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Hoje,
cultivar cannabis dá cadeia, mas essa planta foi determinante para o maior meio
de transporte e comércio da humanidade por milênios: a navegação. Foi com a
fibra mui resistente do cânhamo que se produziu boa parte das velas e cordas
dos navios antigos. Em meio às aventuras responsáveis pelos ditos
Descobrimentos, Portugal torrou fortunas comprando essa fibra que chamavam de
linho-cânhamo da Vila de Moncorvo. Em 1625, Felipe III criou mais duas: a Real
Feitoria do Linho Cânhamo de Coimbra e a de Vila de Santarém. As três feitorias
transformaram muita maconha em fibra têxtil antes de serem fechadas em
25/02/1771 pelo Marquês de Pombal.
Portugal também plantou cânhamo no Brasil. Em 1747, o capitão-general
Gomes Freire de Andrades fez a primeira tentativa oficial na ilha de Santa
Catarina (atual Florianópolis), mas lá o cultivo não vingou. Então, em
06/10/1764, o Vice-Rei do Brasil, Antônio Alvares da Cunha pediu ao governador
do Rio Grande de São Pedro (hoje Rio Grande do Sul) que ajudasse Antonio
Gonçalves de Pereira Lima, negociante que queria plantar cannabis e manufaturar
linho-cânhamo por aqui. Antônio Gonçalves teve sucesso em 1766 e, segundo o
historiador Monsenhor Pizano, o resultado foram 38 arrobas de linho (cerca de
570 kg), além de 80 arráteis de estopa (quase 40 kg) e muitas sementes.
Essa boa experiência, aliada a necessidade portuguesa de substituir
importações e ocupar o sul do Brasil ameaçado pela Espanha, foi fundamental
para que em 10/10/1783, o Vice-Rei, Luis de Vasconcelos e Souza, fundasse a
Real Feitoria do Linho-Cânhamo do Rincão do Canguçu. Foi seu primeiro inspetor
o Pe. Francisco Xavier Prates, ajudado por um segundo inspetor, 4 feitores,
soldados europeus, 1 almoxarife e escriturário, 1 capelão e 1 cirurgião, todos
recebendo salários pela Real Fazenda. Para o trabalho braçal foram enviados 21
casais de escravos pertencentes à Fazenda Real de Santa Cruz, no Rio de
Janeiro.
2 Os esforços deveriam ser concentrados no
plantio e colheita dessa planta de origem asiática, sem preocupação com a fase
de manufatura. Não havia qualquer intenção de se formar fábricas de cordaria no
sul do Brasil.
Cumpre acrescentar que a metrópole portuguesa, nesse específico período,
vinha já amargando um considerável decréscimo na extração de minérios em suas
minas, somando-se a isso algumas dificuldades comerciais com antigas nações
parceiras. Diversificar a agricultura, extraindo da terra o máximo de
lucratividade possível, parecia ser a tábua de salvação para um Império em declínio, sem mais ouro ou pedras
preciosas para sugar do Brasil colônia.
2 O rendimento para fins comerciais, no
entanto, não foi o esperado, motivando a transferência do estabelecimento para
Faxinal do Courita, perto de Porto Alegre. Também receberam o aporte de mais 41
escravos, confiscados de contrabandistas e 20 novas diligências para o
transporte.
Devido a uma conjunção de fatores favoráveis ao enfrentamento e a
resistência, os serviçais dessa nova Feitoria do Linho Cânhamo, em São
Leopoldo, protagonizaram um capítulo que
os colonizadores certamente, até hoje, fazem de tudo para apagar da história.
Os escravos atingiram um nível de cooperação tão grande que lhes foi possível enfrentar
os antigos senhores, de igual pra igual. Foi, de fato, um momento até hoje
inspirador àqueles que buscam atos heroicos praticados por negros ao longo da
nossa história.
A coroa Real outorgou a cada
escravo recrutado o direito de, paralelamente a atividade estatal da cannabis,
desenvolver outras culturas de solo, plantando produtos agrícolas destinados à
alimentação e ao comércio. Tal liberdade permitia-lhes, em turnos inversos aos
seus expedientes de trabalho, produzirem o suficiente para obterem renda média
mensal com o lucro de suas vendas.
