Como de hábito, Policarpo Quaresma, mais conhecido por Major Quaresma, bateu em casa às quatro e quinze da tarde. Havia mais de vinte anos que isso acontecia. Saindo do Arsenal de Guerra, onde era subsecretário, bongava pelas confeitarias algumas frutas, comprava um queijo, às vezes, e sempre o pão da padaria francesa. Não gastava nesses passos nem mesmo uma hora, de forma que, às três e quarenta, por aí assim, tomava o bonde, sem erro de um minuto, ia pisar a soleira da porta de sua casa, numa rua afastada de São Januário, bem exatamente às quatro e quinze, como se fosse a aparição de um astro, um eclipse, enfim um fenômeno matematicamente determinado, previsto e predito. A vizinhança já lhe conhecia os hábitos e tanto que, na casa do capitão Cláudio, onde era costume jantar-se aí pelas quatro e meia, logo que o viam passar, a dona gritava à criada: "Alice, hora que são horas; o Major Quaresma já passou."
Era assim o Major Policarpo
Quaresma que acabava de chegar à sua residência, às quatro e quinze da tarde, sem erro de um minuto, como
todas as tardes, exceto aos domingos, exatamente, ao jeito da aparição de um astro ou de um
eclipse. No mais, era um homem
como todos os outros, a não ser aqueles que têm ambições políticas ou de fortuna, porque Quaresma não as tinha
no mínimo grau. Sentado na
cadeira de balanço, bem ao centro de sua biblioteca, o major abriu um livro e pôs-se a lê-lo à espera do conviva. Era o
velho Rocha Pita, o entusiástico e gongórico Rocha Pita da História da América Portuguesa. Quaresma
estava lendo aquele famoso período: "Em nenhuma outra região se mostra o céu mais sereno,
nem madruga mais bela a aurora; o sol em nenhum outro hemisfério tem os raios mais dourados..." mas não pôde ir ao fim. Batiam à porta. Foi abri-la em pessoa. —Tardei,
major? perguntou o visitante. —Não.
Chegaste à hora. Acabava de
entrar em casa do Major Quaresma o Senhor Ricardo Coração dos Outros, homem célebre pela sua habilidade em cantar
modi nhas e tocar violão. Em começo, a sua fama estivera
limitada a um pequeno subúrbio da cidade, em cujos "saraus" ele e seu
violão figuravam como Paganini
e a sua rebeca em festas de duques; mas, aos poucos, com o tempo, foi tomando toda a extensão dos subúrbios, crescendo,
solidificando-se, até ser considerada como coisa própria a eles. Não se julgue, entretanto, que Ricardo
fosse um cantor de modinhas aí qualquer, um capadócio.
Não; Ricardo Coração dos Outros era um artista a freqüentar e a honrar as
melhores famílias do Méier,
Piedade e Riachuelo. Rara era a noite em que não recebesse um convite. Fosse na casa do Tenente Marques, do doutor
Bulhões ou do "Seu" Castro, a sua presença era sempre requerida, instada e apreciada, O doutor
Bulhões, até, tinha pelo Ricardo uma admiração especial, um delírio, um frenesi e, quando o trovador
cantava, ficava em êxtase. "Gosto muito de canto", dizia o doutor no trem certa vez, "mas
só duas pessoas me enchem as medidas: o tamagno e o Ricardo". Esse doutor tinha uma grande
reputação nos subúrbios, não como médico, pois que nem óleo de rícino receitava, mas como
entendido em legislação telegráfica, por ser chefe de seção da Secretaria dos Telégrafos. Dessa maneira, Ricardo Coração dos Outros
gozava da estima geral da alta sociedade suburbana.
