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quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

"Apóstolo" Paulo, afinal das contas, viu mesmo Jesus ou foi insolação?

 



          Ao longo da história e até os dias de hoje, muitos são os que se dizem apóstolos do Cristo, afirmando terem alcançado a graça de Vê-lo frente à frente. Grande parte desses, no entanto, acabam ensinando e agindo exatamente o contrário do que o Mestre publicamente ensinou.
          É de conhecimento notório que na região de Damasco, fronteira com a Síria, cercada por desertos,  sempre bateu sol direto e forte, ocasionando, não raras vezes, tontura e confusão mental. Por esse motivo, quem escolheu a segunda opção do questionamento que intitula essa postagem, pode estar redondamente certo. Paulo foi um dos maiores assassinos dos seguidores de Jesus e, segundo o livro de Atos, no Novo Testamento, se arrependeu, literalmente da noite pro dia, após se deparar, numa estrada de acesso à cidade de Damasco, com o espírito do Rabi galileu, recebendo dele uma missão de vida (At 9:1-9). O grande problema nessa miraculosa narrativa inserida nas Escrituras é que o convertido, na sequência dos fatos, escreve coisas e se comporta em sentido oposto à pregação do Filho de Deus e seus apóstolos diretos. Vejamos apenas dois pontos, pra não tornar a leitura enfadonha demais:

* Paulo não levava muita fé nas mulheres, apesar da compaixão e respeito que Jesus demonstrou por elas.

"...conservem-se as mulheres caladas nas igrejas, porque não lhes é permitido falar; mas estejam submissas como também a lei o determina. 
Se, porém, querem aprender alguma coisa, interroguem em casa, a seu próprio marido; porque para a mulher é vergonhoso falar na igreja." (1Co 14:34-35)


* Jesus afirmou não vir destruir a Lei, apenas confirmá-la e que todo aquele que, mesmo sutilmente,  ensinar a desrespeitá-la, dever ser considerado o último no Reino do Céu. (Mt 5:17-20). Já Paulo, em Gálatas 2:16,  num embate com os autênticos discípulos, crava sem qualquer reticência, que a fé no sangue do Crucificado é mais importante do que tudo, inclusive a Lei.


          Resumidamente falando, só pra me despedir e desejar-lhes um Feliz Natal, temos fortes motivos pra acreditar que, se Paulo viu e escutou alguém falando com ele naquela ensolarada estrada, esse alguém, pelos indícios da sua pregação, provavelmente não era o verdadeiro Yashua, filho do carpinteiro José e Maria.

segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

No interior da mata


           Mais um fragmento de "Tribo de Papel", obra minha em processo de revisão,  escrita bem antes dos meus dois livros de contos lançados. Uma incursão à mata nativa brasileira.

 

         (...) A vibração emitida pelo canto daquela ave colocou ele num estágio de consciência diferenciada. Desfrutou um estado de relaxamento todo singular. O prazer era comparável à uma massagem no crânio. Se sentiu impelido a sentar na relva para entregar-se por inteiro ao momento. Uma brisa suave, que fazia sutilmente balançarem os arbustos de hortênsias, logo a sua frente, refrescava suficientemente aquela noite quente e estrelada de verão. A lua cheia, sem o auxílio de qualquer holofote, iluminava com resplandescência a fauna e flora do local. Podia-se tranquilamente, sem a necessidade de lanterna, acompanhar o meticuloso trabalho de tecelagem da aranha-caranguejeira entre duas folhas de costela-de-adão. Da mesma forma, era possível vislumbrar o praticamente inútil esforço do pernilongo pra desvencilhar-se da sua infalível teia.

          Não havia no coração do jovem qualquer medo ou anseio grande o suficiente para tirá-lo daquela viagem mística onde cada forma da natureza, por menor que fosse, adquiria singular importância no contexto daquela paisagem verde banhada de luar. O espaço favorecia amplamente momentos de reflexão. Como nunca, desde a sua emigração das matas, experimentou uma sensação de grande conforto. Sentiu saudades da aldeia. Mantivera, até então, distância de qualquer recordação emotiva que o ligasse ao passado. Era um cidadão realizado, profissionalmente falando, sem motivos aparentes pra pensar em seus tempos de curumim *, em meio aos parentes selvagens.

           Ali, no entanto, recordou que há tempos atrás, ainda menino, sonhou que um dia libertaria o seu povo. Permaneceu, longo tempo, num olhar meditativo em direção à mata. Murmurou, instintivamente,  um cântico guarani que aprendera dos ancestrais:

    Ndajarekoveima- Nhanderokoá py ndajareko veima

    Takua ty porã

     Ndajareko veima yary ra porã
     Jajapo haguã nhanderopyrã javy ' a haguã heta va' kuery

     Omo kanhy mba Nhanderú miri Oeja va' ekue 


          "Já não temos mais o que precisamos. Na nossa aldeia não temos mais taquareira como antigamente. Não temos mais madeira como antigamente, Já não podemos mais construir nossas ocas e nem nossa Casa de Reza, porque os não índios tomaram tudo o que nosso Deus deixou para nós."

                                                                                 



*  Menino, criança indígena.

sábado, 2 de dezembro de 2023

A matemática da tirania

 


  •           (...)"Portanto, a sombra de prazer do tirano, se a considerarmos de acordo com o seu comprimento, pode ser expressa por um número de segunda potência. E elevando este número ao quadrado, depois ao cubo, vê-se com clareza a distância que o separa do rei. E se, de igual forma, quisermos exprimir a distância que separa o rei do tirano, quanto a realidade do prazer, descobriremos, uma vez feita a multiplicação, que o rei é setecentos e vinte e nove vezes mais feliz do que o tirano e que este é mais infeliz em igual proporção".



           Extraído do diálogo de Sócrates no livro "A República" de Platão.


                                                      🌞🌞🌟🌟🌞🌞                                   
                                                                 

quarta-feira, 22 de novembro de 2023

O Òrìsà no ser humano, antes dele nascer

 



      A participação do Òrìsà na formação do ser humano começa antes de nascer. Na gestação o embrião já começa a ser protegido pelo Òrìsà, popularmente chamado de proteção na barriga. Em muitos casos são feitas seguranças para a Òsùn nesse momento, que podem variar no conhecimento de cada um em suas Bacias. Quando o ser está sendo gerado, principalmente quando a vida está em risco, a possibilidade de não existir o nascimento ou de vir a nascer com alguma deficiência física ou especial, se se quer que nasça uma criança saudável, a mãe é orientada pelas mais velhas e acompanhada pela parteira quando essa venha a nascer, principalmente se ela estiver dentro da comunidade. Ao nascer, pelos costumes arcaicos, a criança é apresentada para os fragmentos da natureza: ar, lua, sol.