2 Porto Alegre ficava a pouco mais de 30 km da
Feitoria, era a capital do Rio Grande, local onde estava o palácio do
governador e toda a sua “corte”, à maneira dos núcleos políticos importantes do
antigo regime. O tempo morto no trabalho, as quebras nos ritmos de produção e o
sub-aproveitamento da mão de obra permitiam aos inspetores emprestar e alugar
trabalhadores, que passavam a frequentar com certa liberdade a incipiente
sociedade urbana porto-alegrense. O mesmo ocorria com os que aproveitavam os
sábados e domingos para vender na cidade o produto da sua roça. Aos poucos
ia-se construindo em torno deles uma rede de interesses privados: governadores,
letrados, artesãos, comerciantes da capital, todos interessados em subtrair
escravos da plantação real. Os escravos estimulavam esse tipo de vínculo, assim
escapavam do trabalho mais duro na Feitoria para vender suas plantações e
exercer trabalho doméstico ou urbano que lhes permitia uma maior liberdade. Com
estas práticas, também ganhavam o apoio de homens poderosos da “corte”
porto-alegrense em seus conflitos com os administradores da RFC.
As indecisões administrativas, as desobediências e o não cumprimento dos
costumes pelo inspetor (chefe geral do estabelecimento) permitiam que os
escravos fossem impondo sua própria “administração”.
Raphael Pinto Bandeira, que então ocupava o cargo interino de governador
do Rio Grande, havia proibido os castigos de escravos Reais na Feitoria. Assim,
argumentava o inspetor Antonio José, “desapareciam os principais estímulos ao
trabalho metódico, subordinação, respeito e terror ao grande corpo de
escravos.” O problema, no entanto, era muito mais grave, pois com esta
determinação se retirava do inspetor o poder de exercer violência privada, base
do regime de escravidão.
No início de 1801 um novo inspetor foi nomeado para a Feitoria, o Pe.
Antonio Gonçalves Cruz, antigo capelão do mesmo estabelecimento. Uma memória
anônima e sem data, mas que parece ser da autoria do mesmo padre, datando do
final do século XVIII e a minuta de nomeação do inspetor, preparada pelo
governador prometiam grandes mudanças no trato como os escravos:
“Proibir
aos escravos o cotidiano tráfico de suas roças e com mais especialidades o que
praticam no domingo e dias santos.” Em troca dever-se-ia regulamentar o sábado
como dia de “feira” para assim obter o
dinheiro para compra de roupas e não “ajuntar somas para aumentar o luxo e nutrir
vícios.”
Também era preciso “desterrar
de entre eles a ociosidade e o comércio com os forasteiros e libertinos, aos
quais, absolutamente se deve negar a entrada neste estabelecimento”. Por último, os
escravos que estavam dispersos, servindo em outras casas, seriam recolhidos.
Dois anos depois, contudo, começou a surgir uma série de problemas.
Alguns escravos fugiram da fazenda para fazer um requerimento ao governador
contra o inspetor. Depois disto, apadrinhados por homens brancos, possivelmente
influentes na sociedade porto-alegrense, retornaram à Feitoria. Suas lideranças
estavam “revoltosas” e todos os dias
faziam “movimentos”.
Dentre essas mencionadas lideranças, o nome do
escravo Manoel José ocupa um papel de destaque nos escassos relatos da época.
Constam, nos apontamentos do próprio inspetor Pe.Cruz, que o cativo fugiu para
Porto Alegre no intuito de “mexer os pauzinhos”, tendo conseguido, de fato, um patrono que
defendesse a sua causa no palácio do governador.
2 Confiantes
da vitória no conflito com o padre, os cativos faziam motins, bailes e
fandangos para aterrorizá-lo. Os escravos estavam conseguindo intimidar o
inspetor com ameaça de um levante e com os seus requerimentos. Talvez
desejassem forçar a sua demissão ou o fim das reformas na administração do
estabelecimento, daí os “movimentos”, os “requerimentos
orgulhosos”
e os “motins”. Vale ressaltar que
atuavam tanto no campo legal, com a formulação de requerimentos, como fora
dele, com pressões e intimidações, mas sem chegar à violência explícita.
Acuado, Cruz agarrou-se com todos os argumentos que tinha para,
finalmente convencer o governador a tomar o seu partido. Conseguiu a prisão do
preto Manoel José em Porto Alegre e anunciou novas medidas para coibir futuras
insubordinações.
