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quinta-feira, 10 de setembro de 2020

A escravidão e presença negra em Rio Grande- Parte V



 5 – A DIALÉTICA DA LIBERDADE 

De fato, o discurso abolicionista afirmava explicitamente que o escravismo constituía um obstáculo à modernização econômica. Isto, entre outras razões, por ser visto como empecilho à promoção da imigração européia, requisito do almejado progresso. A noção de civilização vinha sempre à baila quando o tema era a escravidão ou a abolição. Para pertencer ao clube dos civilizados, pensava-se, era preciso incorporar as idéias e valores da sociedade européia e, portanto, repudiar o trabalho escravo. (29)  

 No Brasil, aproximadamente 95% dos descendentes de africanos já eram livres quando da assinatura da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888. Isso parece absurdo frente à visão tradicional de que a liberdade dos escravos foi realizada por meio de um ato oficial da Monarquia e assinado pela Princesa Isabel, que respondia pelo Imperador D. Pedro II. As vésperas da Lei Áurea, as fugas ocorriam em massa, desorganizando o sistema escravista. O lento e persistente caminho de resistência dos escravos, que passou pelas fugas, pela organização de quilombos, pelo suicídio, pelo homicídio, pela compra de alforria, pela ação política através dos jornais, pela atuação do movimento republicano e emancipacionista, são fatores que promoveram o quadro de desintegração das relações escravistas em 1888. Além desses fatores, a pressão inglesa, exercida desde a proibição do tráfico em 1831, e a imigração européia, especialmente a italiana a partir da década de 1870, pressionaram para uma mudança na atitude senhorial de aversão ao trabalho braçal exercido por homens brancos livres, os quais poderiam ser mais econômicos que a manutenção de escravos. A passagem da dramática existência na condição de escravo para a de homem livre revestiu-se de outros dramas ligados ao abandono, ao preconceito e ao despreparo para a nova condição de cidadão brasileiro. Além disso, a mudança jurídica não significou uma ampla mudança da mentalidade escravista constituída desde o período colonial da formação histórica brasileira. A realidade de desarticulação do sistema atropelou a legislação que protelava o fim da instituição do escravismo. Entre a proibição do tráfico de africanos para o Brasil em 1831 até a Lei Eusébio de Queiroz em 1850, mais de um milhão de escravos chegaram ilegalmente ao Brasil. Essa ilegalidade foi motivação para ações judiciais movidas por filhos de escravos que questionavam a sua condição de propriedade de um senhor se a compra fora feita à margem da lei. A repressão inglesa e a prisão de alguns senhores escravistas que desrespeitaram a nova legislação levou o senhorio ao abandono do tráfico ultramarino e desencadeou o tráfico entre as províncias brasileiras. As áreas de cafeicultura de São Paulo e Rio de Janeiro, enriquecidas e sedentas de mão-de-obra, passam a comprar escravos das áreas economicamente decadentes como o Nordeste brasileiro. Mesmo com o impacto da Guerra de Secessão nos Estados Unidos (que provocou o fim da escravidão nesse país) e com a insatisfação dos negros e brancos que retornaram da Guerra do Paraguai, a legislação continuou a protelar a liberdade aos escravos. A Lei do Ventre Livre (1871), que estabelecia a libertação de crianças nascidas de mãe escrava, previa indenização aos senhores pela criação delas até os 8 anos de idade. As crianças poderiam pagar pela liberdade aos senhores trabalhando até os 21 anos ou o Império indenizaria o proprietário. 

O movimento abolicionista intensificou-se a partir de 1879 através da atuação dos clubes abolicionistas e o crescente número de fugas. Em 1885, a Lei dos Sexagenários previa que para os escravos com 60 anos ou mais ganharem a liberdade, deveriam indenizar os senhores trabalhando por mais cinco anos gratuitamente. A articulação política dos senhores, através de deputados e senadores, procurava protelar a abolição com uma legislação conservadora. A Lei da Abolição ou Lei Áurea, que reconheceu liberdade civil a todos os brasileiros, foi aprovada sem indenização aos senhores, que perdiam a propriedade dos escravos, mas também sem reparações ou apoio para inserção dos escravos que se tornavam cidadãos na sociedade brasileira. (30)

 Muitos negros permaneceram com os seus ex-senhores após a liberdade, seja para cumprir contratos de indenização ou para exercer atividades. A extinção das senzalas foi um fator que originou bairros pobres na periferia das cidades. A disputa por vagas menos qualificadas nas indústrias nascentes também foi um espaço de alocação dessa grande mão-de-obra. Ao Brasil chegaram mais de três milhões de escravos negros até a proibição do tráfico. Produzir riquezas, seja na grande propriedade, na charqueada, no trabalho portuário ou no espaço doméstico de uma família luso-brasileira, era o papel histórico imposto ao negro por mais de três séculos. E mais de um século após a derrocada da instituição escravista, a construção da cidadania continua a se impor como um desafio situado entre os preconceitos herdados do passado e os caminhos da modernidade urbano-industrial no presente. (31)


                                                                        

                                                                    REFERÊNCIAS


29  PRADO, Joana et al. Abolição e branqueamento. Ciência Hoje, São Paulo: SBPC, nov. 1988.

30 MATTOS, Hebe Maria. A face negra da abolição. Nossa História. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, maio 2005. 

31 Negritude e cidadania foi um dos enfrentamentos políticos do deputado Carlos Santos. Ver: TORRES, Luiz Henrique. Carlos Santos: trajetória biográfica. Porto Alegre: CORAG/Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul, 2004. 