       O cordão umbilical, enrolado em um algodão ou pano branco, é guardado em local da casa, geralmente junto dos Òrìsà, para que se for necessário em alguma ocasião, por questão de saúde, se faça um breve amuleto. Esse costume era feito nos tempos arcaicos da antiguidade: Se pede licença para a divindade da Terra, Odùduwà, se enterra a placenta num lugar do terreiro, se oferece a criança recém nascida para o Òrìsà e se planta uma muda de árvore. O recém-nascido vai crescer e acompanhar o crescimento daquela árvore, porque a partir desse momento os dois estarão ligados. A relação se torna sagrada para a criança que se torna adulta e começa a viver dentro da tradição, que começou a se perder quando os nascimentos, deixaram de ser feitos em casa, por parteiras, e passaram aos hospitais. Com a perda dessa tradição acabou um círculo de unir o ser com a natureza.

    



                                                                           



quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Unidos desde Òyó pelos laços familiares

 

orisa
Òrísá Òsun 


            Essa cadeia que nos alimenta desde os primórdios dos primeiros Yorubás, organizados que eram, passava em transmissão de seus conhecimentos para alguém interessado, confiável e de uma mente equilibrada, com uma cultura a ser ensinada na oralidade, e não na escrita, para que chegasse como chegou para uns e talvez não para todos. Assim passou a tradição oral do ritual de uma Nação que está na terra desde os primeiros Homo Sapiens, desde o início da humanidade, muito antes do cristianismo. Essa é a história escrita com H maiúsculo e ela vem de geração em geração passando na oralidade, que está no dia de hoje nos dando a chance de contar por várias vias as histórias de uma diversidade cultural que nossas ancestralidades nos deixaram, de uma forma tão viva como se eu tivesse vivido junto a eles nos seus tempos de prática da tradição.

            Quando eu faço a prática direcionada ao Sagrado, dentro do ojúbo (quarto de Santo) ou fora dele, sendo direto na natureza em seus lugares de moradia que são os matos, bosques, mar, pedreira, rio, cachoeira, cruzeiro, encruzilhada, cemitério, etc... quando estou nesses lugares o Áse (energia) é um pouco diferente de quando estou reverenciando algo aos Òrìsà dentro de casa. Ao meu ver, se eu digo que os Òrìsà são a própria natureza, o Àsé desse lugar se multiplica. Quando uma Òsùn recebe um leque fechado, ao ser aberto por ela, o leque nos mostra que direção vamos tomar em nossas vidas, só que certas vezes nós já mostramos à divindade Òsùn, antes dela abrir o leque, o que nós realmente queremos para nossas vidas e muitas vezes estas escolhas estão erradas. O que nos resta é ser humilde e voltar para ver se ela ainda está nos esperando para abrir o leque que só ela domina e, por minha experiência, tenho certeza que ela está a nossa espera, porque sei que Mãe não abandona filho. Sei que pode ser o inverso, mas se acontecer, volto a dizer: Òsùn, Yemojá, Obà, Oya, Òtin, nossas Mães no panteão Yorubá, elas não abandonam seus Omo (filhos), mas qualquer quer que seja o erro que nós venhamos a cometer, somos cobrados por elas. Não interessa o tamanho do erro nem para quem for, a cobrança é do mesmo peso quando se coloca na balança de Sàngó, o nosso Juiz.

            Até diziam os mais antigos que a cobrança de algum erro nosso é feita pelo Òrìsà masculino com muito rigor, e eles iam pedir para a divindade que fosse Mãe quem cobrasse. Para me fazer entender, na nossa Bacia o Pai está na cabeça e a Mãe no corpo, ou Mãe de cabeça e Pai no corpo, mas quem ordena e cobra é o dono da cabeça. Então vejo que a saída do filho castigado que vai buscar um colo, quem vai apaziguar vai ser o Òrìsà que corresponde ao corpo, e muitos vão correr pra Òsàlá, o Pai maior de todos, para que ele traga a paz com sua intervenção, e também dê o colo. Mas vejo que fazem isso nos casos em que o erro não é grave, mas mesmo assim a cobrança será feita.

quarta-feira, 8 de novembro de 2023

Tradições Yorubás praticadas nas senzalas no século XVIII

 

Imagem que apresenta o enredo da Escola de Samba Império
Serrano, "Ilú obá Òyó: A gira dos ancestrais", para o carnaval de 2024

                   E vendo o ato de canto de dança, os guardiões levavam ao conhecimento dos seus patrões, o barulho dos negros dentro da senzala, esperando suas ordens para silenciar com castigos e maus tratos. Falavam que os negros mal chegavam na senzala, começavam a cantar sem ter hora de acabar. Num desses dias, certo negociador e traficante de seres humanos escravizados tinha chegado na fazenda para tratar de negócios. Em uma negociação do comércio entre negros e açúcar para fora do Brasil, viu o "mal-feitor" reclamar dos escravizados pelo barulho e o comerciante entrou no assunto e perguntou o que os negros faziam após o duro trabalho nos canaviais. O fazendeiro convidou-o para ver com seus próprios olhos a satisfação deles depois de uma dura jornada de trabalho nos canaviais e, chegando lá, estavam mesmo cantando e dançando. O comerciante, acostumado a andar em fazendas, olhou para o fazendeiro e disse: "O que esses estão fazendo é Batuque, bater, batucar, é desse forma que lhe mostram que estão conformados com a escravidão". O comerciante disse que já sabia que eles, os negros, faziam essa prática de cantar e dançar e isso acontecia em outras fazendas. Lembrou que lá na África muitos negros eram caçados nesses momentos de diversão entre eles, de batuko. Assim disse o comerciante e recomendou: "Deixe eles batucarem, assim não se revoltam e esquecem do passado." À partir daí, com a denominação Batuque, os escravizados que tinham esse costume passaram a ter um pouco de paz nesse momento e o Batuque ainda está entre nós.

