segunda-feira, 4 de novembro de 2019

Início de um Triste Fim



         

        Como de hábito, Policarpo Quaresma, mais conhecido por Major Quaresma, bateu em casa às quatro e quinze da tarde. Havia mais de vinte anos que isso acontecia. Saindo do Arsenal de Guerra, onde era subsecretário, bongava pelas confeitarias algumas frutas, comprava um queijo, às vezes, e sempre o pão da padaria francesa. Não gastava nesses passos nem mesmo uma hora, de forma que, às três e quarenta, por aí assim, tomava o bonde, sem erro de um minuto, ia pisar a soleira da porta de sua casa, numa rua afastada de São Januário, bem exatamente às quatro e quinze, como se fosse a aparição de um astro, um eclipse, enfim um fenômeno matematicamente determinado, previsto e predito. A vizinhança já lhe conhecia os hábitos e tanto que, na casa do capitão Cláudio, onde era costume jantar-se aí pelas quatro e meia, logo que o viam passar, a dona gritava à criada: "Alice, hora que são horas; o Major Quaresma já passou."
          Era assim o Major Policarpo Quaresma que acabava de chegar à sua residência, às quatro e quinze da tarde, sem erro de um minuto, como todas as tardes, exceto aos domingos, exatamente, ao jeito da aparição de um astro ou de um eclipse. No mais, era um homem como todos os outros, a não ser aqueles que têm ambições políticas ou de fortuna, porque Quaresma não as tinha no mínimo grau. Sentado na cadeira de balanço, bem ao centro de sua biblioteca, o major abriu um livro e pôs-se a lê-lo à espera do conviva. Era o velho Rocha Pita, o entusiástico e gongórico Rocha Pita da História da América Portuguesa. Quaresma estava lendo aquele famoso período: "Em nenhuma outra região se mostra o céu mais sereno, nem madruga mais bela a aurora; o sol em nenhum outro hemisfério tem os raios mais dourados..." mas não pôde ir ao fim. Batiam à porta. Foi abri-la em pessoa. —Tardei, major? perguntou o visitante. —Não. Chegaste à hora. Acabava de entrar em casa do Major Quaresma o Senhor Ricardo Coração dos Outros, homem célebre pela sua habilidade em cantar modi nhas e tocar violão. Em começo, a sua fama estivera limitada a um pequeno subúrbio da cidade, em cujos "saraus" ele e seu violão figuravam como Paganini e a sua rebeca em festas de duques; mas, aos poucos, com o tempo, foi tomando toda a extensão dos subúrbios, crescendo, solidificando-se, até ser considerada como coisa própria a eles. Não se julgue, entretanto, que Ricardo fosse um cantor de modinhas aí qualquer, um capadócio. Não; Ricardo Coração dos Outros era um artista a freqüentar e a honrar as melhores famílias do Méier, Piedade e Riachuelo. Rara era a noite em que não recebesse um convite. Fosse na casa do Tenente Marques, do doutor Bulhões ou do "Seu" Castro, a sua presença era sempre requerida, instada e apreciada, O doutor Bulhões, até, tinha pelo Ricardo uma admiração especial, um delírio, um frenesi e, quando o trovador cantava, ficava em êxtase. "Gosto muito de canto", dizia o doutor no trem certa vez, "mas só duas pessoas me enchem as medidas: o tamagno e o Ricardo". Esse doutor tinha uma grande reputação nos subúrbios, não como médico, pois que nem óleo de rícino receitava, mas como entendido em legislação telegráfica, por ser chefe de seção da Secretaria dos Telégrafos. Dessa maneira, Ricardo Coração dos Outros gozava da estima geral da alta sociedade suburbana. É uma alta sociedade muito especial e que só é alta nos subúrbios. Compõe-se em geral de funcionários públicos, de pequenos negociantes, de médicos com alguma clínica, de tenentes de diferentes milícias, nata essa que impa pelas ruas esburacadas daquelas