                                                                      



quarta-feira, 9 de setembro de 2020

A escravidão e presença negra em Rio Grande- Parte IV

 


Um perfil da população negra envolvida com a justiça, os escravos em processos criminais, foi pesquisado no Arquivo Público do Rio Grande do Sul por Solimar Lima (22), que, para o período de 1818 a 1833, encontrou referências de autos de prisão para a Vila do Rio Grande. Nesses autos, era feita a descrição  física de todos os presos, ocorrendo o registro de vários escravos. Conforme Lima, o prisioneiro normalmente chegava a pé à delegacia ou cadeia, não importando a distância em que havia sido detido. Preso pelos pulsos, escoltado por dois os três soldados. Se mais de um, com uma mesma corda ou corrente amarravam-se todos, em fila. O cortejo chegava à cadeia tendo à frente ou na retaguarda o oficial encarregado da prisão. No caso de escravos, muitos eram conduzidos amarrados e puxados por capitães- do-mato. Após a prisão, os autos buscavam o registro das características físicas, propiciando no presente um resgate quase fotográfico desses infelizes personagens, exemplificado nos registros a seguir: 

– o réu Antônio, mulato escravo de Manoel de Oliveira, de Rio Grande, era de estatura “muito baixa e muito grosso do corpo, rosto redondo e feio bastante, cabelo encarapinhado com algum branco, com uma cutilada na testa do lado direito, e sinal de outra no esquerdo, olhos pardos, nariz chato, orelhas grandes e calvo no meio da cabeça, boca grande”. 

– Severino, pertencente ao Padre Paulo Joaquim de Sousa Prates, era de “estatura alta, rosto redondo com sinais de bexigas e com uma cicatriz no lado esquerdo ao pé da orelha”.

 – Brás, escravo do vigário Jacinto José Pinto, era “de estatura ordinária, rosto redondo, barba grande e preta, cheio do corpo, nariz chato, beiços grossos, com sinais de bexigas e com um vinco ou cova sobre o nariz, tendo um dedo do pé direito cortado”. 

– Antônio, preto de José Antonio Vaz, tinha “estatura baixa, rosto redondo, olhos pardos, nariz chato, beiços grossos, sem camisa, com um colete de baeta azul muito velho e uma tanga de algodão, com grilhões aos pés”.

 – Antônio, do mestre pedreiro José Martins, possuía “estatura ordinária, magro, pouca barba, olhos pardos e deles doente da vista”.

 

É comum a referência a problemas de embolia (obstrução de vaso sanguíneo) nos olhos e de bexigas (marcas na pele deixadas pela varíola). Nesses autos, segundo Solimar Lima, os retratos compõem um quadro de miséria. Fisicamente os escravos estavam muito próximos de seres raquíticos. Vítimas das péssimas condições de cativeiro. Homens com tamanho de crianças, marcados por doenças e deformações corporais. Herança do tráfico, da vida nas senzalas e das extenuantes jornadas de trabalho. 

4 – A ESCRAVIDÃO E O ÁRDUO CAMINHO PARA A LIBERDADE

Não há mais edificante espetáculo, ainda não reconhecemos ato mais belo do que aquele em que existe um homem a derramar pela classe opressa, pelo fruto escravo, a divina luz, coada da Liberdade! (...) Caminhemos, ergamos o pavilhão nacional a uma altura suficiente, a que não possa salpicá-lo a lama do escravagismo. O caminho é completamente nosso; caminhemos, resolutos, para ele. (23)

 As atividades de comércio de escravos faziam parte do cotidiano da cidade do Rio Grande, assim como do Brasil Colonial e Imperial.  

Analisando o comércio interno à cidade de Rio Grande, consideramos o quanto à atividade de leilão e venda foram corriqueiras. Estava presente em todas as casas, no cotidiano das pessoas. Revelando o quanto a escravidão perpassou as relações sociais. Para lavar roupa, passear com uma criança, era necessário o escravo. A elite brasileira tinha uma visão perversa do trabalho que perpassa até hoje. Esse comércio interno, doméstico e diluído, visava especialmente suprir com mão-de-obra escrava as atividades improdutivas. Sem sombra de dúvida, o comércio de escravos foi o grande negócio da escravidão. (24)

Modificar práticas sociais de perspectiva senhorial fundadas na escravidão foi um processo lento e um desafio ainda não concluído. Afinal, ao longo de mais de três séculos, o escravo era uma “mercadoria que, em caso de necessidade, podia ser vendida ou alugada, possuindo, assim, um duplo valor: valia o que produzia e valia como mercadoria. Além de que, possuir escravos conferia ao indivíduo posição social (...) sendo apontados pela coletividade como pessoas de relevo e projeção”. (25)  
A partir de 1869, as sociedades ou clubes abolicionistas passaram a comprar cartas de alforria. Até a imprensa passa a reduzir ou negar-se a publicar anúncios de compra, venda ou aluguel de escravos. O avô do deputado Carlos Santos, o carpinteiro Manoel Conceição dos Santos, atuou ativamente na luta abolicionista e, na condição de recém-liberto, participou de um clube e de um raro jornal: A Voz do Escravo, um veículo abolicionista e republicano feito por ex- escravos e editado em Pelotas a partir de 1881.
 Em Rio Grande, circulou entre março e outubro de 1884 o periódico A Luz, que defendia a liberdade dos escravos e o acesso destes à instrução, pois considerava a educação como a forma de emancipação da condição servil e inserção na sociedade. Na defesa da abolição, ressaltava: 
 