          O povo yorubá bate com os pés no chão e bate palmas com as mãos para rezar com suas divindades. Os fazendeiros não deram mais importância às batucadas feitas pelo negros dentro das senzalas, ficou o ditado entre eles, os escravistas: 'Deixem esses negros fazerem batuko, batuque, é uma forma deles demonstrarem alegria." Mas na realidade eles estavam falando com suas ancestralidades e suas divindades. Até hoje, essa denominação é usada em roda de samba. Quem não lembra desse nome pra se referir a uma festa com música e alegria? Quando perguntavam a alguém que vinha feliz de uma roda de samba, todos temos lembranças dessa pessoa dizendo "estava em uma batucada, um batuque ou batucajada".

          Por isso eu digo que Batuque é uma denominação da tradição do povo Bantu, mas que serviu para o Povo Yorubá no Rio Grande do Sul.

quarta-feira, 1 de novembro de 2023

A denominação "Batuque"

           


                    Entramos no mês em que, tradicionalmente, os brasileiros refletem com mais intensidade questões como o racismo e afirmação do povo negro, num mergulho à suas raízes africanas. Nada, pois, mais oportuno do que abrir a sala de visitas do blog pra alguém com linhagem e autoridade no assunto.

        Conforme sinalizei alguns meses atrás, trago á partir de agora, em quatro atos, "O Batuque de Nação Òyó no Rio Grande do Sul" um livro bem interessante pra quem estuda ou sente curiosidade sobre o tema. Independentemente da amizade que tenho com o autor, genuíno Mestre Griot da tradição yorubá, considero que a obra cumpre, numa linguagem popular e de fácil assimilação, o papel de esclarecer muitas dúvidas e tabus criados em torno da religiosidade afro-brasileira. 

        Espero que curtam essa viagem e, como eu, aprendam um pouco mais sobre esse assunto que carece ainda de maior explanação.


           O Batuque, ou Batuko, é uma denominação que, como muitas outras, veio na bagagem dos seres humanos escravizados trazidos do continente africano do século XVI até o século XIX. Mas, na oralidade, ele veio a ser trocado na boca dos escravistas de engenho. Na origem, Batuko ou Batuque, em Cabo Verde, é um prática cultural que existe desde há muitos séculos nesse povo.

       Na formação inicial, o Batuko cabo-verdiano é praticado por homens, mas seguidamente também por mulheres. Elas ficam sentadas no terreiro em formato de roda, batendo em algo tipo uma almofada revestida de couro colocada no meio das coxas. Ao bater coma a palma da mão tiram um som igual a de um tambor, com afinação grave. É praticado por senhoras e jovens, de todas as idades. Ao mesmo tempo, cantam alegremente, enquanto uma pessoa dança sozinha no meio da roda  e assim vão revezando no meio do terreiro,

      Todos os cabo-verdianos conhecem o Batuko, que ainda hoje é uma prática cultural muito conhecida. Há antropólogos e historiadores que estudaram o Batuko de Cabo Verde, como a pesquisa de Gláucia Nogueira intitulada "Percurso do Batuku: Do menosprezo a patrimônio imaterial", em que se encontram informações importantes. Quem me explicou o que sei do Batuku de Cabo Verde foi a senhora Sadine Correia, cabo-verdiana que mora em Porto Alegre, criadora da marca "Afroberdiana"

       Na colonização, por volta do século XVIII, O Batuku foi criminalizado pelos escravistas, como tantas outra práticas africanas. Há registros de proibição em um bando oficial do Governador Português de Cabo Verde, que dizia que essas reuniões de Batuku propiciam desordens à noite "com tanto excesso que chega a ser por todos os fins escandalosos a Deus e de perturbação às leis e ao sossego público". A mentalidade colonial sempre viu essas práticas culturais africanas como desordem que se opõe à moralidade e à civilização, sem compreender seu significado. No máximo, as visões mais ingênuas, permitiam o Batuko como uma prática que servia aos escravizados para "esquecer os pesares", como se fosse um simples divertimento.

       No Brasil, o Batuque propiciou uma forma do Povo de Òyó confundir aos seus guardiões e os senhores, seus malfeitores, para poder manter suas tradições e cultuar suas Divindades.

     Os negros escravizados aqui no Brasil saíam do trabalho braçal no sistema escravista e em seus momentos de descanso, no curto tempo que tinham, sem eles saberem que dia era do mês, nem que ano, nem onde estavam -- só sabiam que estavam acorrentados -- após saírem dos canaviais eram jogados dentro das senzalas. Num certo horário, um dos escravizados cantava e os demais respondiam em suas línguas nativas, e quando era permitido dançavam em rodas, um atrás do outro, batendo com os pés, quem ainda tinha força. Eu penso que era a única maneira deles lembrarem de suas origens e falarem entre eles em suas línguas nativas, e ao mesmo tempo rezar para suas divindade Òrisàs. Para eles era a única esperança de sobreviver do castigo que tinham no dia a dia, porque nunca foram abandonados pelas suas divindades Òrisàs.


                                                               Continua na próxima  postagem  

sábado, 21 de outubro de 2023

Como atingir a imortalidade

   


          Ainda jovem, Beethoven resolveu escrever alguns improvisos sobre músicas de Pergolesi. Dedicou-se durante meses ao trabalho e, finalmente, teve coragem de divulgá-lo.

          Um crítico publicou uma página inteira num jornal alemão, atacando com ferocidade a música do compositor.

          Beethoven, porém, não se abalou com os comentários. Quando seus amigos insistiram para que respondesse ao crítico, ele apenas comentou:

          -- O que preciso fazer é continuar meu trabalho. Se a música que componho for tão boa como penso, ela irá sobreviver ao jornalista. Se tiver a profundidade que espero que tenha, ela irá sobreviver ao próprio jornal. Então, se este ataque feroz ao que faço for lembrado no futuro, será apenas para ser usado como exemplo da imbecilidade dos críticos.

          Beethoven estava certíssimo, Mais de 100 anos depois, a tal crítica foi lembrada num programa de rádio em São Paulo.