2 A punição de Manoel José não trouxe sossego
ao estabelecimento. Dois meses depois o inspetor escrevia que, desejando punir
com 50 açoites por dia um dos negros que desobedecera ao capataz da estância da
Feitoria, “achou-se
tal repugnância nos seus companheiros para o açoitarem, que foi preciso
proceder o castigo em algum para assim o executarem.” Com os açoites na
Real Feitoria do Cânhamo novamente permitidos o Pe. Cruz tentou implementar uma
prática muito comum no Brasil colonial, o uso dos próprios escravos na punição
de seus companheiros, o que causou repugnância e uma resistência passiva que
levou à punição dos recalcitrantes.
No espaço entre 1803 e 1814 não existe nenhuma informação nova sobre a
relação entre o inspetor da Feitoria e a escravaria. No entanto, em 14 de
dezembro de 1814, Joaquim Maria da Costa Ferreira relata a morte do Pe. Cruz ao
governador, o Marquês de Alegrete. Ao que parece, o padre havia sido
assassinado pelos seus escravos.
Alguns anos mais tarde os escravos fizeram nova demonstração de força às
autoridades. De acordo com o relato do inspetor, todas as noites os escravos
iam roubar gado da Feitoria. Querendo dar fim aos roubos, afirma: “mandei a noite
passada alguns soldados do Destacamento prender aqueles que eu tinha certeza
eram os principais roubadores’. Contudo: “não se entregaram eles à prisão e entrando
em suas senzalas saíram armados e assim atacaram os soldados que se retiraram
ao Quartel. Tendo eu parte disto, ajuntei todo o Destacamento e fui com ele
diligenciar a prisão dos levantados, que vendo a nossa resolução e estando o
partido mais engrossado, e até instigado pelas mulheres que gritavam que nos
matassem, saíram ao nosso encontro armados e dirigindo-me ameaças e injúrias,
nos atacaram fortemente, levando eu uma bordoada em um braço e um camarada
muitos de que está em perigo. Conhecendo a desproporção e vendo que se ia
tornando mais sério o caso, retirei-me com o Destacamento.”
O baixo rendimento e produtividade da Feitoria acabaram-na colocando
fora dos projetos econômicos da jovem nação brasileira. No momento em que
caíram os últimos laços coloniais, passou-se a discutir a sua liquidação, que
foi levada a efeito em 1824. No lugar em que habitaram os negros d’El Rei, foi
formada uma colônia de alemães. Os escravos foram enviados ao Rio de Janeiro,
possivelmente de volta à Fazenda Santa Cruz.
O pito
do pango
O aproveitamento da fibra têxtil não foi o único meio de emprego da
cannabis no período de transição da monarquia a república. 3 Sabidamente, a maconha
tem utilidade medicinal no tratamento de diversas enfermidades, sendo usada
para dor reumática, constipação intestinal, disfunções do sistema reprodutor
feminino, malária e outras desde o segundo milênio a.C. O uso pela “medicina
popular” chamava a atenção dos médicos diplomados, que alertavam: “é entre nós
empregada a maconha como fumo, e raramente em infusão: é dada na asma, onde
aliás, a tosse provocada pela fumaça faz recear um uso mais extenso na
moléstia: nas perturbações gastro-intestinais, nas nevralgias, nas cólicas
uterinas”.
Entre o final do Oitocentos e início do novo século a maconha era divulgada
como eficaz medicamento pra problemas respiratórios como bronquite, asma e
tosse ou mesmo para insônia. Os “Cigarros Indios”, produzidos pelo laboratório
francês Grimault & Cie. eram anunciados em jornais de circulação diária
(ver figura abaixo). A propaganda anunciava o medicamento em forma de cigarro.
Curiosamente, alguns anúncios usavam o embasamento médico para a
promoção dos cigarros: “São
bem conhecidos pelos médicos as propriedades anti-asthmaticas do cannabis
indica, de que se tem falado muitas vezes nos memoriais da Academia de Medicina”. A mesma medicina que
se encarregou de questionar o uso da maconha e apontar duramente para seus
possíveis malefícios, era a que aparecia como garantia de qualidade de um
produto feito à base de maconha para curar determinadas enfermidades.