distantes regiões, assim como nas festas e nos bailes, com mais força que a burguesia de Petrópolis e Botafogo. Isto é só lá, nos bailes, nas festas e nas ruas, onde se algum dos seus representantes vê um tipo mais ou menos, olha-o da cabeça aos pés, demoradamente, assim como quem diz: aparece lá em casa que te dou um prato de comida. Porque o orgulho da aristocracia suburbana está em ter todo dia jantar e almoço, muito feijão, muita carne-seca, muito ensopado — aí, julga ela, é que está a pedra de toque da nobreza, da alta linha, da distinção. Fora dos subúrbios, na Rua do Ouvidor, nos teatros, nas grandes festas centrais, essa gente míngua, apaga-se, desaparece, chegando até as suas mulheres e filhas a perder a beleza com que deslumbram, quase diariamente, os lindos cavalheiros dos intermináveis bailes diários daquelas redondezas. Ricardo, depois de ser poeta e o cantor dessa curiosa aristocracia, extravasou e passou à cidade, propriamente. A sua fama já chegava a São Cristóvão e em breve (ele o esperava) Botafogo convidá-lo-ia, pois os jornais já falavam no seu nome e discutiam o alcance de sua obra e da sua poética...
Mas que vinha ele fazer ali, na casa de pessoa de propósitos tão altos e tão severos hábitos? Não é difícil atinar. Decerto, não vinha auxiliar o major nos seus estudos de geologia, de poética, de mineralogia e história brasileiras. Como bem supôs a vizinhança, o Coração dos Outros vinha ali tão somente ensinar o major a cantar modinhas e a tocar violão, Nada mais, e é simples. De acordo com a sua paixão dominante, Quaresma estivera muito tempo a meditar qual seria a expressão poética musical característica da alma nacional. Consultou historiadores, cronistas e filósofos e adquiriu certeza que era a modinha acompanhada pelo violão. Seguro dessa verdade, não teve dúvidas: tratou de aprender o instrumento genuinamente brasileiro e entrar nos segredos da modinha. Estava nisso tudo a quo, mas procurou saber quem era o primeiro executor da cidade e tomou lições com ele. O seu fim era disciplinar a modinha e tirar dela um forte motivo original de arte. Ricardo vinha justamente dar-lhe lição, mas, antes disso, por convite especial do discípulo, ia compartilhar o seu jantar; e fora por isso que o famoso trovador chegou mais cedo à casa do subsecretário. —Já sabe dar o "ré" sustenido, major? perguntou Ricardo logo ao sentar-se. —Já. —Vamos ver. Dizendo isto, foi desencapotar o seu sagrado violão; mas não houve tempo. Dona Adelaide, a irmã de Quaresma, entrou e convidou-os a irem jantar. A sopa já esfriava na mesa, que fossem! —O Senhor Ricardo há de nos desculpar, disse a velha senhora, a pobreza do nosso jantar. Eu lhe quis fazer um frango com petit pois, mas Policarpo não deixou. Disse-me que esse tal petit pois é estrangeiro e que eu o substituísse por guando. Onde é que se viu frango com guando? Coração dos Outros aventou que talvez fosse bom, seria uma novidade e não fazia mal experimentar. —É uma mania de seu amigo, Senhor Ricardo, esta de só querer coisas nacionais, e a gente tem que ingerir cada droga, chi! —Qual, Adelaide, você tem certas ojerizas! A nossa terra, que tem todos os climas do mundo, é capaz de produzir tudo que é necessário para o estômago mais exigente. Você é que deu para implicar. —Exemplo: a manteiga que fica logo rançosa. —É porque é de leite, se fosse como essas estrangeiras aí, fabrica- das com gorduras de esgotos, talvez não se estragasse... É isto, Ricardo! Não querem nada da nossa terra... —Em geral é assim, disse Ricardo. —Mas é um erro... Não protegem as indústrias nacionais... Comigo não há disso: de tudo que há nacional, eu não uso estrangeiro. Visto-me com pano nacional, calço botas nacionais e assim por diante. Sentaram-se à mesa. Quaresma agarrou uma pequena garrafa de cristal e serviu dois cálices de parati. —É do programa nacional, fez a irmã, sorrindo. —Decerto, e é um magnífico aperitivo. Esses vermutes por ai, drogas; isto é álcool puro, bom, de cana, não é de batatas ou milho... Ricardo agarrou o cálice com delicadeza e respeito, levou-o aos lábios e foi como se todo ele bebesse o licor nacional.