Fonte: "Contos do Alquimista" Vol. I- Paulo Coelho- Editora Caras

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

A cadela da Íris





             Pra tentar desfazer o clima de desconfiança e mágoa que paira em torno de mim,        particularmente despertado em minhas leitoras, inicio o conto em estado de exaltação ao sexo oposto. Com efeito, em pelo menos dois trabalhos recentes, coloquei demasiada atenção e foco narrativo na sensualidade da mulher, um atributo encravado no próprio  instinto do gênero.
         A Edna de “Namoro de carnaval”, apesar de inteligente, fez-se vulnerável em momento de profunda carência afetiva e isso cobrou-lhe o seu respectivo preço, materializado na forma de Melinho, o “mulato de olhos acesos”. Fui além e talvez tenha me excedido um pouco ao descrever Mika de “Aquela dor de cabeça", volúvel ao extremo, paixão à flor da pele.
          Não pensem vocês, no entanto, que me comprazo em tornar evidentes todos esses peculiares aspectos de feminilidade, como se fosse esta a minha especialidade narrativa. Rebato, pois, esse estigma negativo com dados biográficos, abonadores da conduta deste sexo erroneamente considerado frágil.
          Temos hoje, pra começar, o exemplo da jovem Malala, que confrontou em seu país natal, o Paquistão, os temíveis terroristas Talibãs, lutando pelo direito básico à educação e igualdade de gênero. Foi a mais jovem pessoa a receber o Prêmio Nobel da Paz, aos dezessete anos, em 2014. Retrocedendo alguns séculos, Nzinga¹, rainha angolana nascida em 1582, governou aquela região da África por aproximadamente quarenta anos. Hábil e carismática, comandou grupos de guerreiros e se destacou como grande negociadora, diplomata e estrategista, usando táticas de guerra e de espionagem. Na segunda metade do século XX, tornou-se um símbolo anti-imperialista, servindo de inspiração na luta pela independência do seu país. Madre Teresa de Calcutá² foi uma missionária católica macedônia famosa por seu trabalho de ajuda às populações carentes do terceiro mundo. Logo cedo descobriu sua vocação religiosa. Com dezoito anos entrou para a Casa das Irmãs de Nossa Senhora de Loreto. Criou a congregação Missionárias da Caridade. Dedicou toda a sua juventude aos pobres. Em 1979 recebeu o Prêmio Nobel da Paz. Foi beatificada pela igreja católica em 2003 e canonizada em 2016.
          Já a Íris, pegando um link nesse último exemplo, com certa hesitação lhes revelo, de santa, não tinha definitivamente nada. Prêmio Nobel ou alguma outra distinção de mérito, até onde se sabe, jamais fez jus. Habilidades, até tinha e uma das principais delas lhe rendeu até apelido, desenvolvendo-se  e aperfeiçoando-se nela  após o divórcio, aos vinte anos de idade: “Destruidora de lares”. O título, não fui eu quem lhe outorgou, mas as próprias colegas de trabalho e vizinhas. Acabou, sem dó nem piedade, com nada menos que três casamentos e esses, logo em seguida, após refazer a minha defesa e breve consideração íntima, superficialmente narrarei.
                                                                                          ***********************
      Num impulso talvez instintivo, acabei, logo no início, me extraviando do tom conciliador dos primeiros parágrafos. O conto-crônica que despontava ser uma exaltação à presença feminina na história, acabou enveredando, mais uma vez, pelo caminho da baixaria e isso enlaçou-me em contradição. Ao mesmo tempo em que peço a vocês leitoras, desculpas, firmo aqui um compromisso que, daqui pra frente poderá, se descumprido for, abalar ou afirmar definitivamente a minha credibilidade enquanto homem. O deslize parece ter sido mais forte que eu e a caneta, como que em obediência cega ao meu subconsciente, de novo, atraiu-se pela vida alheia. Agora, pois, que dei os primeiros passos àquela já manjada direção, principalmente pra não deixar na mão quem, na melhor das hipóteses, gosta ou tolera, sigo em frente nessa pegada, perdoem-me. 
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          Na visão da ciência comportamental e biológica, o CIO refere-se a um período em que fêmeas de diversas espécies ficam mais receptivas a atividades reprodutivas, buscando com um pouco mais de frequência, parceiros pro acasalamento. Em linhas gerais, isso ocorre apenas em ciclos, como as estações do ano, não é normal que dure permanentemente. Ocorre, no entanto, que em alguns casos pontuais essa particularidade específica vem com mais força ou manifesta-se em intervalos atipicamente curtos.
          A cadela Pretinha, lembro-me bem, na minha antiga rua de chão batido na zona sul de POA, ilustra com riqueza de detalhes esse primeiro caso atípico em que os instintos de procriação não falam mais alto, BERRAM. Não fui só eu quem viu. Vizinhos também presenciaram o bichinho esfregando a “periquita” no focinho dos pretendentes, sem fazer menção de fugir ou impedir o assédio se sentando ao chão, como a maioria das cachorras fazem quando entediam-se de serem usadas como objeto de consumo. Era uma cadelinha acesa, requisitada, ativa em seus momentos de cio que, diga-se de passagem, eram vários num mesmo ano.
          Essa volubilidade ocasionava, como era de se esperar, transtornos aos seus donos, que não a castravam e viam-se frequentemente às voltas com ninhadas de cachorrinhos bebês dentro do pátio. Certa ocasião, numa tentativa de moralizar a situação, Íris e o companheiro encurralaram um cusco amarelo e magro dentro do pátio, enquanto o coitado montava a Pretinha. Em seguida ouviram-se estalos de tábuas batendo no dorso do assustado pet, que enquanto apanhava dos dois ouviu ainda duras reprimendas do tipo:

-- Agora tu vai aprendê a não entrá no pátio dos ôtro!

-- Te atreve a vim pegá minha cadela di novo pra tu vê o que qui eu ti faço, bicho dus inferno! 