É uma alta sociedade muito especial e que só é alta nos subúrbios. Compõe-se em
geral de funcionários públicos,
de pequenos negociantes, de médicos com alguma clínica, de tenentes de diferentes milícias, nata essa que impa
pelas ruas esburacadas daquelas distantes regiões, assim como nas festas e nos bailes, com mais força
que a burguesia de Petrópolis e Botafogo. Isto é só lá, nos bailes, nas festas e nas ruas, onde
se algum dos seus representantes vê um tipo mais ou menos, olha-o da cabeça aos pés,
demoradamente, assim como quem diz: aparece lá em casa que te dou um prato de comida. Porque o orgulho da
aristocracia suburbana está em ter todo dia jantar e almoço, muito feijão, muita carne-seca,
muito ensopado — aí, julga ela, é que está a pedra de toque da nobreza, da alta linha, da distinção. Fora dos subúrbios, na Rua do Ouvidor, nos
teatros, nas grandes festas centrais, essa gente míngua,
apaga-se, desaparece, chegando até as suas mulheres e filhas a perder a beleza
com que deslumbram, quase diariamente, os lindos cavalheiros dos intermináveis bailes diários daquelas redondezas. Ricardo,
depois de ser poeta e o cantor dessa curiosa aristocracia, extravasou e passou
à cidade, propriamente. A sua
fama já chegava a São Cristóvão e em breve (ele o esperava) Botafogo convidá-lo-ia, pois os jornais já falavam
no seu nome e discutiam o alcance de sua obra e da sua poética...
Mas que vinha
ele fazer ali, na casa de pessoa de propósitos tão altos e tão severos hábitos?
Não é difícil atinar. Decerto,
não vinha auxiliar o major nos seus estudos de geologia, de poética, de mineralogia e história brasileiras. Como bem supôs a vizinhança, o Coração dos
Outros vinha ali tão somente ensinar o major a
cantar modinhas e a tocar violão, Nada mais, e é simples. De acordo com a sua paixão dominante,
Quaresma estivera muito tempo a meditar qual seria a expressão poética musical característica
da alma nacional. Consultou historiadores, cronistas e filósofos e adquiriu certeza que era a
modinha acompanhada pelo violão. Seguro dessa verdade, não teve dúvidas: tratou de aprender o
instrumento genuinamente brasileiro e entrar nos segredos da modinha. Estava nisso tudo a quo, mas
procurou saber quem era o primeiro executor da cidade e tomou lições com ele. O seu fim era
disciplinar a modinha e tirar dela um forte motivo original de arte. Ricardo
vinha justamente dar-lhe lição, mas, antes disso, por convite especial do
discípulo, ia compartilhar o
seu jantar; e fora por isso que o famoso trovador chegou mais cedo à casa do subsecretário. —Já sabe dar o "ré" sustenido,
major? perguntou Ricardo logo ao sentar-se. —Já.
—Vamos ver. Dizendo isto, foi desencapotar o seu sagrado
violão; mas não houve tempo. Dona Adelaide, a
irmã de Quaresma, entrou e convidou-os a irem jantar. A sopa já esfriava na
mesa, que fossem! —O Senhor
Ricardo há de nos desculpar, disse a velha senhora, a pobreza do nosso jantar. Eu lhe quis fazer um frango com petit pois,
mas Policarpo não deixou. Disse-me que esse tal petit pois é estrangeiro e que eu o substituísse
por guando. Onde é que se viu frango com guando? Coração
dos Outros aventou que talvez fosse bom, seria uma novidade e não fazia mal experimentar. —É
uma mania de seu amigo, Senhor Ricardo, esta de só querer coisas nacionais, e a
gente tem que ingerir cada
droga, chi! —Qual, Adelaide,
você tem certas ojerizas! A nossa terra, que tem todos os climas do mundo, é capaz de produzir tudo que é
necessário para o estômago mais exigente. Você é que deu para implicar. —Exemplo: a manteiga que fica logo rançosa.
—É porque é de leite, se fosse
como essas estrangeiras aí, fabrica- das com gorduras de esgotos, talvez não se estragasse... É isto,
Ricardo! Não querem nada da nossa terra... —Em
geral é assim, disse Ricardo. —Mas
é um erro... Não protegem as indústrias nacionais... Comigo não há disso: de
tudo que há nacional, eu não uso
estrangeiro. Visto-me com pano nacional, calço botas nacionais e assim por diante. Sentaram-se
à mesa. Quaresma agarrou uma pequena garrafa de cristal e serviu dois cálices de parati. —É do programa nacional, fez a irmã,
sorrindo. —Decerto, e é um
magnífico aperitivo. Esses vermutes por ai, drogas; isto é álcool puro, bom, de cana, não é de batatas ou milho... Ricardo agarrou o cálice com delicadeza e
respeito, levou-o aos lábios e foi como se todo ele
bebesse o licor nacional.
