O fígado é a maior das glândulas existentes dentro de um animal mamífero e está unido ao diafragma através de pequenos ligamentos. O sangue, vindo do aparelho digestivo, passa pelo fígado antes de retornar para a circulação geral. Grande parte dos alimentos é alterada pelo fígado para tornar-se adequada ao uso do organismo. Ele remove da circulação os corpúsculos usados do sangue e usa o pigmento vermelho (hemoglobina) das hemácias na produção de bílis. Essa bílis é armazenada na vesícula biliar e, em seguida, despejada dentro do intestino, onde ajuda na digestão de gorduras.
A inflamação do fígado é conhecida em todos os manuais de enfermagem e medicina como hepatite. O órgão pode ser atacado por vírus da corrente sanguínea ou do aparelho digestivo. Quando isso ocorre, a bílis não consegue escapar do fígado e, dessa forma, vai para trás, dentro da corrente sanguínea, provocando a icterícia. Conforme o Dicionário de Termos Médicos e de Enfermagem, da Editora Rideel, icterícia é a “coloração amarelada que adquirem a pele e as mucosas por causa do aumento das taxas das bilirrubinas”. Qualquer que seja a causa, o paciente se sente extremamente mal, com vômitos, dores no abdome e sem apetite.
Em casos graves e irreversíveis de hepatite, nos quais os métodos alternativos convencionais de tratamento são considerados ineficazes, a única solução é o transplante hepático. Retira-se o órgão doente e coloca-se um outro fígado, inteiro ou parcial. Em 1968, o Dr. Marcel Cerqueira Cezar Machado realizou o primeiro transplante de fígado do Brasil.
Já em 2004, esse mesmo órgão, tão fundamental para o funcionamento da engrenagem corpórea, foi notícia e evidência na coluna “Cozinha Bem” do Jornal Restinga, periódico distribuído gratuitamente em estabelecimentos comerciais de um bairro na zona sul de Porto Alegre. Alguém que preferiu não se identificar, mascarado pela alcunha de “Anônimo Gourmet”, ofereceu a seus patrícios uma receita que deu água na boca de muita gente:
Rolês de fígado à francesa
Ingredientes:
- 1 kg de bife de fígado em tirinhas
- Sal
- Mostarda
Recheio:
- 1 xícara de passas brancas e pretas
- 150 g de presunto picado
- 150 g de queijo prato cobocó ralado
- 1 caixinha de creme de leite
- 1 ½ maçã em cubinhos
- 1 copo de vinho branco
Molho Parisiense:
- 1 colher (sopa) de manteiga
- 1 colher (sopa) de maisena
- 1 cebola ralada
- 1 copo de leite
- 1 copo de creme de leite
- 2 gemas
- 1 copo de requeijão
- 100 g de nozes ou cogumelos
- 1 colher (sopa) de mostarda
Feitos os devidos ajustes culinários e depois de gratinado por 20 minutos, o prato atinge finalmente o ponto de ser degustado. O fígado do boi, animal de porte avantajado, vai deliciosamente parar no estômago.
“Fígado”, segundo o Minidicionário da Língua Portuguesa, da editora FTD, é uma “víscera intraperitonial situada na parte superior do abdome, à direita, com numerosas funções, entre elas a de secreção da bílis”.
A população bovina pode tranquilamente ser considerada uma privilegiada entre as espécies, já que o seu órgão em questão possui utilidades ainda mais abrangentes. Cumpre ele, num primeiro instante, o seu ofício dentro do aparelho digestivo. Em seguida, num segundo momento, pode ser temperado, refogado e mastigado. Os ligamentos com o diafragma são rompidos com pouca dificuldade, e uma faca afiada numa boa chaira corta, em poucos segundos, o que a natureza anatômica vai moldando desde o nascimento do indivíduo. Os cortes, quando executados por um profissional experiente, permitem a extração precisa da glândula, que, ainda banhada em sangue vermelho e quente, lembra uma medusa de carne. Uma vez separado do boi, assume o órgão morto um outro papel. Inanimado, sem capacidade de filtrar 1 miligrama de gordura sequer, o seu valor, antes funcional, passa a ser comercial. Vai para a geladeira e de lá só sai para satisfazer paladares como o do “Anônimo Gourmet”.