          Pretinha, se correta estiverem as minhas contas, pariu três ninhadas no período de um ano, o que torrou de vez a paciência da Íris, que convenceu o parceiro a uma drástica solução: Sumir de vez com a cachorra, numa estrada da zona rural, próxima à Praia do Lami, extremo sul da capital gaúcha. O que fizeram com os filhotes, á cada cria anteriormente nascida, isso ninguém ficou sabendo. Simplesmente, um á um, iam desaparecendo.
          Ironia do destino, e vocês me entenderão logo em seguida, foi o que aconteceu dois meses após o exílio do Lami. A rapariga e o companheiro, por motivo torpe e banal, trocaram tapas dentro de casa, só parando com a intervenção de vizinhos. Foi o fim de uma união estável que durou quase quatro anos e encerrou-se com uma representação judicial de Maria da Penha³. Solicitou ela, medida protetiva que impedia seu antigo macho de aproximar-se á menos de quinhentos metros dela, distância que, no andar da carruagem, acabou sendo reduzida literalmente á nada. Pelo menos umas duas vezes, segundo um vizinho, foram avistados juntos, se trancando em casa sozinhos, pra sessões de nostalgia, coisa que decididamente não é da minha conta, ninguém precisa me lembrar
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          Talvez pra muitos não faça qualquer sentido voltar atrás pra defender algo aparentemente tão inexpressivo quanto uma cadela. Minha simpatia pelos animais, no entanto, impele-me justamente á isso. Esse substantivo feminino, no jargão popular, é um termo pejorativo que denigre a reputação da mulher. Em contraponto ao significado,  nomenclatura á parte, digno de registro, foi a capacidade da Pretinha acolher os filhotes à cada nova ninhada que pariu. Cuidou de todos, com aflorado instinto maternal, esforçando-se pra fornecer-lhes calor e amamentá-los. Defendia os seus protegidos com unhas e dentes. Não deixava visitantes estranhos, macho ou fêmea, homem ou bicho, chegar perto da sua casinha, um antigo balcão cheio de cupins, que chovia dentro e apesar disso foi improvisado como moradia. 
          Os indícios mostram-nos que essa característica pessoal do bichinho não foi herdada da sua antiga dona, que contrariando o que razoavelmente se espera de uma mulher que abriga um feto dentro de si, durante nove meses, não priorizava o bem estar de suas crianças. Parecia, numa análise superficial, odiar cada uma das filhas, estorvos a novos relacionamentos amorosos. Queria curtir, aproveitar aquilo que é bom e a fazia revirar os olhos. Após namorar a dois, juntinho, aconchegado, sentia-se motivada, relax, descontraída, moça. Em casa, por outro lado, em meio aos afazeres domésticos, na companhia das gurias, tinha sempre os olhos turvos, era gritona, irritadiça, depressiva. Gostava, acima de tudo e sem sombra de dúvidas, do romance apaixonado, do beijo na boca e não é por isso que eu a recrimino, quem sou eu. De vocês, aliás, quem não gosta dum enrosco, atire, pois, a primeira pedra. É bom sim, faz bem até pra pele, dizem os cientistas. Tira o stress, aumenta a autoestima, rejuvenesce.
          Ela tava, portanto, ao menos em parte, certa. O que a tornava um caso pitoresco em relação à média habitual era a intensidade com que os instintos reprodutivos invadiam-na. Pelo menos nesse ponto G da questão, em nada a rapariga era superior á sua própria cadela. Era fera no cio e bicho vadio uivando paixão.

                  A destruidora de lares

          Dizem, porém, que ela não foi sempre assim, que acreditou um dia em conto de fadas. Decepcionada, com um B.O (Boletim de Ocorrência) de traição, no seu primeiro caso amoroso sério, entretanto,  separou-se, deixou a filha com a vó e passou a destruir, sem dó nem piedade, matrimônios de papel passado.
          Oscar foi o primeiro, onze anos de casado, quatro filhos, encanador hidráulico muito requisitado na construção civil, pai amoroso que só tinha olhos pra esposa. Conforme o dialeto do povo, “riscava numa só caixa de fósforos”. Ao ouvir Íris, de uma amiga em comum, que tudo naquele lar parecia dar certo, inflou-se de inveja. Encurralou o homem até fazê-lo perdido de amores por ela, ao ponto de pedir divórcio da antiga companheira de uma década. Amigou-se com  o cara por um período não superior a oito meses e após isso, satisfeita com a desunião concretizada, abandonou-o com se faz com roupa desbotada que perde o brilho. 
     Quem acha que a rapariga se satisfez plenamente e que algum lampejo de arrependimento invadiu lhe o peito após seu primeiro caso proibido, é porque não sabe ainda de que maneira a preta se preparou pra receber a visita de um certo técnico em ar condicionado pra uma corriqueira avaliação e orçamento de serviço. Abreviando a minha análise sobre o assunto, não era o tipo de roupa que uma mulher direita espera um homem que, sabidamente, era casado à época. Aquele shortinho talvez fosse aplicável á um ambiente mais descontraído, de paquera, num quiosque á beira-mar, entre descompromissados. O Carlos, pra quem não sabe, era marido do pai da Aninha, colega de escola da sua filha mais velha. Sondou o terreno, observou o rapaz levando a menina pra aula, sempre jovial, brincalhão, às vezes de mãos dadas com a esposa. Informou-se sobre ele e escolheu a melhor hora pra atraí-lo ao seu cafofo do amor, tal qual aranha preparando a teia. Ligou, disse que o ar não tava esquentando, agendou visita pro dia seguinte, no início da tarde. Abriu a porta daquele jeito, bem á vontade, pouca roupa, comunicativa, dengosa. Carlos foi firme, á princípio, não balançou, tinha estrutura e metas estabelecidas com a família. Íris estava, no entanto, preparada ao extremo e obstinada. Perfumou-se, pôs música romântica na caixinha bluetooth, rebolou, se esfregou “acidentalmente” nele, ofereceu amendoim torrado, capturou, literalmente, todos os seus sentidos, vencendo aquela inicial resistência. A exemplo da primeira investida, foi lar desfeito, lar formado. Amigaram-se e dessa vez a paixão ardeu um pouco mais, foram dez meses e mais uma filha. Pariu ainda uma terceira criança, menina novamente, mas isso já faz parte do seu caso seguinte. 
          O cara era de igreja, todo certinho, noventa e nove por cento família. Foi, no entanto, aquele um por cento duvidoso, a causa da sua queda. De uma microscópica fagulha a morena de ancas grandes e cochas grossas fez o seu incêndio. Dessa vez, pra manter comigo meus antigos leitores fiéis, não me aprofundarei nos métodos de sedução empregados, bastando ressaltar que foi exatamente nesse período que surgiu, na boca da vizinhança, o apelido que até hoje, aqui e acolá a acompanha: Destruidora de lares.
                          ****************

          Feitas as devidas considerações, o fato que agora nos interessa, a voz que não quer calar, a bola da vez, o ponto crucial é o seguinte: Sua relação com as filhas. Desprezava-as como carga que não nos pertence. Não se ocupa mais em dissolver matrimônios, tenho que pontuar, mas não perdeu em nada o gosto pelo namoro. Gosta, é só perguntar, ele não nega, dum chamego bem gotoso.