—Está bom, hein? indagou o major. —Magnífico, fez Ricardo, estalando os lábios. —É de Angra. Agora tu vais ver que magnífico vinho do Rio Grande temos... Qual Borgonha! Qual Bordeaux! Temos no Sul muito melhores... E o jantar correu assim, nesse tom. Quaresma exaltando os produtos nacionais: a banha, o toucinho e o arroz; a irmã fazia pequenas objeções e Ricardo dizia: "É, é, não há dúvida" — rolando nas órbitas os olhos pequenos, franzindo a testa diminuta que se sumia no cabelo áspero, forçando muito a sua fisionomia miúda e dura a adquirir uma expressão sincera de delicadeza e satisfação. Acabado o jantar foram ver o jardim. Era uma maravilha; não tinha nem uma flor... Certamente não se podia tomar por tal míseros beijos-de- frade, palmas-de-santa-rita, quaresmas lutulentas, manacás melancólicos e outros belos exemplares dos nossos campos e prados. Como em tudo o mais, o major era em jardinagem essencialmente nacional. Nada de rosas, de crisântemos, de magnólias — flores exóticas; as nossas terras tinham outras mais belas, mais expressivas, mais olentes, como aquelas que ele tinha ali, Ricardo ainda uma vez concordou e os dois entraram na sala, quando o crepúsculo vinha devagar, muito vagaroso e lento, como se fosse um longo adeus saudoso do sol ao deixar a terra, pondo nas coisas a sua poesia dolente e a sua deliqüescência. Mal foi aceso o gás, o mestre de violão empunhou o instrumento, apertou as cravelhas, correu a escala, abaixando-se sobre ele como se o quisesse beijar. Tirou alguns acordes, para experimentar; e dirigiu-se ao discípulo, que já tinha o seu em posição: —Vamos ver. Tire a escala, major. Quaresma preparou os dedos, afinou a viola, mas não havia na sua execução nem a firmeza, nem o dengue com que o mestre fazia a mesma operação. —Olhe, major, é assim. E mostrava a posição do instrumento, indo do colo ao braço esquerdo estendido, seguro levemente pelo direito; e em seguida acrescentou: —Major, o violão é o instrumento da paixão. Precisa de peito para falar... É preciso encostá-lo, mas encostá-lo com maciez e amor, como se fosse a amada, a noiva, para que diga o que sentimos... Diante do violão, Ricardo ficava loquaz, cheio de sentenças, todo ele fremindo de paixão pelo instrumento desprezado. A lição durou uns cinqüenta minutos. O major sentiu-se cansado e pediu que o mestre cantasse. Era a primeira vez que Quaresma lhe fazia esse pedido; embora lisonjeado, quis a vaidade profissional que ele, a prin- cípio, se negasse. —Oh! Não tenho nada novo, uma composição minha. Dona Adelaide obtemperou então: —Cante uma de outro. —Oh! Por Deus, minha senhora! Eu só canto as minhas. O Bilac — conhecem? — quis fazer-me uma modinha, eu não aceitei; você não entende de violão, "Seu" Bilac. A questão não está em escrever uns versos certos que digam coisas bonitas; o essencial é achar-se as palavras que o violão pede e deseja. Por exemplo: se eu dissesse, como em começo quis, n' "O Pé" uma modinha minha: "o teu pé é uma folha de trevo" — não ia com o violão. Querem ver? E ensaiou em voz baixa, acompanhado pelo instrumento: o — teu — pé — é — uma — fo — lha — de — trevo



