Olha, não fui eu quem inventou esse tal de
trabalho, por isso não me sinto na obrigação de aceitá ele. Alguém, com
certeza, deve te criado... mas esse alguém, definitivamente não fui eu.
Trabalha quem qué... Prefiro levá a vida de boa, sem stress, tranqüilo. Não
nasci pra ficá ouvindo desaforo de patrão.
Gosto
do que é bom, confesso. Porcaria eu nem compro. Perfume tem que sê francês.
Aifone, é completo, de última geração, com tudo, todo equipado. Tênis é Nike,
importado, do bom. Camisa, só das Lojas Tevah... Comigo é assim.
Antes
que comecem a achar que o texto acima é meu e que tô fazendo apologia à
vagabundagem, abro aqui uma lacuna pra explicar que essas palavras não são
minhas, mas do Everton (Veto, para os íntimos). Nem cabe aqui julgá-lo, até
simpatizo com ele, é um bom rapaz, bem humorado, atencioso, brincalhão com as
crianças, inteligente, só que...
Sejamos ponderados, existem defeitos bem mais prejudiciais em certas pessoas e essas sim,
colocam em risco a integridade física e psicológica de outras. Veto, se
analisarmos sua personalidade com calma, não chega a ser um sujeito perigoso ou
desagradável. Tem, digamos assim, como o próprio diz: uma séria divergência com o trabalho. Uma das raríssimas coisas que
lhe faz perder o alto astral, a alegria, a conversação simpática, é convidá-lo
pra pegar uma pá de cimento, lixar e pintar a
grade de ferro, cortar a grama, subir numa escada. Era homem, novamente
nas palavras dele, pra serviços leves, de
preferência. Ele até executa algumas dessas tarefas, mas sempre a
contragosto, resmungando, encontrando defeito em tudo. É a pá que fica soltando o cabo toda hora, o pincel
duro demais, a máquina muito barulhenta, nada contribui para
que o serviço seja finalizado na sua mão. Fica irado, furibundo, possesso,
quando sugerem pra ele algum tipo de ocupação ou atividade braçal.
-- Bem capaz
que eu vô saí de casa às seis da manhã pra ganhá menos de seis mil...
Morava de favor com os tios maternos desde que a mulher chutou o seu
traseiro, cansada de lhe sustentar. Seu Hermógenes e Dona Idalvina aceitaram-no
de bom grado, em casa, sob a condição de que seria só até ele alugar um kitinete
assim que recebesse o dinheiro duma dívida,
trabalhista. Fazia, pra efeitos estatísticos, manutenção de ar condicionado
e lavadoras de roupas, no entanto, negava-se veementemente a se deslocar a
grandes distâncias ou atender wats de clientes aos sábados e domingos.
--Quem é que
trabalha sábado e domingo? Só otário, assim respondeu ao ex sócio da oficina
quando esse lhe propôs um mutirão pra instalação de ar condicionado numa
repartição pública.
-- Prus Judeu o
dia di descanso sempre foi o sábado, não foi? Pois é... Eles tiram isso da
Bíblia, ta lá: E no sétimo dia o Criador descansou, não é assim? Pois é,
depois, bem depois, quando o cristianismo se expandiu e virô religião dos
imperador romano, a igreja passô o tal dia do descanso pra domingo, ta nos
livro, é só lê. Já eu, pra contentá
essas duas linha de pensamento religioso, não me meto nessa polêmica...
Não vô ficá tentando entendê quem tá com
a razão. Não trabalho sábado nem domingo e ponto final. Tenho amparo da bíblia
e dos padre pra isso. Kkkkkkkkkkkk.
Na
verdade, Vetinho (para os mais íntimos
ainda), era sustentado pelos tios e até gorjetas da prima, que era bancária,
recebia. Entre os dias quatro e cinco de cada mês a sua solicitude com Tia
Idalvina atingia índices extremos. Era época de pagamento do INSS. Fazia
questão de chamar o Uber por volta das 09:00 hs e acompanhá-la ao caixa
eletrônico para auxiliá-la no saque da aposentadoria.
-- Não vô dexá
minha tia na mão de golpista ou batedor di cartera... Tu ti atrapalha toda pra
digitá os comando no caixa... Vô junto com a senhora, faço questão.
