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terça-feira, 14 de agosto de 2018

A Deusa Mãe



Durante os últimos três milênios, as principais religiões do mundo cultuaram o Princípio Divino Masculino. Apesar das diferenças entre os conceitos, dogmas e práticas do judaísmo, islamismo e cristianismo, a Divindade Suprema é personificada por arquétipos masculinos, os mitos e a estrutura sendo enfaticamente patriarcais. Mesmo que existam figuras femininas honradas e celebradas, elas não são consideradas forças primordiais e criadoras, seus papéis e atribuições sendo secundários.
Apesar de, no momento, essas religiões prevalecerem no cenário mundial, a origem delas é relativamente recente. Há provas irrefutáveis de um antiquíssimo culto a uma Divindade Criadora chamada genericamente de “A Grande Mãe”, como comprovam milhares de estatuetas de figuras femininas datadas dos períodos paleolítico e neolítico (50.000 a 30.000 anos atrás).
Antes consideradas meras “vênus pré-históricas”, esses objetos de culto em pedra, argila, osso ou mármore são vistos atualmente como representações da Deusa Mãe, conforme comprovam os estudos, livros e pesquisas de cientistas mulheres (antropólogas, arqueólogas, sociólogas, historiadoras, escritoras).
A Grande Mãe representa a totalidade da criação e a dualidade vida/morte, pois sua essência é imanente e permanente em todos os seres e em todo o Universo. Seus múltiplos aspectos e manifestações representam e reproduzem o ciclo de nascimento, crescimento, florescimento, decadência, morte e renascimento da eterna dança espiral das vidas.
A Deusa Mãe foi a suprema divindade do planeta durante pelo menos trinta milênios, reverenciada por seu poder de gerar, criar, nutrir, proteger e sustentar todos os seres. Conhecida sob inúmeros nomes e representações de acordo com a cultura e a época, a Deusa era a própria Mãe Terra, a energia da vida e morte do planeta, venerada no ciclo das estações, nos fenômenos da Natureza, na riqueza e na beleza da terra, do céu, das estrelas, das montanhas, das águas, das plantas e dos animais.
Com o advento das idades de bronze e do ferro, as pacíficas civilizações matrifocais da Deusa entraram em declínio. Invasões sucessivas de tribos guerreiras e nômades trouxeram uma onda de violência e destruição. Uma nova civilização baseada em modelos de dominação e autoritarismo foi imposta, iniciando-se a perseguição da antiga religião da Deusa e de suas representantes – as mulheres. Os invasores trouxeram um panteão de deuses guerreiros, donos das tempestades, dos raios e das batalhas. O sexo da criadora foi mudado – a Mãe tornou-se Pai e a Deusa, transformada em consorte, filha, amante - depois finalmente ignorada e esquecida.
Seguiu-se a Idade da Razão e, com o surgimento do racionalismo e das correntes materialistas e dialéticas, a supremacia do espírito sobre a matéria passou a ser negada. Somente no século XIX o movimento romântico trouxe de volta valores femininos - no entanto, de uma forma idílica, idealizando somente as virtudes e a fragilidade da mulher. Infelizmente, o monoteísmo judaico-cristão, que proclamou um só criador – o Pai - e considerou a mulher a origem do pecado e de todos os males, suprimiu os símbolos do poder divino da Deusa, como sendo maléficos ou pecaminosos. Mesmo assim, as imagens, os atributos e nomes sagrados das tradições da Deusa (principalmente de Inanna, Cibele, Deméter e Isis) foram absorvidos e adaptados no culto de Maria. Com a extinção definitiva dos cultos da Deusa nos países cristianizados e a conseqüente perseguição e difamação dos valores sagrados femininos, somente fragmentos das antigas celebrações, tradições, práticas e conhecimentos velados permaneceram disfarçados nas crenças populares, nos costumes folclóricos, nos contos de fadas, nas terapias xamânicas.
No entanto, observa-se atualmente, no mundo todo, o ressurgimento dos valores e da busca do Sagrado Feminino, como uma necessidade de cura profunda da psique individual e coletiva fragmentada pela dicotomia da racionalidade. O movimento feminista encontrou nos arquétipos das Deusas modelos positivos de fortalecimento e auto-transfomação. A emergência da Deusa na consciência ocidental trouxe uma nova/antiga visão da Terra, favorecendo o surgimento da hipótese Gaia (da interdependência de todas as formas de vida no planeta ), das preocupações ecológicas, das terapias xamânicas, da renovação nas religiões fundamentalistas e tradicionais como o cristianismo e o judaísmo. Religiosos católicos como Matthew Fox estão aceitando uma nova visão de Deus como Mãe, a freira Meinrad Craighhead está pintando imagens de deusas vistas emsonhos e visões, as mulheres judias voltam a reverenciar Shekinah, a representação hebraica da divindade feminina.
Os movimentos neo-pagãos, como as várias vertentes da Wicca, as tradições xamânicas de várias origens, algumas Escolas de Mistérios e uma multiplicidade de seitas e organizações estão adotando a teologia dualista, reverenciando ambos os princípios - o Deus e a Deusa - e acrescentando uma fusão de antigas crenças folclóricas européias ou nativas, reminiscências dos antigos festivais agrários, arquétipos mitológicos e práticas mágicas e curativas, tradicionais ou recentes. Nesta amalgamação de crenças sobressaem-se o reconhecimento e a reverência à Deusa, com adaptações regionais ou pessoais.
Há também uma crescente divulgação da espiritualidade feminina na literatura, arte, música e terapia. O eco-feminismo ou o ativismo político e ecológico, o empenho para a transformação interior e a conseqüente necessidade da renovação individual e global são sinais evidentes e benéficos do retorno da Deusa. Sua volta não significa retomar as antigas práticas e crenças religiosas, mas revalidar o Sagrado Feminino, criar uma nova cosmologia centrada na Terra, curar as cisões individuais e coletivas, promover uma nova ética baseada em valores espirituais e a reverência pela vida, buscar soluções pacíficas para a nossa sobrevivência e convivência, realizando assim, em nós e ao nosso redor, o Casamento Sagrado: da luz e da sombra, do espírito com a matéria, do animus com a anima, do Céu com a Terra.

