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sábado, 29 de agosto de 2020

Sobre maconha, leis e bandidos






         Tornar as drogas ilegais não as faz indisponíveis.


          Quando vamos a uma padaria, no caixa, á vista de uma criança, há sempre uma propaganda de cigarro, responsável por incontáveis mortes em todo o mundo. E, no entanto, um jovem amigo meu, branco de classe média, foi preso comprando maconha, e não há nenhuma morte associada ao seu uso. Ele dormiu numa cela com quarenta bandidos, até que no dia seguinte foi solto: sua mãe conseguiu um advogado. Se ele fosse da periferia, onde a maior parte dos jovens é afrodescendente, provavelmente estaria até hoje apodrecendo na cadeia. Para que punir quem usa droga com prisão, quando se sabe que não existe cadeia sem drogas?
          Há algum tempo atrás, uma amiga antropóloga fez uma pesquisa numa conferência de sadomasoquismo num dos hotéis da rede Holiday Inn. Se os sadomasoquistas podem curtir sua vida como quiserem, por que um sujeito não pode escolher a substância que pretende consumir? Se alguém pode saltar de paraquedas, ou praticar algum esporte de risco, apenas seguindo umas poucas regras de segurança, por que, no caso de uma substância recreativa, o governo pode proibi-la?
          O cigarro mata, faz mal, dá mau hálito, mas alguém acha que proibir é o bom caminho? Muitos dizem que em países como o Brasil as pessoas não têm educação para decidir o que fazer. Na nação das construtoras, a democracia é carbonizada com propina. Além de ser difícil confiar nos nossos legisladores, tornar as drogas ilegais não as fará indisponíveis. Tenho a convicção de que a porta de entrada é o traficante, porque é ele quem vai oferecer uma nova substância mais aditiva ao usuário, e não a maconha em si. Não faz sentido achar que a maconha leva ao crack. É como dizer que a masturbação leva ao estupro. Hein? A Holanda sabe disso e, apoiada na teoria da separação de mercados, lançou mão de uma anomalia jurídica: o coffeeshop, onde a polícia tolera a venda de pequenas quantidades de maconha obtida de forma ilegal. Ainda assim, o país teve sucesso em afastar o usuário de maconha da heroína. Décadas depois, o Estado do Colorado, nos Estados Unidos, foi além criou os dispensaries, que vendem maconha legal a maiores de idade, minando a vida de traficantes locais, economizando em construção e manutenção de presídios e ganhando dinheiro de impostos para investir em escolas.
          Um amigo meu me levou outro dia a um bar caro e chique de samba no Vidigal, no Rio (local antigamente chamado de favela). Por que não se vende ali maconha de forma legal? Os impostos não poderiam ajudar a ter escolas melhores, mais esporte, lazer e cultura, estes sim fundamentais na prevenção ao abuso? Alguém acredita que a lei realmente impede alguém de fumar maconha num morro? Ciência e racionalidade estão acima do moralismo, tradicional cortina de fumaça usada por muitos para esconder suas verdadeiras agendas. Brasil, está na hora de regulamentar a maconha. Afinal, não estamos apertando os aposentados e trabalhadores em busca de mais recursos para o Estado? Por que não lucrar com os impostos da maconha e economizar dinheiro da falida guerra contra as drogas? Mais importantes são as vidas perdidas e o futuro interrompido na periferia.



                         Fernando Grostein Andrade
                            VEJA 03/05/17

domingo, 16 de agosto de 2020

Um Profeta



O Eterno disse:
-- Homem mortal, quando os israelitas conversam perto das muralhas da cidade ou na porta de suas casas, eles falam de você. Eles dizem: "Vamos saber o que o Eterno tem para nos dizer agora."
Para eles você não passa de um cantor de canções de amor ou tocador de harpa. Eles ouvem o que você diz, porém não fazem nada daquilo que você manda. Porém, quando acontecer tudo o que você diz -- e vai acontecer mesmo -- aí eles ficarão sabendo que um profeta esteve no meio deles.

                                                                                                     Ezequiel 33:30-33

sábado, 1 de agosto de 2020

Mordidas- Um aposentado em apuros


Eis que toca a última “marca” da noite. Àquelas alturas, quem ainda não conseguira um par, parte numa última e quase desesperada tentativa de sair acompanhado do baile e quem sabe, até mesmo desfrutar algo mais naquela fria noite rio-grandina. A orquestra Tempos Idos caprichou na saideira e despejou sem dó nem piedade o samba-canção “Ninguém me quer”, do reconhecido compositor papareia Pinho Noronha. Os mais sentimentais caíram aos prantos naquele momento extremo que ressoava como um funeral às suas pretensões amorosas. A simples idéia de voltar para casa sozinho e enfrentar no retorno as grosserias do motorista de ônibus indignado pelo fato de transportar velhos gratuitamente, enchia qualquer ancião de profunda amargura.