É impossível que os nossos patrícios não compreendessem já, que viver escravo é ter no coração espinhos cruciantes que o retalham; que, enquanto entre nós perdurar o elemento servil, não há de haver Pátria, e sim o aconchego de uma multidão de homens, que pouco se dão em atormentar seus semelhantes, seviciando-se barbaramente. (26)

 É relevante assinalar que na cidade do Rio Grande foi fundada em 1850 a Sociedade Liberdade à Escravatura, o primeiro clube abolicionista do Rio Grande do Sul, em cujo programa estava expresso: 

Sendo esta a época mais profícua para se coadjuvar ao governo imperial na extinção da escravatura no Brasil, recorre-se à filantropia dos habitantes desta cidade para inscreverem-se numa associação, mediante 500 réis por mês, a fim de, em cada ano, libertar-se uma ou mais cativas, conforme os fundos da sociedade. (27)

Posteriormente, na década de 1880, intensificou-se o movimento abolicionista em Rio Grande, com a fundação do Clube Abolicionista 14 de Julho, a Sociedade Abolicionista 28 de Novembro e a Comissão Abolicionista. (28) 



 

                                                               REFERÊNCIAS


22  LIMA, Solimar. Retrato falado: o escravo em processos criminais. In: FLORES, Moacyr (Org.). Negros e índios: história & literatura. Porto Alegre: Edipucrs, 1994.

23  Jornal abolicionista A Luz. Rio Grande: 31 ago. 1884. Ver: ALVES, Francisco das Neves. A Luz: uma folha abolicionista na cidade do Rio Grande. Rio Grande: Fundação Universidade Federal do Rio Grande, 2002.

24  GATTIBONI, Rita. O comércio de escravos na cidade do Rio Grande na década de 1860 In: FLORES, Moacyr (Org.). Negros e índios: história e literatura. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1994, p. 207.

25  COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia. São Paulo: Brasiliense, 1989.

26  A Luz. Rio Grande, 31 maio 1884. Outros jornais da cidade que nesse período defenderam a causa abolicionista foram O Artista, O Bisturi e o Echo do Sul. 

27  Programa da Sociedade à Liberdade da Escravatura In: ERICKSEN, Nestor. O sesquicentenário da imprensa sul-rio-grandense. Porto Alegre: Sulina, 1977, p. 75. 

28  SCHIAVON, Carmem. Maçonaria e abolição da escravatura no Sul do Brasil. Rio Grande: FURG, 2004, p. 89.



                                          Continua...




terça-feira, 8 de setembro de 2020

A escravidão e presença negra em Rio Grande- Parte III



 3 – ESCRAVIDÃO E RESISTÊNCIA 

Às 11 horas da manhã é enforcado no Largo do Moinho (Praça Barão de São José do Norte) o preto Porfírio, que tentara contra a vida do seu senhor, Felipe Antonio de Araújo, conhecido por Felipe Galego, estabelecido com taverna à rua dos Cômoros (rua Silva Paes) esquina da do Castro (rua Duque de Caxias). (10)

 

A pedagogia da desumanização e da brutalização exercida pela sociedade escravista passava pelas condições subumanas das viagens promovidas pelos empresários do tráfico negreiro da África até o Brasil e pelo estado de saúde dos sobreviventes ao chegar aos portos de destino. 

Depoimentos da época descrevem o desembarque dos homens e mulheres, adultos, jovens e crianças escravizados. Pareciam fantasmas. Os homens nus, os sexos desproporcionalmente grandes para os corpos magérrimos; as mulheres, só ossos, as tetas caídas; as crianças arrastadas pelas mãos, pequenos zumbis (11).

Eram prática comum, inclusive em Rio Grande, os leilões de escravos. Conforme Emília Viotti da Costa (12), os negros ficavam expostos sobre tablados e o leiloeiro os apregoava, anunciando suas qualidades. Suas descrições que afrontam a dignidade humana não chocavam os habituais freqüentadores de leilões. Em 1820, Auguste Saint-Hilaire registrou a severidade com que os escravos, no caso das charqueadas pelotenses, eram tratados por seus proprietários: “Nas charqueadas os negros são tratados com muito rigor. O senhor Chaves [Antônio José Gonçalves Chaves] é considerado um dos charqueadores mais humanos, no entanto ele e sua mulher só falam a seus escravos com extrema severidade, e estes parecem tremer diante dos seus patrões”. Conforme Agostinho Dalla Vecchia, o trabalho escravo era cercado de violência e brutalidade, permeadas pela sistemática vigilância e repressão: 

A generalizada agressão física é a face exterior da extrema violência com que era tratada a pessoa do escravo. O mito de que a escravidão no Rio Grande do Sul foi mais branda e suave foi um mecanismo ideológico para encobrir uma situação marcada por atitudes que reclamam justiça. (13)


