande Pajé", conto-crônica que dá título ao meu 2º livro.