- Se tu cruzá na frente da câmera quando eu tivé falando no celular com o cara de novo eu vô ti enchê toda di tanto tapa, guria disgraçada...

          Essa foi ouvida num final de tarde, era uma ameaça à filha caçula, que tentava receber alguma atenção ou carinho , num gesto natural e infantil de aproximação à mãe,  que paquerava ao smartphone. A rapariga era fria, distante, impaciente com a própria prole. Como qualquer criança e adolescente, necessitavam cuidados particulares, cada uma delas,  atrapalhando suas pretensões constantes de namoro.
          “Ai que saco!” “Assim eu não aguento”. “Guria me dexa em paz!” “Sai Pretinha, para di mi cherá bunda!” “Infeliz! Não lavasse a loça”! Expressões desse tipo, pronunciadas por ela, empesteavam o ar e eram repetidas à exaustão, praticamente todos os dias na casa. No decorrer do tempo o vocabulário acabou sendo transmitido às filhas, que passaram á brigar entre si pra extravasarem, talvez, o stress daquele convívio.
          Desabafo feito, razões e contrarrazões apresentadas, encerro, não só o conto, mas esse meu ciclo literário, com uma última avaliação pessoal em tom de sentença. Ironias à parte, não me resta qualquer sombra de dúvida: A cadela da história, pejorativamente falando, contrariando prognósticos iniciais, não se chama Pretinha.

                                                                                                                                   Cesar


¹ multirio.rj.gov.br

² ebiografia.com

³ lei federal brasileira cujo objetivo principal é estipular punição adequada e coibir atos de violência doméstica contra a mulher.

domingo, 1 de outubro de 2023

Morte e vida, moça e velha

 



                                           Antes de ser criança eu fui velha                              
                                           e de velha, eu morri.                          
                                           Morri tantas vezes de velha e de  moça
                                          que um dia senti.                                 
                                           Antes de ser velha eu fui criança    
                                          e, ao querer, eu cresci.                    
                                          Cresci tanto de criança pra moça                             
                                          que um dia eu parti                           
                                          Meu sorriso, que era puro, era sincero 
                                          e nunca foi moldura tão somente,               
                                          ficou comigo e de forma permanente       
                                          me acompanha em tudo o que espero.      
                                          Ai, as dores. Também elas são passagem.  
                                          Tatuam o coração de cicatrizes.         
                                          Depois de muito tempo, as imagens
                                          confundem-se em nomes e matizes...                      
                                          Porque eu morri tantas vezes.
                                          Porque eu vivi tanto e tanto.
                                          Porque vivi tantas vezes.
                                          E morri em um só tanto.


                                                                                                        Jacqueline Ainsenman

quarta-feira, 20 de setembro de 2023

A pedra


            


          A pedra, para a pessoa distraída é motivo de tropeço . Para o violento é uma arma.

              O empresário usa-a para construir. 

         O camponês cansado senta nela para descansar. Para as crianças é um brinquedo.

         Davi usou-a para matar Golias e Miguel Angelo fez dela uma bela escultura. Em         qualquer caso, a diferença não está na pedra, mas no homem. Não há pedra no seu caminho   que não possa usar para o seu próprio crescimento.  


Desconheço autoria

            

segunda-feira, 11 de setembro de 2023

Dermatite no pet

 

          Hoje trago uma dica de nutrição para nossos amigos pets. Há alguns anos utilizo essa ração vegana e a saúde dos meus dois cães atesta a qualidade do produto. Após o texto publicitário da empresa, vão algumas descrições de clientes. Espero que apreciem e se ficarem curiosos, visitem o site da empresavegpet.com.br


A alergia em nossos pets é um problema crescente - e muitas vezes, a razão pode estar bem debaixo dos nossos narizes: a comida que damos a eles 🙁

Muitas rações convencionais utilizam subprodutos que, infelizmente, podem ser culpados pelos problemas de saúde que nossos amados enfrentam. A Bicho Green tem recebido muitos relatos, realizando uma verdadeira transformação positiva na vida deles. 💙 

Nossa ração plant based tem sido um refúgio para centenas de pets e tutores que nos contam sobre as melhorias incríveis nas alergias, coceiras e questões gastrointestinais. 

Todos os relatos mencionados abaixo podem ser verificados na página do produto (ao final, tem a seção depoimentos de clientes)

"Salvou minha cachorinha."

"Gosto da textura do alimento e como as fezes ficam, e também o fato de ter contribuído para o fim da coceira de minha Amora."

"Ótima ração, meus dogs estão amando. Tenho um dog cheio de alergias e a ração contribuiu enormemente no tratamento. Não vejo ele se coçar mais e o tratamento tem evoluído muito!"

Acreditamos que cada pet merece o melhor. É por isso que queremos que você também leia esses e muitos outros relatos emocionantes em nosso site.



quinta-feira, 7 de setembro de 2023

Krishna Janmashtami

           


          Devotos do mundo inteiro, principalmente na Índia, celebram hoje o aparecimento na terra do Senhor Krishna, a oitava encarnação do deus Vishnu. Com humildade de coração, junto-me ao coro de homenagens para que uma onda de vibração elevada espalhe-se por nosso planeta.

Hare Krishna.

sexta-feira, 1 de setembro de 2023

Michael forever

 



"Acredito que toda arte tem como objetivo final a união entre o material e o espiritual, o humano e o divino. Acredito que essa seja a razão da própria existência da arte, e sinto que fui escolhido como instrumento para dar música, amor e harmonia para o mundo."                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                     Michael Jackson


sábado, 19 de agosto de 2023

Despedida na rodoviária

            


        O pequeno havia deixado cair ao chão uma moeda de R$ 1,00 destinada ao cigarro da mãe. Dirigiam-se ao armazém. A cena sintetizava a própria história daquela área municipal ocupada irregularmente por eleitores de um certo vereador, que no fervor da campanha eleitoral havia prometido transformá-la em bairro modelo, dotado de toda infraestrutura necessária. Estavam todos ali, amontoados, longe do centro da cidade e sem qualquer perspectiva de inserção social. Geravam mais e mais herdeiros pra dividirem aquela miserável herança. A educação precária á qual estavam submetidos, aliada às poucas perspectivas e vagas no mercado de trabalho da região, projetavam um triste destino aos jovens e crianças da vila. A criminalidade surgia, então, como aparente solução óbvia. Todas as formas de delitos e trapaças faziam parte de suas rotinas. Cada um desconfiava do vizinho ou até mesmo do próprio parente. Eram frequentes as pancadarias por disputa de utensílios domésticos, furtos, traições conjugais e demais rixas surgidas daquela estressante convivência diária.