 3.1 – As faces da resistência ao escravismo


Fugiu hoje a escrava crioula de nome Izabel, cor preta, e pintando já os primeiros cabelos brancos, levou vestido de lanzinha já bastante usado e bata branca, esta foi escrava de Ignácio Francisco da Costa, de Pelotas, por isso se previne aos Senhores Comandantes dos vapores daquela carreira, assim como se protesta contra quem a tiver acoutado (14)
Frente a tantas modalidades de brutalização institucionalizadas pela sociedade senhorial, a resistência ao escravismo esteve presente de diferentes formas entre a população escrava: fugas, agressão ou assassinato de proprietários, suicídio e formação de quilombos. Resistências que levaram os proprietários e os órgãos legais de repressão à aplicação sistemática de castigos físicos, prisões e até execuções públicas de escravos. Jornais da cidade do Rio Grande na segunda metade do século 19 estão repletos de anúncios, pagos pelos senhores, sobre fugas de escravos. As fugas eram comuns. Existiram  quilombos em Pelotas, em São José do Norte, e inclusive nas imediações de Rio Grande, no interior da Ilha dos Marinheiros, o Quilombo do Negro Lucas. Nesse quilombo abrigaram-se vários negros fugitivos durante mais de dez anos. Conforme o jornal O Observador (15) de 9 de janeiro de 1833, o líder do grupo chamava-se Lucas e ocupava uma casa no meio da mata que havia na Ilha: “armado de espingarda, espada e faca, saía de vez em quando a passear pela Ilha, ameaçando os moradores brancos, a quem se tornava ainda mais terrível pela grande proteção que tinha dos pretos e pardos forros, que ali residiam...”. Acusado de ter matado o filho de um delegado, o negro Lucas foi morto numa armadilha feita por quatro integrantes da Guarda Nacional e um delegado. A emboscada ocorreu quando Lucas foi fazer uma visita na casa de um negro da ilha junto com dois companheiros e uma negra, sendo surpreendido pela força policial:
No mesmo instante o negro recuou, pôs o joelho em terra, e com a maior rapidez disparou a espingarda para dentro da casa, de cujo tiro pouco faltou que matasse um dos Guardas Nacionais, avançando depois sobre eles de espada, e ao mesmo tempo os outros dois de lança: os Guardas Nacionais, vendo-se em iminente perigo, um deles disparou sobre eles um tiro, do qual caiu morto Lucas, pondo-se os outros dois em apressada fuga. 

 

Na seqüência da diligência policial foi encontrado o acampamento com uma casa com várias peças, além de couros de boi, assim descrito pelo jornal: “muita carne, graxa, sebo, panelas de ferro, chocolateiras, garrafas, frascos, garrafões, uma lança, grande porção de lenha cortada e amarrada, e muitas provisões; tendo–se ali evadido cinco pretos e quatro pretas, que estavam debaixo das ordens do tal Lucas...”. A narração da imprensa registra uma suposta legitima defesa da força policial e não a execução do quilombola que era acusado da morte de sete pessoas.  A classe senhorial da Vila do Rio Grande respirou aliviada. Porém, a resistência ao escravismo tornou-se intensa durante o II Império Brasileiro, seja pela estratégia da resistência negra ou pelos movimentos abolicionistas. A imprensa da cidade do Rio Grande registrou centenas de fugas de escravos desde a década de 1850 até a abolição da escravatura em 1888. A seguir temos alguns exemplos destes anúncios.

O Barão de Piratini dá quatrocentos mil réis a quem capturar e vier entregar-lhe na cidade de Pelotas o crioulo Zacharias, seu escravo, que fugiu na noite de 20 de agosto deste corrente ano, o qual é de estatura regular e com 25 anos de idade. Tem barba cerrada e com espinhas, é retinto e a cabeça pontuda para trás; no rosto tem um pequeno sinal de queimadura; as orelhas pequenas, fala bem e tem muita vivacidade; é bolieiro e bom campeiro. Levou uns arreios velhos e uma parelha de cavalos malacaras bragados, (...) também levou roupa consigo: dois ponches, uma japoneta de pano azul, um jaleco preto de seda, uma calça de cachemira, cor clara, além de outras seis camisas finas, um par de botins novos de couro, etc. É de supor que tenha fugido em companhia do pardo Demétrio, escravo de D. Clara Maria da Silva e Cunha, que também fugia na mesma noite, talvez com o projeto de irem para o Estado Oriental. (16)


 Fugiu no dia 31/01 das 5 para as 6 horas da tarde da casa de seus senhores Antônio José Martins de Castro e C., o seu escravo de nome Manuel, cor fula que passa por mulato, usa barba e bigode, dentes ralos, fala descansada, as pernas um pouco tortas para dentro, pés descarnados, inculca-se forro, levou vestido camisa de riscado e calça de algodão mescla, chapéu baixo e branco muito usado. Quem o capturar e levar em casa de seus senhores será gratificado. Assim como protesta- se com todo o rigor da lei contra quem o tiver acoutado (17)


 Desapareceu domingo seis do corrente, o crioulo João, de 20 anos de idade, sem barba, bastante retinto, trajando de preto. É escravo de Antônio José Martins de Castro e costuma intitular-se forro, usando para isso de um nome suposto. Gratifica-se a quem o apreender, e protesta- se contra quem o acoutar. (18)



Ao buscar a fuga, os escravos tentavam cruzar a fronteira com o Uruguai para terem o estatuto de homens livres. A atenção dos proprietários e das autoridades estava voltada a impedir esse deslocamento utilizando o capitão-do-mato ou forças policiais para prenderem o escravo fujão. Além disso, ameaçava-se com a força da lei, inclusive a prisão, aqueles que dessem proteção (acoutar) ou passassem a usar a mão-de-obra do escravo para seu proveito. Fugas em Pelotas, às vezes também eram publicadas em jornais de Rio Grande para impedir que o escravo passasse por forro (livre) e vivesse clandestinamente em alguma atividade de trabalho urbano ou até fugisse pelo porto do Rio Grande para outra cidade da Província.