Honório aproximou-se de Aldiva e sem maiores delongas disparou:


- Das-me u prazer dessa contra-dança?

- Oh, sim.


No pé do ouvido dela, Honório começou a desenrolar o seu já manjado carretel:


- Sabi, eu sô aposentado da extinta Companhia Swift... mi aposentei muito bem... U qui eu ganho dá pra vivê bem... Não tenho nenhum vício. Não bebo, não fumo, não jogo... Admito qui gostu di assití as carrêra no prado, mas mesmo assim não sô muito di apostá... U meu maior problema sabi qual é? É qui eu sinto falta duma companhêra... Agora nu mês qui vem faz cinco anos qui a falecida si foi... Acontece qui eu continuo “esperto”, entende? Eu sei qui isso não é tudo numa relação, mas uma mulhé dévi sempre sabê u qui u homi podi lhi oferecê... Sô também muito limpo pru meu corpo... Gosto di tomá banho todus us dia, mesmo nu inverno...


Aldiva interessou-se pelo currículo de seu pretendente e numa clara demonstração de cumplicidade, deixou-se oscular na testa ao término da melodia. Despediram-se trocando endereços para possíveis contatos.

Todo faceiro, o aposentado tomou o rumo da sua casa embalado pela eminente possibilidade de finalmente ter encontrado alguém para esquentar-lhe os pés nas noites frias do inverno gaúcho. Deu uma folga ao transporte coletivo urbano da cidade, optando em fazer a pé o trajeto de dez quarteirões que separava o bailão Vovô Dance da sua casa. A caminhada ia desfechando com um final feliz quando, a apenas quatro quarteirões da linha de chegada, Honório sentiu uma forte fisgada num nervo qualquer da perna direita. A dor era tanta que foi ele obrigado a sentar-se por alguns instantes no meio-fio até que a maldita contusão desaparecesse ou pelo menos abrandasse os seus efeitos. Foi somente aí que percebeu, ao olhar para trás, onde havia parado.

Estava defronte a casa nº 375 da Travessa Niterói, mais precisamente no território de “Nélio Siri”, famoso nas redondezas graças aos dois vira-latas seus que atacavam impunemente os transeuntes que pisavam naquela calçada. Nélio criara os cães como verdadeiras bestas selvagens, excluindo-lhes de todo e qualquer privilegio ou contato com cadelas. Misturava à suas rações diárias medicamentos que alteravam consideravelmente o sistema nervoso, deixando-os irritadiços, estressados e agressivos.

Num sobressalto, o aposentado readquiriu a postura ereta, própria para a locomoção, porém ao completar a 5ª passada, escutou um rosnado quase imperceptível mas ameaçador misturado à percussão de pequenas patas em ritmo de galope. Mal teve tempo de raciocinar o que poderia ser (apesar de ter uma leve suposição) quando sentiu um golpe cortante no tornozelo esquerdo. Fora uma feroz mordida aplicada por Toco, uma das abomináveis criaturas que davam fama ao local. Visivelmente tenso, mas tentando aparentar tranqüilidade ele prosseguiu a caminhada, reprimindo o grito de dor que ficou entalado em sua garganta. O cão então atacou-lhe pela 2ª vez. Novamente, impassível, seguiu em frente. Ouve então uma 3ª ofensiva. Já com o calcanhar bastante esfolado e o mocassim branco rasgado na parte de trás, Honório finalmente esbravejou uma reação:


- Cusco disgraçado! Infiliz! Vem! Vem qui eu ti abro a molêra cum essi pedregulho aqui! Vem di novo, ordinário!


A gritaria chamou a atenção dos transeuntes e de Xuxu, que terminara de decapitar a dentadas um rato que bebera avidamente a água de sua vasilha no fundo do quintal. O ancião, ao contemplá-lo, percebeu o enorme perigo que ameaçava a sua integridade física. Eram dois cachorros loucos contra um velho indefeso e amedrontado. Para surpresa geral dos espectadores ali aglomerados, os cães inicialmente ignoraram a sua presa para entrarem em violenta luta corporal um contra o outro. Aproveitando-se do momento oportuno que surgira inesperadamente, Honório organizou a sua retirada estratégica. Nélio Siri acabou despertando do seu sono para pôr um termo naquela briga doméstica, atiçando as suas feras contra o inocente:


- Velho otário! Skss, skss, skss, Pega! Pega!


Desta vez o coração do aposentado da Companhia Swift ficou á beira de um enfarte. Com o dedo médio da mão esquerda apontando para a constelação Ursa Maior, o braço trêmulo, mas rigorosamente esticado para cima, com a mão direita agarrada hermeticamente à sua calça azul de tergal na altura do bolso direito e os olhos inalteradamente fixos num ponto imaginário na linha do horizonte, ele tombou. Os cães avançaram com os olhos injetados de fúria, sem qualquer sinal de compaixão ou acanhamento. Somente quando a viatura de prefixo 018 da Brigada Militar foi acionada a carnificina teve fim. Os brigadianos usaram bombas de gás lacrimogêneo para conterem Xuxu e Toco.