sábado, 4 de agosto de 2018

O conto da vasectomia


            
              Minhas recentes férias do trabalho renderam mais esse. Felizmente, a inspiração continua, queiram ou não os críticos.



             “Cavalo amarrado também pasta”.
           
             Foi apoiada nessa máxima popular, típica das raparigas, que ela cedeu aos galanteios daquele homem casado. Valtinho, é bem verdade, era um predador nato, tinha o dom da conquista e a lábia certa. Sua fungada no cangote era mortal, paralisava. Quando falava no ouvidinho, baixinho, então, nem se fala. Arrepiava a mulher do cócix até a medula.
           Ela cedeu á ele. Cedeu-se por inteira e sem reservas. Aproveitou tudo o que pôde daquele potro aceso, faiscante, amarrado à sua cerca. Gertrudes tinha, na época, pouco mais de vinte anos o que, parcialmente, justifica a sua leviandade.

          -- Vem, minha eguinha fogosa... Olha só, isqueci di pegá camisinha na farmácia hoji. Mas fica tranquila qui não vai tê problema nenhum. Eu não tinha ainda ti falado...  Eu fiz vasectomia...

            Logo no início do romance, Valtinho saiu-se com essa. E ela? Inacreditavelmente acreditou. Convenceu-se que daquele mato não saía mais coelho. O desfecho? Nove meses depois, no Hospital Materno Infantil Presidente Vargas veio o fofo do Otávio.
         Caiu, é fato, no conto da vasectomia. Daquele mato ainda saía coelho sim, que o diga Gertrudes.

                                                                                               Cesar