3.2 – Outras faces da resistência

Na maioria das vezes, o escravo podia não ter claro que seu ato significava um grito de rebeldia contra uma situação que lhe era insuportável. Para o senhor, porém, isso ficava claro. Essa tríade, o ato de sangue contra o amo, seu feitor ou sua família; a fuga e o suicídio foi eterna preocupação do mundo dos senhores, pois, em todos os casos, o senhor, ou a sua propriedade, eram duramente golpeados. (19)

Múltiplas foram as faces da resistência à escravidão. O suicídio do escravo foi um ato comum ao longo do período escravista no Brasil. Maus tratos, desespero, depressão, ódio ou expectativa de romper com o vínculo sádico de sujeição ao senhor levaram a esta modalidade de ação que representava uma perda financeira e instabilidade psicológica da base escravocrata para o senhor. O jornal Echo do Sul do dia 18 de janeiro de 1862 registrou uma dessas situações que chocava a sociedade escravista

Suicídio. Apareceu na manhã de ontem enforcado em casa do senhor Domingo José da Silva Farias, comerciante desta praça, um escravo que exercia o mister de cozinheiro. Ignoramos o motivo que levou esse infeliz a tentar contra a própria existência, porque nos consta que, além de ter ótimo tratamento, saíra nessa manhã satisfeitíssimo da casa de seu senhor, fez as compras de comestíveis de que fora incumbido e no seu regresso cometeu o delito que as leis divinas e filosóficas o condenam...(20).

Outras vezes, o suicídio revestia-se de um ato de violência contra a vida de seu algoz e familiares. Muitas vezes, antes do suicídio o escravo expressava o seu ódio contra familiares ou o próprio proprietário. É o caso deste episódio:
 
Tentativa de assassinato e suicídio. Ontem de manhã deu-se uma cena de horror nesta cidade, numa casa à rua do Carmo, do capitão de navio mercante Antônio E. da Rocha. Mandando a dona da casa dizer a um escravo que se achava descascando marmelos que andasse com o seu trabalho, este enfureceu-se e deu uma facada na preta que lhe levara o recado, tentando depois ferir uma criança e em seguida a sua própria senhora. Não podendo executar o seu nefando propósito por haver a senhora com a criança fugido para a rua, o monstro suicidou-se com uma facada no peito e um golpe fundo no pescoço. (21)

A imprensa noticiava os casos sem considerar a essência sádica do escravismo e lançando o peso dos atos ao desatino ou a doenças desconhecidas que o escravo deveria portar para lançar mão destes atos de violência. Conforme José Alípio Goulart, no livro Da fuga ao suicídio, tirar a própria vida foi o mais trágico recurso de que se valeu o negro escravo para fugir aos rigores do regime que o oprimia – excesso de trabalho, maus tratos, humilhações e, em muitos casos, para eliminar a saudade da pátria distante, para sempre fisicamente perdida, à qual só tornaria a voltar graças ao processo de ressurreição, como acreditava. Além de constituir a abreviação dos sofrimentos físicos e morais que o atormentavam, o negro via no suicídio, por igual passo, certa modalidade de vingança contra o detestado senhor. Em relação aos homicídios a documentação apresenta algumas execuções de escravos em espaço público por terem assassinado ou agredido seus senhores. A execução se dava por enforcamento em praça pública (na Praça dos Enforcados ou atual Praça Barão de São José do Norte), num ritual de grande participação popular que fez parte do cotidiano da cidade do Rio Grande até a década de 1850, quando D. Pedro II não autorizou mais a pena de morte no Brasil apesar de ela persistir até o final do Império. Por longo período os próprios senhores exerciam a justiça contra a rebeldia dos escravos, prerrogativa que passa, em termos formais, ao controle estatal. Conforme Perdigão Malheiro (A escravidão no Brasil), a legislação enunciava: 

 Serão punidos com a pena de morte os escravos ou escravas, que matarem por qualquer maneira que seja, propinarem veneno, ferirem gravemente, ou fizerem qualquer outra grave ofensa física, a seu senhor, a sua mulher, a descendentes ou ascendentes que em sua companhia morarem, a administrador, feitor, e as suas mulheres que com eles viverem.




                                                                         REFERÊNCIAS


10  Diario do Rio Grande. Rio Grande, 05 mar. 1850. 

11 MAESTRI FILHO, Mário. O escravo no Rio Grande do Sul. Caxias do Sul: Edusc,1984.

12  COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1989. 

13  VECCHIA, Agostinho Dalla. Memórias do cativeiro e transição Estudos Ibero- Americanos. Porto Alegre: PUCRS, v. 16, n. 1-2, p. 331, 1990.

14  Diario do Rio Grande. Rio Grande, 25 nov. 1878.

15  O Observador. Rio Grande, 9 jan. 1833.

16  Echo do Sul. Rio Grande: 11 set. 1861.

17  Diário do Rio Grande. Rio Grande, 02 fev. 1879. 

18  Diário do Rio Grande. Rio Grande, 02 fev. 1879.

19  MAESTRI FILHO, Mário. O escravo no Rio Grande do Sul. Caxias do Sul: Educs, 1984.

20  Echo do Sul. Rio Grande, 18 jan. 1862

21  Echo do Sul. Rio Grande, 28 fev. 1862. 


                                       
                                                  Continua...