Coincidência ou não, toda vez, na saída do banco, quando entregava de
volta o maço de notas e o cartão pra tia, recebia dela, em troca pelos serviços
prestados, generosa gratificação. A sua gratidão e prestatividade, no entanto,
começou a enfraquecer-se um pouco, lá pelo sexto... sétimo mês de estadia na
casa. Se antes ia ao supermercado pra trazer, na sua moto, as sacolas mais
pesadas pros velhos, agora já não ia mais. Tinham que chamar o táxi. Se nas primeiras
semanas ele costumava levar Dona Idalvina pro Pilates, todas as quintas, pouco
passou a importar-se com a atividade física da velha. Se no início, ás vezes,
retirava o excremento dos cuscos no pátio, vista grossa fazia agora a essa e
outras atividades de limpeza, higiene e manutenção da residência. Andava mais preocupado com a forma física e a
programação da NET. Comprou uma esteira ergométrica, uma barra para exercícios
abdominais e pequenos alteres. Com eles vivia moldando o seu corpo sarado e
enxuto.
Era,
de fato, bem apessoado, de presença, bonitinho. Também era respeitador, não
mexia nem dava piadinha pra mulher de ninguém. Foi por esses e alguns outros
motivos que o casal de tios não enxergou
inconveniente algum em aceitá-lo por uns tempos no ex quartinho do primo,
estabelecido há alguns anos em São Paulo. Seria provisório, até ele fazer a
vida novamente, juntar grana.
-- Aquilo é um
malandrão. Nunca trabalhô na vida... Foi excomungado pela mulher porque não
queria trabalhá. Ela é quem sustentava ele.
Foi isso o que sentenciou Dona
Diná, vizinha e desafeto de Idalvina, certa tarde, na farmácia do bairro, entre
amigas.
-- É um baita
arriado. Não gosta de pegá nu pesado. Si encostô nos velho... Não faz nada pela
vida.
Juarez, eletricista da família, comentou isso com o ajudante, quando à
caminho do serviço se lembrou do rapaz.
O
fato é que o assunto, não só virou manchete nas redondezas, como passou a
ocasionar transtornos cada vez mais frequentes na casa. Veto, não somente
adaptou-se a sua subalterna condição de agregado, como passou a se sentir no
direito de desfrutar plenamente daquelas instalações à ele confiado. Convidava
amigos e amigas pra beber em casa até altas horas da madrugada, com som alto,
em meio à gargalhadas, quebra de copos, silvos e relinchos.
Muito
raramente aparecia alguma máquina pra ele consertar, por isso tinha tempo de
sobra pra assistir seriados da NET, esparramado no sofá da sala, com ventilador
ligado ao máximo em cima duma banqueta de madeira logo à sua frente. Alternava
esses momentos relax com os exercícios físicos na garagem e esses sim,
faziam-no suar como um trabalhador. Foi, aliás, a tal da NET, a gota final para
que a família repensasse aquela relação. Camila, a titular da assinatura, se
indignou quando Vetinho cobrou dela um
pacote mais completo de canais, com mais opções de seriados e shows.
Segundo ele, aquela NET dela tava muito
mixuruca e tava na hora de mudar. A moça,
pasma, desabafou isso com a mãe, que por sua vez também se queixou que ele
ficara ofendido quando lhe sugeriram ajudar financeiramente pelo menos na
conta de luz da casa, que andava alta. Nem foi necessário tentarem convencer
Seu Hermógenes, o primeiro a reparar que o sobrinho, com efeito, não quer nada com nada. Pedira, dias
antes, pra ele ajudá-lo na pintura externa da casa, recebendo em troca um nada
convincente: Tá, se der eu ajudo. Infelizmente,
ele não só se esquivou, saindo em sua moto todos aqueles dias, abrindo mão até
mesmo de seus exercícios físicos e da NET, como também esculachou a escolha da
cor aplicada na parede, achando-a triste e apagada
demais.
O consenso e a vontade soberana
da família finalmente prevaleceram. Foi o tio que lhe chamou pras conversas, alegando que precisavam
esvaziar o quarto pra receber o filho que estava pra chegar, em férias. Everton,
surpreso, sugeriu ainda, numa última tentativa, construir um puxadinho aos fundos, torrando de vez a
paciência do velho.
-- Nem pensar.
Aqui não tem mais espaço! Ti dô uma semana pra arrumá ôtro lugar, entendeu?
Felizmente ele entendeu. Arrumou no bailão uma coroa viúva que não
resistiu aos seus amassos e a seus encantos de jovem. Se mudou pra casa dela,
enchendo-a de carinhos e beijos, dia e noite.
Cesar