Quer ir adiante? Abaixo vai a dica:

 "Triste fim de Policarpo Quaresma"  de Lima Barreto publicado pela primeira vez  em 1915, no Rio de Janeiro, em edição independente do próprio autor.


sexta-feira, 11 de outubro de 2019

Bebeco Rock Garcia



Bebeco Garcia nasceu em Rio Grande no dia 11 de outubro de 1953. Em sua cidade natal tocou com a banda A Farinha do Bruxo mas logo mudou-se para Porto Alegre, onde fez parte da banda A Barra do Porto, juntamente com o músico Mutuca. Em 1982 gravou com Mutuca & Amigos nos estúdios da ISAEC, ao lado do baterista Edinho Galhardi e do baixista Flávio Chaminé. Em 1983 Bebeco participou da gravação de Risco no Céu, LP de Carlinhos Hartlieb, como co-autor e guitarrista da música Nós Que Ficamos Sós, feita para John Lennon que há pouco tempo havia sido assassinado.

Garotos da Rua

Em julho de 1983 Bebeco, Edinho Galhardi, e o baixista Mitch Marini fundaram a banda Garotos da Rua, inicialmente tocando como a banda da casa no bar Rocket 88, um reduto do rock and roll de propriedade de Mutuca. A primeira demo do grupo, Sabe o Que Acontece Comigo? foi gravada seis meses depois, com a entrada do baixista Geraldo Freitas e do guitarrista Justino Vasconcelos. Em seguida os Garotos da Rua iniciaram uma série de shows em Porto Alegre e percorreram mais de 50 cidades do Rio Grande do Sul.
No início de 1986 participaram da célebre coletânea Rock Grande do Sul, da qual também fizeram parte os grupos Engenheiros do Hawaii, Defalla, TNT e Replicantes. Ainda naquele ano ficaram conhecidos nacionalmente com a música Tô de saco cheio (Lá em casa continuam os mesmos problemas) .O sucesso desta música, além de fazer com que a banda se transferisse para o Rio de Janeiro, incentivou a gravadora RCA a lançar três LPs dos Garotos da Rua entre 1986 e 1988, através do selo Plug, dedicado a revelações do rock brasileiro.
Empolgados os músicos lançam seu primeiro disco, Garotos da Rua, que inclui Você é Tudo que Eu Quero, Sabe o Que Acontece Comigo?, Babilina e Gurizada Medonha. Em 1987 gravam o disco Dr. em Rock ´n´ Roll, e a música Eu Já Sei alcança grande sucesso em todo o país, ao fazer parte da trilha sonora da novela Mandala, da Rede Globo.
Em 1990, o grupo participou da trilha sonora da novela Gente Fina da Rede Globo com a música Bagda 40º, tema do personagem Maurício Em 1992, lançam o sensacional disco ao vivo Blues Climax 900 (Overseas/BMG) gravado no Clube 900 Executivo em Lages, Santa Catarina, onde Bebeco morou por algum tempo anos depois.
A formação original da banda teve fim em 1989 após o lançamento do disco Não Basta Dizer Não, de 1988, mas até 1994  Bebeco manteve o nome Garotos da Rua realizando shows acompanhado por músicos convidados.

