Eu muitas vezes fiquei imaginando o que aconteceria se Paulo e Mateus fossem trancados em uma sala da qual não pudessem sair antes de produzir uma declaração de consenso sobre como os seguidores de Jesus deveriam lidar com a lei judaica. Eles teriam conseguido sair ou ainda estariam lá até hoje como dois esqueletos?
Se Mateus, que escreveu 25 ou trinta anos após Paulo, algum dia leu as epístolas de Paulo, certamente não as achou inspiradoras, muito menos inspiradas. Mateus vê a lei de um modo diferente de Paulo e acha que os seguidores de Jesus precisam obedecer a ela. Na verdade, eles precisam obedecer a ela ainda mais do que a maioria dos judeus devotos, escribas e fariseus. Em Mateus, é lembrado que Jesus disse:
Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas. Não vim revogá-los, mas dar-lhes pleno cumprimento, porque em verdade vos digo que, até que passem o céu e a terra, não será omitido nem um só í, uma só vírgula da Lei, sem que tudo seja realizado. Aquele, portanto, que violar um só desses menores mandamentos e ensinar os homens a fazerem o mesmo será chamado o menor no Reino dos Céus. Aquele, porém, que os praticar e ensinar, esse será chamado grande no Reino dos Céus. Com efeito, eu vos asseguro que se a vossa justiça não ultrapassar a dos escribas e dos fariseus, não entrareis no Reino dos Céus (Mateus 5:17-20)
Paulo achava que os seguidores de Jesus que tentavam obedecer à lei corriam o risco de perder sua salvação. Mateus achava que os seguidores de Jesus que não seguiam a lei, e ainda mais que os judeus mais religiosos, nunca alcançariam a salvação. Ao longo dos anos, teólogos e intérpretes tentaram conciliar essas duas visões, o que é perfeitamente compreensível, uma vez que ambas estão no cânone. Mas qualquer um que leia o Evangelho segundo Mateus e depois a epístola aos gálatas nunca poderia imaginar que haveria uma razão para conciliar essas duas declarações, ou um modo de fazer isso. Para Mateus, ser grande no reino exige seguir todos os mandamentos; apenas para entrar no reino é necessário segui-los ainda melhor do que escribas e fariseus. Para Paulo, entrar no reino (uma forma diferente de dizer "se justificar") é possível apenas pela morte e pela ressureição de Jesus; para os gentios, seguir a lei judaica (a circuncisão, por exemplo) é estritamente proibido.
Claro que Mateus também sabe tudo sobre a morte e a ressureição de Jesus. Ele passa boa parte de seu Evangelho narrando-as. E acha, também, que fora da morte de Jesus não pode haver salvação. Mas a salvação também exige que se sigam as leis de Deus. Afinal, ele criou essas leis. Presume-se que estava falando sério na primeira vez e não mudou de ideia depois.
Na verdade, uma passagem em Mateus sugere que a salvação não é apenas uma questão de crença, mas também de ação, uma ideia absolutamente ausente do raciocínio de Paulo. Em um dos grandes discurso de Jesus, encontrado apenas em Mateus, ele descreve o Dia do Juízo Final que acontecerá no fim dos tempos. O Filho do Homem surge em glória com seus anjos, e pessoas de todas as nações da Terra se reúnem perante ele (Mateus 25:31-45). Ele as divide em dois grupos, "como um pastor separa as ovelhas dos bodes". As ovelhas ficam à sua direita e os bodes à esquerda. Ele recebe as ovelhas no Reino de Deus, "preparado para vocês desde a criação do mundo". Por que aquelas pessoas são levadas ao reino?
Pois tive fome e me destes de comer. Tive sede e me destes de beber. Era forasteiro e me acolhestes. Estive nu e me vististes, preso e viestes ver-me.
As "ovelhas", porém, ficam perplexas. Elas não se lembram sequer de ter encontrado Jesus, o Filho do Homem, quanto mais de fazer essas coisas por ele. Mas ele diz a elas: "Cada vez que fizestes a um desses meus irmãos mais pequeninos, a mim o fizestes. " Em outras palavras, é cuidando dos que têm fome, sede, estão nus, doentes e encarcerados que é possível herdar o Reino de Deus.
Do livro "Quem Jesus foi? Quem Jesus não foi?" - Bart D. Ehrman
💜Antecipadamente, meus votos de Feliz Páscoa.💚