            Como nada de belo havia à apreciar em seu cotidiano urbano, Mairi passou os seus últimos dias lá em total reclusão, na privacidade do seu apartamento. Estudou bem mais à fundo filosofia oriental, encontrando nela o alento que precisava para aqueles dias de expectativa. Silenciou dessa forma  as agitações internas que começavam a perturbar sua mente. Durante esse período de espera, interrompeu apenas raras vezes a sua meditação, sempre pra visitar o Dr. Munhoz, seu confidente, amigo e professor.

            Quando partiu, já não demonstrava qualquer sinal de hesitação. Aquele desafio interior transformara-se na motivação máxima da sua existência. O místico contato com aquele pássaro havia, de fato, marcado o fim de um ciclo e o início de outro. Não sentia mais qualquer atração pelo antigos objetivos de acadêmico típico da classe média. Na rodoviária, no instante exato da despedida, chorou baixo enquanto pronunciava as palavras finais à Munhoz, que como poucas vezes na vida,  também transparecia comoção. Como se fosse um pai orgulhoso, o educador fitou profundamente o aluno, numa silenciosa benção final antes da interrupção final, vinda dos alto-falantes:

-- Partindo às dezoitos horas, do box três, o ônibus da empresa Itamirim, com destino á Guaraíra.



Trecho do meu livro "Tribo de papel", escrito nos primórdios da minha juventude e ainda inédito do grande público.

sábado, 12 de agosto de 2023

À quem interessar possa, férias.

            


                    Situação funcional: De férias, finalmente. Não me queixo do meu trabalho, sou grato à ele, mas não ter muito compromisso com horário, durante quatro longas semanas, é bom. Organizar idéias e por elas no papel, é um compromisso. Ando meio preguiçoso, não tenho muita pretensão, mas alguma coisa nova vai sair, podem escrever. Quem sabe o número de postagens aumentem, por sua vez, nesse mês. É ver pra crer, é visitar pra confirmar. 

           Em  meu peito, já é primavera. Férias é 10, se é que vocês me entendem.

domingo, 30 de julho de 2023

O Rio Guaíba e o Àse.

           


          Os nossos mais velhos, nossas ancestralidades, usavam o Rio Guaíba para fazerem suas ofertas em Àse, uma tradição que está até o dia de hoje em nossa prática e da qual eu utilizo. Se olharmos para a Nigéria, no continente africano, lá quem é da tradição cultual Òsun tem o rio com seu próprio nome, Yemojá que é o rio Ògun e aqui temos o Rio Guaíba, o lugar onde os primeiros Bàbálórisà e Iyálórisà levavam suas obrigações para agradar as Divindades de Odó (rio).

          E vejam bem, também Yemojá, ainda que seja vista desde épocas antigas como divindade dos mares e oceanos. Mas no continente africano nem todos estão em volta do mar, Yemojá também é reverenciada em rio. Foi o que aconteceu aqui e ainda acontece até nos dias de hoje.

          Eu não vou levar uma canjica para o pai Osàlá ou quem mais recebe no mar, pela distância a que estou. Eu levo em Ipanema, no Rio Guaíba, chamo por Yemojá e ela me atende, como se fosse no mar. Vendo por esse lado, também vejo que o povo Yorùbá, depois da abolição, ao ofertar suas obrigações levavam ao rio, só mudaram de local pela história da diáspora, mas seus olhares e pensamentos quando olhavam para o Rio (odò) Guaíba ao despachar algo, posso até pensar que viviam em lembranças sobre histórias contadas pelos seus pais e parentes sobre África relacionada em odò (rio).

          

Do livro O Batuque de Nação Òyó no Rio Grande do Sul- Mestre Cica de Òyó- Hucitec Editora/2021

Já falei sobre esse autor, uma autoridade em cultura africana,  por aqui, mas desse obra falarei mais, na sequência.

quinta-feira, 13 de julho de 2023

Traduzir-se

                                                    



Uma parte de mim é todo mundo                Outra parte é ninguém, fundo sem fundo

Uma parte de mim é multidão                      Outra parte estranheza e solidão

Uma parte de mim pesa, pondera                Outra delira

Uma parte de mim almoça e janta               Outra parte se espanta

Uma parte de mim é permanente                Outra parte se sabe de repente

Uma parte de mim é só vertigem                 Outra parte linguagem


                                    Traduzir uma parte na outra parte

                                    Que é uma questão de vida e morte

                                                       Será arte?



Poema de Ferreira Gullar, A diagramação foi transcrita do encarte do álbum (LP) homônimo de Raimundo Fagner, lançado aqui no Brasil em 1981.

sábado, 1 de julho de 2023

Nicolas Winton e as 669 crianças salvas

 


          Em 1938, Nicolas Winton, filho de pais judeus, trabalhava como corretor de valores em Londres. Mas, após a ocupação nazista de Praga, Winton decidiu abandonar seu trabalho e dedicar todos os seus esforços a resgatar crianças judias na capital tcheca. 

          Seu plano consistiu em enviá-las para o Reino Unido, onde convenceu as autoridades a deixar com que entrassem mesmo sem ter os documentos necessários.

          Uma vez ali, Winton, que morreu em 2015(em 1º de julho), conseguiu um grupo de famílias para abrigar as crianças.

          Graças a suas ações, 669 crianças sobreviveram ao Holocausto.

        Poucos conheciam a proeza de Winton até que uma apresentadora de TV tornou público seus esforços em 1988.


Fonte: bbc.com/portuguese




                                                                             😍


segunda-feira, 12 de junho de 2023

O velho e o mar - Resenha minha

 


          Pra mim, que já havia lido Hemingway em outra oportunidade e não havia ficado assim tão entusiasmado, “O velho e o mar” acabou sendo grata surpresa. A familiaridade desse autor com o modo de vida e paisagens litorâneas é uma marcante característica que permeia inteiramente o livro desse escritor norte-americano, aproximando-o de leitores “praieiros”, amantes da brisa marítima, areia quente e da imensidão de água salgada, estendida como tapete, horizonte à dentro. Sou natural de uma cidade carinhosamente apelidada de “Noiva do Mar”, por isso me sinto à vontade pra escrever sobre esse assunto, guardadas, é claro, as devidas proporções.  A temática remete-nos a mistério, autorreflexão e solidão, tudo que raramente se encontra no dia-dia urbano. Talvez por isso, tantos sintam-se atraídos pelas ondas do mar, seja presencialmente, seja na pena do poeta ou romancista. “Navegar é preciso”, como forma de afastar o stress, que tantas vítimas faz. Mergulhemos juntos nessa narrativa impregnada de maresia.