“Mais fechado que porteira de invernada.” Assim definiam-no os vizinhos. Até mesmo para divulgar a sua receita, preferiu o retraído homem esconder a real identidade, permanecendo oculto e incomunicável. Não deu endereço, telefone, email ou perfil no Orkut. Quis, isso sim, prestar um relevante serviço à gastronomia, sem para tanto receber reconhecimento e fama.
Por trás dessa comovente renúncia havia, contudo, um fato comprometedor, encravado como um espinho pontiagudo em seu passado. Algo mal resolvido, inacabado, pendente. Tinha uma dívida com a Justiça e, apesar disso, tentava, em vão, levar uma vida normal, como se fosse de fato um cidadão livre. Na sua consciência, de tempos em tempos, martelava uma máxima de Santo Agostinho transcrita logo no início do RDP. (Regimento Disciplinar Penitenciário):
É melhor coxear pelo caminho do que
avançar a grandes passos fora dele. Porque
quem coxeia pelo caminho, embora avance
devagar, aproxima-se da meta, enquanto que
quem segue fora dele quanto mais corre mais
se afasta.
Era agora um competidor sem destino ou pódio de chegada, cheio de temores e incertezas. Ao ouvir sirenes ou avistar batidas policiais, o seu coração disparava acelerado, regado de adrenalina. É bem verdade que não tirava mais do crime o sustento da família, composta de duas filhas pequenas (uma de 4 e outra de 7 anos), a mulher e um gato gordo. Trabalhava na oficina mecânica do cunhado, no Belém Novo, e todo o ordenado era rigorosamente aplicado em alimentação, aluguel, vestuário, remédios, colégio da guriazinha mais velha e dívidas a pagar. Sua pena em regime aberto, fruto de um roubo mal-sucedido em 1999, delito incluso no artigo 157 (roubo e extorsão), parágrafo 2, inciso I do Código Penal Brasileiro, fora interrompida. Faltando ainda um ano e meio para cumprir a sentença de quatro anos de reclusão no Instituto Penal Reverendo Braz, não retornou de uma Saída Autorizada para consulta médica. Naquele dia, logo ao amanhecer, por volta das 7 horas, sua mãe levou ao Estabelecimento Penal um comprovante de marcação de consulta no Hospital Conceição com o Dr. Ribas, especialista do fígado.
Conforme prevê o artigo 120 da LEP, a Lei de Execução Penal, todo apenado condenado em regime aberto tem o direito de ausentar-se do local de cumprimento da pena para obter assistência de saúde. Utilizando-se desta flexibilidade penal, própria do seu regime, saiu do Instituto pontualmente às 13 horas, sob a condição de retornar, sem escolta ou vigilância, às 16 horas e 30 minutos.
"Fugir foi a única maneira que encontrei pra ajudar minha família, que tanto precisa de mim." Assim justificava-se ele perante os próprios olhos, sustentando convicto a opção de abreviar por contra própria a pena. Passear tranquilamente com as filhas era coisa de um passado distante, pois temia bastante ser reconhecido. Os fios da sua rede elétrica haviam sido recentemente furtados, e ele nem ao menos registrar queixa na delegacia pôde. Estava com o CPF bloqueado, e isto lhe impedia de abrir crediário ou conta bancária. Era um quase pai, quase trabalhador e quase contribuinte.
É justo reforçar que ele estava bastante modificado, e nem beber como um condenado bebia mais. Seu trajeto diário era da casa para o trabalho e do trabalho para a casa. Recusou um tentador convite para assaltar uma padaria na zona-sul e tinha planos de montar a sua própria oficina.
A “marvada”, no entanto, acabou deixando sequelas irreversíveis. Tinha cirrose, doença hepática crônica que provoca o endurecimento do fígado e dores localizadas. Certa vez, durante uma crise aguda, precisou de atendimento na Rede Pública de Saúde, dirigindo-se ao Hospital de Pronto Socorro, no Bom Fim. Transtornado, ébrio de dor, ao fazer o cadastro para ser atendido, acabou fornecendo o seu verdadeiro nome e endereço à recepcionista, mulher de um PM. Isso bastou para que a lei, com seus braços de estivador agarrasse-o novamente com força. Os policiais da Delegacia de Capturas fizeram-lhe uma visita surpresa, e ele hoje, detido em prisão fechada, com o fígado aos frangalhos, implora por consultas médicas na rua.
Cesar S. Farias