 

       


 

segunda-feira, 7 de setembro de 2020

A escravidão e presença negra em Rio Grande- Parte II



 Vende-se um escravo de meia idade, que dá jornal de 640 réis diários. Quem o pretender dirija-se à Tipografia do Diário. (4)

Durante o século 17, especialmente entre 1601 a 1640, os portugueses dominaram o tráfico de escravos negros no Rio da Prata. Com o fim da União Ibérica, o comércio continuou através do contrabando com base no Rio de Janeiro. A fundação da Colônia do Sacramento em 1680 teve como um dos objetivos implementar essas atividades comerciais com o hinterland do sistema colonial espanhol no Prata. Com o governador Dom Manuel Lobo vieram 200 homens, dois padres jesuítas, carpinteiros, pedreiros e 60 negros. Para o historiador Corcino Medeiros dos Santos (5), os portugueses criaram a mentalidade de que qualquer tipo de trabalho manual era destinado ao escravo e não ao homem branco europeu. Este viera ao Novo Mundo não para lavrar a terra como o camponês, mas para dirigir, para mandar, dominar e enriquecer-se à custa do trabalho escravo. Os pioneiros que se estabeleceram nos territórios do atual Estado do Rio Grande do Sul não eram infensos a estas idéias. É por isto que já nas expedições de Brito Peixoto e João de Magalhães, encontramos a presença de escravos. Conforme Santos, durante os confrontos militares entre Portugal e Espanha pelo controle da barra do Rio Grande, os espanhóis fizeram presas de guerra no ano de 1770 de sete canoas de pescadores do Rio Grande e levaram com elas, além de seus capitães, 20 escravos que as tripulavam. Para efeito de indenização, as canoas foram avaliadas em 90$000 cada uma e os escravos a 132$000 réis cada um, que totalizam 3:270$000 réis. Também os portugueses apresentaram às autoridades espanholas uma relação nominal de 278 escravos que desertaram para a América Espanhola em conseqüência da desorganização provocada pela guerra de 1763, quando da invasão da Vila do Rio Grande. A documentação não permite precisar os escravos evadidos para o espaço platino e aqueles que permanecem com os portugueses na Capitania do Rio Grande. Durante o comércio legal de escravos nos quadros do tráfico negreiro transatlântico até a primeira metade da década de 1850, a chegada de negros à Província se dava pelo porto do Rio Grande. A recuperação  quantitativa dessas populações e também de imigrantes poderia ser resgatada através da documentação da Alfândega do Rio Grande, porém essa fonte virou papel picado na década de 1970. Um registro que ficou da passagem de escravos pela Alfândega do Rio Grande foi deixado por Antônio José Gonçalves Chaves, que levantou para o período de 1816 a 1822 a chegada de 6.157 escravos ao Rio Grande do Sul. Esses dados destruídos seriam fundamentais para o resgate demográfico. As localidades de relevância econômica tinham maior alocação de mão-de-obra escrava, como é o caso de Pelotas, Porto Alegre, Rio Pardo e Rio Grande. A importância econômica da Vila do Rio Grande acentuou- se desde os primórdios do século 19, como se constata pela instalação da Alfândega em 1804. Em 1820, Auguste Saint-Hilaire observou o trabalho dos escravos nas ruas da Vila do Rio Grande: 

“Vi negros ocupados em desentulhar os arredores das casas de seus donos, que me informaram serem obrigados a repetir, sem descanso, esse trabalho”,(6)

 Registrou, em suas anotações,  o avanço das areias que soterravam as residências. Ele viu “negros acocorados” vendendo couves, cebolas e alfaces na rua. Nas tarefas urbanas de prestação de serviços aos senhores, ou alugados para atividades gerais para o público, a presença negra é constante em diferentes modalidades de trabalho na Vila do Rio Grande. As atividades ligadas ao porto, carregamento e descarregamento das mercadorias das embarcações, também contavam com a presença do escravo negro. A participação da mão-de-obra dos escravos nas atividades urbanas e domésticas não era ocasional, mas intensa em Rio Grande. Senhores de escravos alugavam os seus escravos a outros senhores ou comerciantes para um amplo espectro de atividades. Os escravos de aluguel eram presença comum nas vilas ou cidades do Brasil. Para Leila Algranti, no livro "O feitor ausente", os senhores que possuíam mais escravos do que necessário podiam alugá-los a terceiros e conseguir dessa forma um bom rendimento, além da manutenção dos seus serviços. O sistema de aluguel de escravo era uma das características mais importantes da escravidão urbana. Enquanto as mulheres negras eram procuradas para serviços domésticos e como amas-de-leite, os homens podiam atuar em serviços gerais ou especializados, como pedreiros, pintores, cozinheiros, tanoeiros, carpinteiros, vendedores de frutas e legumes etc. Um comentário de um viajante inglês em sua estadia no Brasil durante o período imperial sintetiza a participação dos negros no funcionamento da sociedade tradicional brasileira:

 " O negro não só é o trabalhador dos campos, mas também o mecânico; não só racha a lenha e vai buscar água, mas também com habilidade de suas mãos contribui para fabricar os luxos da vida civilizada. O brasileiro usa-o em todas as ocasiões e de todos os modos possíveis; desde cumprir a função de mordomo e cozinheiro até servir os propósitos de cavalos; desde fabricar vistosos berloques, a fazer a roupa, até executar o mais vil dos deveres servis". (7)

Ressaltando a importância da mão-de-obra escrava, o sargento- mor Domingos Fernandes nos primórdios do século 19 alertava que não se deveria exportar escravos para os territórios espanhóis no Rio da Prata, atitude perniciosa ao Estado Português, 

"porque este não pode subsistir sem escravos e por maior que fosse o número deles, nunca deixaria de achar terras incultas, em cujo trabalho se empregassem. E quanto maior é o número de escravos que levam os Espanhóis tanto mais diminuem as nossas forças e aumentam a suas. (8)