Torna-se, pois, necessário, tentarmos
entender porque uma planta empregada legalmente em pelo menos dois ramos de
atividades (manufatura do linho e medicina) se torna, da noite pro dia, uma
vilã criminalizada que deve ser á todo custo reprimida. Acreditem se quiserem,
ideias racistas foram decisivas nessa transição de pensamento da jovem nação
brasileira.
3 Destaca-se a atuação do médico e político
Rodrigues Dória, cujos escritos serviram de base para tornar ilegal o uso da
maconha, que ele e outros médicos da época apontavam como um hábito trazido
pelos escravos africanos, considerados raça inferior segundo ideias então em
voga. No cenário político de uma Abolição e uma República recém-decretadas se
intensificou a visão de que os hábitos e práticas dos negros seriam obstáculos
para concretizar os anseios por uma nação civilizada. O consumo de maconha
constituía, assim, um dos empecilhos à modernização e ao progresso, uma vez que
seus usuários tenderiam a adquirir comportamentos violentos, imorais ou
insanos.
O primeiro documento conhecido que restringe o uso da maconha foi uma
postura da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, de 1830, penalizando a venda e o
uso do “pito do pango”,
sendo “o vendedor [multado] em 20$000 e os escravos e mais pessoas que dele
usarem, em três dias de cadeia. É possível que posturas semelhantes tenham sido criadas
em outras cidades do Império do Brasil. Segundo ditado popular da época, “maconha em pito faz
negro sem vergonha".
A referência explícita na postura carioca sugere que era entre eles que estava mais
divulgado o uso da maconha, sendo a repressão do seu consumo vinculada ao
controle da população negra. Uma legislação proibitiva mais abrangente, de
caráter nacional, sobre a maconha, só apareceria mais de cem anos depois,
através da inclusão da planta na lista de substâncias proscritas em 1932.
Porém, mesmo antes de sua proibição, a maconha “era diretamente associada às classes
baixas, aos negros e mulatos e a bandidagem”.
A referência ao uso da maconha nas “festas africanas” é constante nos textos dos profissionais que
faziam a campanha contra a erva. Utilizada em rituais sagrados desde tempos
remotos no continente africano, em regiões e entre populações que abasteceram o
tráfico de escravos no Brasil, a maconha parece não ter perdido seu caráter
ritualístico após atravessar o Atlântico. As fontes encontradas mostram que a
planta e a religião afro-brasileira andavam juntas no cenário de condenação ao
curandeirismo, à feitiçaria, à bruxaria e à magia negra, entre outras
definições de carga pejorativa. A influência da medicina foi fundamental nessa
questão: curandeiros representavam uma ameaça aos médicos oficialmente
diplomados e a maconha uma afronta aos remédios farmacologicamente aprovados.
Tentei conduzi-los, até aqui, dentro de uma máquina do tempo que
percorreu caminhos e vielas negligenciadas pela história oficial. Os dados,
citações e fatos aqui expostos foram compilados de bibliografias autênticas,
que podem ser consultadas para um maior aprofundamento, conforme guia de
referência logo abaixo. A temática, evidentemente, não se esgota aqui, pois
apenas a ponta de um iceberg é o que foi trazido à tona. Ignorância se desfaz
com informação e só ela pode sanar dúvidas e mal entendidos históricos. Os
estudos apresentados são sérios e não se tratam de mera apologia às drogas. Fatos
antigos só podem ser discutidos a luz de memórias escritas da época. Em cima
disso, lanço aqui, pretensiosamente, uma nova interpretação a essa questão
proibitiva da cannabis, associada à cultura negra desde os primórdios do Brasil
colônia. Por trás da pretensa “moral e bons costumes” houve, sim, outros
interesses em conflito, não abordados aqui. Expandir o assunto, segundo penso,
poderia tornar cansativo esse nosso retorno ao passado, por isso fiz a opção de
condensar no presente trabalho de pesquisa, apenas o que de imediato me
preocupa. Esses homens que, a exemplo do político Rodrigues Dória, lutaram
contra essa planta queriam, veladamente, criminalizar tudo o que estivesse
relacionado ao negro, essa sub-raça.
Fontes
1 coletivodar.org.
2 Os escravos da Feitoria do Linho-Cânhamo:
Trabalho, conflito e negociação- Maximiliano M. Menz.
3
“Fumo de negro”: A criminilização da maconha no Brasil (c. 1890-1932)-
Dissertação de Pós-Graduação Luisa
Gonçalves Saad- Univ. Federal da Bahia.