Em 1997 lançou Aleluia, Aleluia, disco que marcaria a transição do rock para o blues, e que abriu os horizontes para Bebeco que havia encerrado suas atividades com os Garotos 3 anos antes. A partir de 1999, ano de lançamento de Me Chamam Curto Circuito, Bebeco alternou períodos no Rio de Janeiro, em Porto Alegre e em São Paulo. Neste período lançou álbuns individuais como Bebeco Garcia & O Bando dos Ciganos (2001), Confidencial (2003), sempre acompanhado do Bando de Ciganos, formado pelos músicos Egisto Dal Santo no baixo, primeiramente Pedro Garcia, filho de Bebeco, segurou a batera, depois veio o antigo parceiro da primeira formação de power trio, Garotos da Rua, Edinho Galhardi. Por último e umaki obra-prima, Rio Grande Rio Blues (2005). Todos estes discos confirmaram a reputação do músico como um dos melhores guitarristas gaúchos.
Em 19 de maio de 2010, após uma operação para retirada de um tumor no cérebro no mês anterior, não resistiu às complicações pós-operatórias e faleceu no hospital da PUC-RS  vítima de uma infecção generalizada. Durante seu sepultamento Egisto Dal Santo, seu amigo e parceiro musical, fez uma homenagem ao cantor.





Fonte: wikipédia 


sexta-feira, 4 de outubro de 2019

Doidão de tequila





          Que o Eunício gostava dum trago era fato consumado e disso poucos duvidavam ou contestavam. A sua pele enrugada, queimada de sol, os olhos vermelhos, as canelas finas, o tremor de mãos aos finais de tarde, o hálito de cebola com peixe, tudo isso eram indícios. Se o sujeito, afinal era ou não era, vamos ao fatos.

-- Mas olha lá... Aquele já vem torto, com us pé encharcado...

       Na data de  doze de agosto de 2019, era uma segunda-feira, quem cruzou com ele na rua ou avistou-lhe de longe, pela janela, teve o presságio sinistro de que a manguassa foi grande. Dona Tânia viu a cena, pois mexia na cortina e passava flanela nos vidros. Ela gritou isso  pra filha Nívea, fazendo a jovem interromper o café da tarde.
       O Benito, da barbearia, tentou puxar assunto quando o homem passou em frente ao salão, mas disse que estranhou ele.
 
--Não falou nada com nada, nem disse coisa com coisa.

      A mesma impressão parece ter tido o velho Binhalva, do banco da praça, quando enxergou o bebum. O aposentado lembra como se fosse hoje e testemunhou isso mais tarde:

-- Naquele dia ele vinha bem calibrado e xispava fogo pelas venta...

    Um de seus companheiros ocasionais de boteco, o Ruivo, que do outro lado da calçada, sem coragem de chamá-lo, viu ele, comentou em roda privada:

-- Tava Pra Lá de Bagdá.

     Seus passos, acima da média habitual,  eram trôpegos e vacilantes. Ele cambaleava pela rua, decidido a executar sabe-se lá o quê. Incontrolável rancor lhe acompanhava. Tinha raiva e isso quem denunciavam eram os seus lábios trêmulos. O olhar era sinistro, parado, como se com os olhos da mente enxergasse um implacável inimigo. Bebia, literalmente falando,  como um condenado. Isso enfatizo por que tenho em mãos o Processo Administrativo 17—455923/18-DV: Y,  que culminou na suspensão, a contar de doze de julho de 2019, do seu direito de dirigir. Tinha que entregar a CNH. Ele sabia, mas fez que nem era com ele.
     O seu prontuário acumulava, a época, dezenove pontos, um só pra suspender a habilitação . A recente autuação sofrida durante blitz, no entanto, foi quem colocou temporariamente na geladeira a sua permissão para guiar veículo. Muito esperto e astuto, se negou a entregar espontaneamente, ao órgão competente, o documento.

-- Vô dá umas banda com a Lu... depois eu entrego...