Nélio prestou depoimento na 29ª Delegacia de Polícia, sendo indiciado por abuso contra animais, aumentando assim a sua nada modesta ficha criminal, que entre tantos delitos registrava: agressão com lesões corporais, extorsão, formação de quadrilha, falsidade ideológica, uso indevido do pavilhão nacional, porte ilegal de armas, atentado ao pudor e desacato à autoridade. Para defendê-lo no tribunal o réu contratou os serviços do obscuro advogado Flavio Santino, o “Coalhada”, que jamais havia entrado no Fórum de Rio Grande para defender alguém durante os 4 anos em que ali chegara. As poucas informações que existiam á seu respeito foram fornecidas pelo popular e conceituado despachante Netto, seu ex-colega de faculdade e ex-sócio num escritório em Arvorezinha, cidade interiorana do estado do Paraná. Segundo Netto, Coalhada sempre fora um vagabundo que vivera ás custas do pai. Cursara Direito apenas para não perder o direito à gorda mesada que recebia do velho. Na faculdade, muito pouco estudara para as provas, preferindo anexar pequenos lembretes no bolso, garantindo assim a sua aprovação. Foi assim, colando como um louco, que conseguira o canudo. Depois de formado veio a tona toda a sua mediocridade no exercício da profissão. Perdeu praticamente todos os casos que disputou, gerando um descontentamento geral entre seus clientes. Usava argumentos tão falhos que até mesmo os casos mais fáceis do mundo judiciário acabavam transformando-se em derrotas. O escritório no Paraná foi à falência e Netto, o maior prejudicado na história, teve que arcar sozinho com todas as despesas correntes, já que o “amigo”, alegando uma antiga hérnia de disco, supostamente internou-se ás pressas num hospital de Curitiba para tratar da enfermidade.

Para surpresa do despachante, agora sediado também em Rio Grande, o ex-sócio, tal qual a ave Fênix, ressurgiu repentinamente de suas próprias cinzas, num inesperado retorno aos tribunais.


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No dia do julgamento Honório recebeu alta do hospital onde se recuperara dos transtornos físicos e mentais que o incidente lhe ocasionara. Durante aproximadamente um mês e meio, sob os cuidados do Dr. Péricles e sua eficiente equipe médica, reaprendera a apreciar as coisas belas, recuperando o seu carinho pelos animais e perdendo o medo das mandíbulas que haviam trucidado a sua carne. Ainda com alguns esparadrapos nos calcanhares e na canela esquerda, quando indagado sobre seu possível plano de vingança pelo motorista da ambulância do SUS que o levava para casa, limitou-se a responder em tom drástico:


- Meta-se com a sua vida!


Às quatorze horas e trinta minutos, pontualmente, iniciaram-se os trabalhos no Fórum. Flávio Santino mostrou-se reticente, vago e em alguns momentos incoerente na defesa do réu. Por diversas vezes foi repreendido pelo juiz, Dr. Isnasrd Terroso, por empregar uma linguagem chula, totalmente inadequada para um defensor versado em leis e princípios éticos. Fugiu insistentemente do assunto proposto, dando lugar á considerações pessoais pouco oportunas ao inquérito. Citações de Tucíades, Empódecles, Anaximandro e Protágoras misturaram-se a cantigas de trovadorescos portugueses do fim do século XII, numa triste exibição de erudição:


- “No mundo mom me sei parelha,

mentre me for com me vai,

ca já moiro por vós – e ai!

Mia senhor branca e vermelha,

queredes que vos retraia

quando vos eu vi em saia!...”


Quando preparava-se para entoar uma ária da ópera Carmem de Bizet, foi interrompido pelo martelo do Meritíssimo que irritado com o comportamento ébrio do distinto advogado, encerrou prematuramente a audiência. O Promotor Público não teve muito trabalho para conseguir a pena máxima para o infrator, que antes de ser cordialmente escoltado pelos guardas conseguiu ainda desferir um pontapé no estômago de Coalhada.

Honório recebeu uma gorda indenização pelos danos sofridos e os cachorros foram doados ao IVPP (Instituto Veterinário de Pesquisas Psiquiátricas), que aprofundou através daqueles experimentos vivos os estudos sobre distúrbios neurológicos caninos.


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Mas as mordidas não pararam por aí. O aposentado conheceu uma mulher vinte anos mais nova que ele e revolveu desposá-la. A rapariga mordeu mensalmente todo o seu benefício previdenciário e mantinha contatos paralelos com outros varões em idade fértil.

Sobre o assunto o velho limitava-se á retrucar:


- U qui importa é qui eu sô filiz.


                                                                                    Cesar


"Mordidas"- Utopias Papareias- Edição 2007