          Somente um narrador familiarizado com a realidade fria de se estar só, é o que deduzo, conseguiria escrever uma obra como essa. O velho pescador, protagonista da trama, preenche a esmagadora maioria das páginas do livro num monólogo sincero e espontâneo sobre o seu papel no mundo. As suas reflexões são carregadas de melancolia e vergam-se ao peso dos anos. Apesar do raciocínio ainda rápido, exigido pela profissão, o corpo já não é o mesmo e isso lhe impõe sérias restrições que contribuem decisivamente em sua sorte final.

          Santiago é um velho homem do mar, acostumado a protagonizar no passado grandes façanhas no disputado mundo da pesca, onde a experiência trazida pelo tempo garante, em parte, o sucesso.

“O velho pescador era magro e seco e tinha a parte posterior do pescoço vincada de profundas rugas. As manchas escuras que os raios de sol produzem sempre nos mares tropicais, enchiam-lhe o rosto, estendendo-se ao longo dos braços, e suas mãos estavam cobertas de cicatrizes fundas que haviam sido causadas pela fricção das linhas ásperas  enganchadas em pesados e enormes peixes. Mas nenhumas dessas cicatrizes era recente.

Tudo o que nele existia era velho, com exceção dos olhos que eram da cor do mar, alegres e indomáveis.”

   

          É um livro que, essencialmente, como já ressaltei, discorre sobre a solidão. Não fossem os diálogos com Manolim, o rapaz, seu fiel ajudante, seria inteiramente escrito em forma de monólogo. Mesmo assim, o jovem só aparece no início e bem ao final da narrativa, desenvolvida em torno do velho sozinho, em alto mar, na sua canoa, ás voltas com peixes, tubarões e andorinhas. Santiago lança-se, sem qualquer parceiro,  em sua pequena embarcação, querendo provar a si mesmo que não estava ultrapassado, conforme andavam especulando os seus colegas de ofício. A sua sorte com o anzol, isso era fato, andava escassa e as últimas tentativas de fisgada haviam sido, todas,  em vão. Parte, equipado com todos os apetrechos de um profissional, disposto a recuperar o prestígio e confiança de décadas atrás.

 “O que acontece é que acabou a minha sorte. Mas Quem sabe? Talvez hoje. Cada dia é um novo dia. É melhor ter sorte. Mas eu prefiro fazer as coisas sempre bem. Então se a sorte me sorrir, estou preparado.”

 

          Dispensa a companhia do rapaz, que solicitamente providencia toda a logística necessária pra sua batalha pessoal e de sobrevivência. O inesperado acaba acontecendo e aquilo que deveria ser um dia de pescaria, acaba arrastando-se a uma maratona marítima de três dias. O velho, após frustradas tentativas, acaba fisgando um enorme peixe, que com sua descomunal força, preso ao anzol e linha, arrasta-o à direção incerta, para um passeio mar á dentro. Santiago, conhecedor dos segredos e estatutos da pesca, é paciente e espera o gigante de escamas se cansar, o que acaba levando mais de um dia. Quando a oportunidade, por fim, aparece, com o bicho já exausto, ele é certeiro, cravando mortalmente no peitoral dele o arpão que trouxera consigo. Amarra- o, em ato contínuo, à canoa e vai conduzindo o enorme corpo flutuante de aproximadamente quinhentos quilos em direção à costa.  

          Quando a história parece se encaminhar pra um final feliz, com o triunfo do velho pescador desembarcando no vilarejo com seu mega prêmio, tubarões começam a aparecer pra estragar a festa. Ávidos por carne, alternadamente, os predadores marinhos vão abocanhando aquilo que estava destinado tão somente a mesas humanas. O sangue vertido do volumoso ferimento feito pelo arpão, espalhado na água, acaba sendo um convite. O idoso pescador, bravamente, bem que tenta resistir-lhes, mas lhe faltam forças e armas adequadas. Chegando finalmente à praia, o que resta é tão somente uma carcaça seca presa á canoa. Exausto, fraco, dolorido, ferido nas mãos pela linha de pesca, mal consegue ele arrastar-se á sua cabana. Recebe os cuidados do jovem amigo, Manolim, dorme e, de uma forma não muito clara deparamo-nos com o final. A última ilustração do livro é quem dá o desfecho inequívoco do que, de fato, aconteceu, mas isso não vou ser eu quem vai contar-lhes.

          A obra me conquistou pela simplicidade do enredo e fluidez do texto, típica de um escritor jornalista com o foi Heningway. Tudo é real, familiar e direto ao ponto. O único enigma surge justamente no desfecho e força-nos a reler os parágrafos finais pra tentar entende-lo.

          O autor, segundo consta, se despediu da vida de uma forma um pouco trágica, mas deixou um legado escrito que merece o maior respeito de todos nós. Faço desta uma ótima sugestão pra se ler em férias, durante a viagem.

quinta-feira, 1 de junho de 2023

O Grito

 



                                                        Hoje ouvi que o meu silencio,

                                                  o meu silencio grita,

                                                  Ás vezes grita tão alto,

                                                 que fica em silêncio... me irrita.

                                                 São eles gritos tristes de saudade e de dor,

                                                 Às vezes gritos de paz, liberdade e amor.

                                                 Gritos de piá, gritos de homem e na dificuldade,

                                                 o mais sombrio dos gritos.

                                                 O Grito da fome.

                                                 Mas não só de fome de alimento

                                                 Fome de saber,

                                                 Será que era pra ser assim?

                                                 E já que é, ouço o grito do porquê,

                                                 sem chegar a nenhuma resposta.

                                                 Fecho meus olhos e penso.

                                                 E ouço um grande grito,

                                                 o grito do silêncio.


                                                                                                      J.G.L.R.


         Fonte: Coletãnea "Vozes de um tempo", VOL. 3 (Relatos e vivências de pessoas privadas de liberdade no sistema prisional do Estado do Rio Grande do Sul)- Editora Concórdia- 2017