2.1 – Crescimento da população e o contingente negro 

 A partir de diversas fontes documentais e censos, pode-se buscar uma aproximação, mesmo que imprecisa, da evolução demográfica da atual cidade do Rio Grande e da presença dos contingentes negros ao longo dos séculos. Em 1744 a população era de aproximadamente 1.400 almas (a maioria militares) e poucos negros vindos com os oficiais aqui estavam vivendo; na década de 1750, com a chegada dos açorianos, ocorreu um incremento na população da Vila em mais de 1.300 pessoas. Porém, com a invasão espanhola em 1763, grande parte da população dispersou-se e, com exceção da presença militar após a retomada lusitana em 1776, a população sofreu uma profunda redução. Em 1780 a população do Governo do Rio Grande era de 17.923 habitantes, sendo que na Freguesia do Rio Grande havia 1.643 brancos, 182 índios e 596 pretos, totalizando 2.421 habitantes. Em 1803 a Vila do Rio Grande possuía cerca de 2.500 habitantes e 500 fogos (casas). Em 1814 o censo é mais específico, indicando na Vila do Rio Grande 3.590 habitantes, sendo 2.047 brancos de ambos os sexos, 38 indígenas, 160 livres de todas as cores, 1.119 escravos e 226 recém-nascidos. Nesse ano, a população estimada para o Rio Grande do Sul era de aproximadamente 70.000 habitantes (32.300 brancos, 8.655 indígenas, 5.399 livres, 20.611 escravos e 3.691 recém-nascidos). Em 1848 a população da cidade do Rio Grande estimada pelas listas eclesiásticas era de 10.152 habitantes. Em 1858, era de 13.514 habitantes, sendo 11.375 livres, 52 libertos, 2.087 escravos. No relatório de 1861 da Santa Casa de Misericórdia da cidade do Rio Grande, o provedor registrou que, das 423 pessoas falecidas naquele ano, 291 eram livres e 132 escravas. Também afirmou que dos enterramentos no Cemitério do Bom Fim entre 1843 e 1855, 2.865 eram livres e 2.705 eram escravos, o que demonstra quase uma paridade no quantitativo de óbitos. Em 1872, Rio Grande totalizava 16.883 habitantes e 2.226 casas. Em 1890, Rio Grande e Povo Novo totalizavam 24.653 habitantes. Levantamento diferenciado foi feito por Margaret Bakos e Zilá Bernd (9), indicando a população escrava na Vila/Cidade do Rio Grande nos seguintes patamares: ano de 1780 – 596 escravos; 1814 – 1.119 escravos; 1859 – 4.369 escravos; 1884 – 2.345 escravos; 1885 – 1.616 escravos; 1887 – 844 escravos. 


                                                                   
                                                                  
                                                                  REFERÊNCIAS


4  Diário do Rio Grande. Rio Grande, 26 jan. 1855. 

5  SANTOS, Corcino Medeiros dos. Economia e sociedade do Rio Grande do Sul século XVIII. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1984.

6  SAINT-HILAIRE, Auguste. Viagem ao Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1990.

7  Citado por Marilene Nogueira da Silva. Negro na rua: a nova face da escravidão. São Paulo: Hucitec, 1988. 

8  FERNANDES, Domingos José Marques. Descrição corográfica, política, civil e militar da capitania do Rio Grande de São Pedro do Sul (1804). Pesquisas. História, Porto Alegre, Instituto Anchietano de Pesquisas, n. 15, p. 88, 1961. 

9  BERND, Zilá; BAKOS, Margaret. O negro: consciência e trabalho. Porto Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS, 1991, p. 72. 



                                                  Continua...




domingo, 6 de setembro de 2020

Escravidão e presença negra em Rio Grande- Parte I

                                                             


                                                                               RESUMO

 O artigo desenvolve os fundamentos preliminares para a compreensão do processo escravista na cidade do Rio Grande nos séculos 18 e 19. 

PALAVRAS-CHAVE: Escravidão negra; cidade do Rio Grande; séculos 18 e 19.

A presença da população negra junto à barra do Rio Grande de São Pedro remonta à vinda, até as proximidades da sede da atual cidade de São José do Norte, da frota de João de Magalhães, que perdurou entre 1725 e 1733, tendo a função estratégica de controle do fluxo de gado da Vacaria do Mar visando à dinamização da economia brasileira nos quadros do sistema colonial. A iniciativa da frota partiu do governador de São Paulo, D. Rodrigo César de Menezes, que ordenou ao capitão- mor da Laguna, Francisco de Brito Peixoto, que se deslocasse à barra do Rio Grande para fundar uma povoação. Posicionando-se na parte norte da barra do Rio Grande de São Pedro, lá permaneceram impedindo a passagem de castelhanos ou Tapes, nas campanhas do Rio Grande, sendo a maior parte desse corpo constituída por homens negros escravos. O povoamento da planície costeira na restinga de São José do Norte processou-se nesse quadro de expansão lagunense voltada ao controle do fluxo do gado da Vacaria do Mar. Até julho de 1734, já estavam estabelecidas 27 fazendas ou invernadas na restinga de São José do Norte (para o descanso do gado a ser transportado para São Paulo), demonstrando o interesse luso-brasileiro nesta atividade econômica e a necessidade em avançar para o Sul do Brasil. A partir de 1737, a atual cidade do Rio Grande se projeta como um laboratório de experiências culturais, biológicas e de complexas relações sociais que envolveram soldados, europeus, açorianos, índios, negros e colonizadores do Brasil e da Colônia do Sacramento. Na barra do Rio Grande de São Pedro tem início a formação luso-brasileira no Rio Grande do Sul.