—Está bom,
hein? indagou o major. —Magnífico,
fez Ricardo, estalando os lábios. —É
de Angra. Agora tu vais ver que magnífico vinho do Rio Grande temos... Qual Borgonha! Qual Bordeaux! Temos no Sul muito
melhores... E o jantar correu
assim, nesse tom. Quaresma exaltando os produtos nacionais: a banha, o toucinho e o arroz; a irmã fazia pequenas
objeções e Ricardo dizia: "É, é, não há dúvida" — rolando nas
órbitas os olhos pequenos, franzindo a testa diminuta que se sumia no cabelo
áspero, forçando muito a sua
fisionomia miúda e dura a adquirir uma expressão sincera de delicadeza e
satisfação. Acabado o jantar
foram ver o jardim. Era uma maravilha; não tinha nem uma flor... Certamente não se podia tomar por tal
míseros beijos-de- frade, palmas-de-santa-rita, quaresmas lutulentas, manacás melancólicos e outros
belos exemplares dos nossos campos e prados. Como em tudo o mais, o major era em jardinagem
essencialmente nacional. Nada de rosas, de crisântemos, de magnólias —
flores exóticas; as nossas terras tinham outras mais belas, mais expressivas,
mais olentes, como aquelas que
ele tinha ali, Ricardo ainda
uma vez concordou e os dois entraram na sala, quando o crepúsculo vinha devagar, muito vagaroso e lento, como se
fosse um longo adeus saudoso do sol ao deixar a terra, pondo nas coisas a sua poesia dolente e a
sua deliqüescência. Mal foi
aceso o gás, o mestre de violão empunhou o instrumento, apertou as cravelhas, correu a escala, abaixando-se sobre ele
como se o quisesse beijar. Tirou alguns acordes, para experimentar; e dirigiu-se ao discípulo,
que já tinha o seu em posição: —Vamos
ver. Tire a escala, major. Quaresma
preparou os dedos, afinou a viola, mas não havia na sua execução nem a firmeza,
nem o dengue com que o mestre
fazia a mesma operação. —Olhe,
major, é assim. E mostrava a
posição do instrumento, indo do colo ao braço esquerdo estendido, seguro levemente pelo direito; e em seguida
acrescentou: —Major, o violão é
o instrumento da paixão. Precisa de peito para falar... É preciso encostá-lo, mas encostá-lo com maciez e amor, como
se fosse a amada, a noiva, para que diga o que sentimos...
Diante do violão, Ricardo
ficava loquaz, cheio de sentenças, todo ele fremindo de paixão pelo instrumento desprezado. A lição durou uns cinqüenta minutos. O
major sentiu-se cansado e pediu que o mestre cantasse.
Era a primeira vez que Quaresma lhe fazia esse pedido; embora lisonjeado, quis
a vaidade profissional que
ele, a prin- cípio, se negasse. —Oh!
Não tenho nada novo, uma composição minha. Dona
Adelaide obtemperou então: —Cante
uma de outro. —Oh! Por Deus,
minha senhora! Eu só canto as minhas. O Bilac — conhecem? — quis fazer-me uma modinha, eu não aceitei; você
não entende de violão, "Seu" Bilac. A questão não está em escrever uns versos certos que digam
coisas bonitas; o essencial é achar-se as palavras que o violão pede e deseja. Por exemplo: se eu
dissesse, como em começo quis, n' "O Pé" uma modinha minha: "o teu pé é uma folha de
trevo" — não ia com o violão. Querem ver? E
ensaiou em voz baixa, acompanhado pelo instrumento: o — teu — pé — é — uma — fo
— lha — de — trevo
Quer ir adiante? Abaixo vai a dica:
"Triste fim de Policarpo Quaresma" de Lima Barreto publicado pela primeira vez em 1915, no Rio de Janeiro, em edição independente do próprio autor.