1 – A PRESENÇA DOS NEGROS NOS PRIMÓRDIOS DA COLONIZAÇÃO

 Na chegada da expedição do Brigadeiro José da Silva Paes em fevereiro de 1737, alguns negros, possivelmente escravos de oficiais, estavam a bordo das embarcações quando da oficialização do controle português na barra do Rio Grande ¹. No ano de 1738, na Freguesia do Rio Grande de São Pedro, foram batizados dois escravos, sendo um nascido no Brasil e outro na África. Até 1749 foram batizados 98 escravos. Já os óbitos de escravos entre 1738 e 1749 totalizaram 54 indivíduos. Nesse período inicial do povoamento, o escravo teve pequena participação no conjunto da população. Quantificar com precisão a presença dos escravos negros no Rio Grande é tarefa inviável pela inexistência de censos demográficos, listas de escravos e de registros paroquiais precisos. Os registros de óbito são incompletos pela tendência do senhor de evitar o pagamento de despesas com o sepultamento e por ser comum sepultar os escravos nas fazendas. Assim, os registros de batismo eram incompletos. Até 1763, foram registrados somente 18 casais legítimos de escravos, o que mostra que os senhores não tinham interesse em legitimar as relações de concubinato praticadas por seus escravos. Nos registros documentais, a única informação confiável é a do nome do dono do escravo. Entre 1750 e 1763 existiram no Rio Grande 139 senhores de escravos. Essa camada senhorial da Freguesia, a elite local, era composta principalmente por militares, a maioria dos quais foram os primeiros povoadores que receberam terras da Coroa Portuguesa e que participaram da exploração do gado que aí existia. No século XVIII, a baixa rentabilidade da pecuária fez com que fosse utilizada a mão-de-obra indígena de remuneração irrisória e o trabalho livre. As aspirações alimentadas pela mentalidade senhorial dominante na sociedade colonial brasileira determinaram a formação de plantéis de escravos, nas estâncias do Rio Grande, destinados principalmente às atividades domésticas, consideradas economicamente não-produtivas, e ao setor de subsistência da propriedade (horta, pomar, lavoura e indústria doméstica de queijos, lingüiças, charque etc.), quando não tanto pela necessidade do serviço, pelo zelo da ostentação e do luxo. As condições sócio-econômicas precárias que caracterizaram essas décadas iniciais do povoamento da Vila do Rio Grande de São Pedro diferiram dos níveis de expansão do sistema escravista registrado em localidades portuárias e que concentram as atividades político-administrativas.

Com a dominação espanhola da Vila do Rio Grande (1763-1776), um personagem que se tornaria uma lenda nas atividades de guerrilha movidas contra tropas castelhanas utilizou escravos negros em suas incursões militares, precedendo a utilização dos lanceiros negros na Revolução Farroupilha. Um poema escrito em Montevidéu por um soldado espanhol, em 1778, perpetuou o medo em enfrentar estes homens: “Pinto Bandeyras llamado, era em efecto este tal, Fidalgo de Portugal, yera Coronel graduado; lleva siempre a su lado, segun voces diferentes, horror de negros valientes, que el temor no conocían, mas por Dios que no querian, hacerse nunca presentes”.² A presença de escravos chamou a atenção do comerciante francês John Luccock. Ele afirmou que, em 1809, uma porção considerável da população da América do Sul consistia de escravos: “Era de uso remeter para São Pedro, provindo de outras partes do Brasil, os escravos considerados incorrigíveis, e é certo que por aqui encontrei não só maus escravos como maus senhores”. A dificuldade em conseguir escravos e os altos preços “pode justificar o bom trato que lhes davam”, parecendo estarem “melhores e mais felizes” do que em outras províncias. Na cidade “pareceu-me que a situação deles era tão boa quanto lhes podia permitir a sua mentalidade e costumes”. A mão-de-obra negra também estaria ligada aos ofícios de carpinteiro e outras ocupações, sendo alugados para desenvolver essas atividades e, devido à carência de especialização profissional, eram “bastante estimados pelas suas prendas para que os protejam de fadigas excessivas e maus tratos”. Escravos eram ocupados no ofício de lavar roupa no sul da Vila – “ali existe um tanque com aberturas, encravado no chão, para dentro do qual as águas da baía destilam através da areia, perdendo assim o sal”. Um negro podia ganhar “numa hora dois vinténs, ou seja, cerca de quatro dinheiros, quantia suficiente para lhes prover o alimento por todo um dia”. Quando um negro é encontrado vadiando “e se lhe aconselha a tomar qualquer serviço, a resposta mais comum é: já ganhei meu dia. Pode-se, aliás, afirmar que talvez não exista uma só pessoa indigente na cidade...” Porém, Luccock relata que o racismo está presente, pois basta que uma pessoa tenha “a tez de um preto para que se o designe como objeto sobre o qual a tirania se pode exercer”³

                                                                                              Luiz Henrique Torres


                                                           REFERÊNCIAS 

 ¹QUEIROZ, Maria Luiza Bertulini. A Vila do Rio Grande de São Pedro. Rio Grande: Ed. da FURG, 1987, p. 50

² TORRES, Luiz Henrique. Câmara Municipal do Rio Grande: berço do parlamento gaúcho. Rio Grande:Salisgraf, 2001, p. 49. 

³ LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro. Belo Horizonte; São Paulo: Itatiaia/EDUSP, 1975.


Fonte: periodicos.furg.br


                                   Continua...