     E foi naquele clima, naquela vibração, mamado, que ele abriu o portão da garagem tão logo chegou em casa. Com extrema dificuldade, após experimentar quase vinte chaves diferentes, abriu o cadeado do trinco de ferro superior e empurrou pra dentro,  com força, ambos os portões. Em zigue-zague, chegou à entrada do próprio carro, um Civic Laranja, ano 2016. Embarcou nele e sem  se dar ao trabalho de fechar novamente o portão, saiu cantando pneu, rua afora. A sua coordenação motora era lenta e os reflexos tardios. Fez manobras ousadas e ignorou praticamente todas as regras de trânsito no longo percurso que fez até a quadra de Soccer. Tinha pressa, tinha ganas de alguém. A resolução, ainda oculta, era inabalável e não podia mais esperar.

     A honra de um homem, raciocinava consigo mesmo enquanto engatava as marchas, é o que de mais precioso ele carrega por toda a vida e aquilo que lhe é mais precioso ele não deve dividir com ninguém. Lamentavelmente, ele não estava sentado no alpendre de casa ou no bar da boate, com tempo de sobra pra pensar nos dissabores da vida. Tava com um volante entre as mãos, um acelerador embaixo do pé direito e as atividades cerebrais lentas.
  Em alta velocidade, ainda no centro de Passo Fundo, esqueceu de fazer uma curva e não foi suficientemente rápido pra frear. Atropelou três pessoas na calçada. Conforme testemunhas, a tragédia só não atingiu maiores proporções porque um carro e duas motos estacionadas na rua acabaram amortecendo o violento impacto de um Civic à cem quilômetros por hora e desgovernado. Viu pessoas feridas, deitadas no chão, mas preferiu simplesmente dar uma ré e sair de cena. Tinha um objetivo já definido naquela tarde. Seguiu na sua ébria caçada em defesa da honra.

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     Mas Eunício, perdoem-me a intromissão, teve advertências e insinuações de sobra pra desconfiar de algo que acabou manchando, de fato, a sua honra de macho. A Luciana, com aquele celular dela, andava bem estranha e já fazia tempo. Não desgrudava os olhos da tela, ria sozinha seguidas vezes e parava de digitar na tela toda vez que ele chegava. Em duas oportunidades o rapaz deu a impressão de ter percebido no ar algo estranho. Primeiro foi no carro, era noite e esperavam a afilhada na porta da faculdade. Ele ficou em dúvida, pois despertou de um cochilo e viu ela, ao lado seu suspirando: AAAi... Que cara lôku... Não faaaz...  Quando viu que o marido tava acordado, desconversou rápido e baixou do rosto o Smartphone
     Já da outra vez foi em casa, na cozinha. Chegou de surpresa na peça, por trás, querendo fungar o cangote da fêmea, trazendo-lhe, no entanto, grande sobressalto. Recomposta do susto, novamente Luciana agiu sem demora. Ocultou o que estava na sua tela, jogou o aparelho na bolsa e com naturalidade, daquele jeito que só ela sabia fazer, apalpou a sua virilha direita.
     Coincidências, bobas desconfianças e impressões sem fundamentos. Assim ela respondeu quando percebeu nele, pela primeira vez na vida, desconfianças quanto a sua fidelidade. A justificativa foi o suficiente pra ele deixar tudo como estava e seguir no balanço da correnteza. Amava-a de paixão. Pra quê desconfiá da nega veia?
     Certo camarada de trabalho, quando comentou sobre a Lú entre parceiros de bilhar disse que o bichinho anda muito solto e que o cara ta dando sopa pro azar. O pai, que ele ouvia de vez em quando, já tinha tentado abrir-lhe os olhos do entendimento:

-- Essa tua criança, tenho que te dizê, acredite tu ou não, anda fazendo arte...

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     Ela sempre foi gente boa, dedicada... O que virô  a cabeça dela foi as companhia, disse o corn... desculpem-me, Eunício,  quando finalmente caiu-lhe a ficha da traição. A propósito, já que quase toquei no assunto, necessário se faz ressalva. Em oposição ao que muitos devem já desconfiarem, o rapaz não era corno.  Era um corninho se quisermos, sem exagero, fazer justiça aos fatos. Apesar dos trinta e seis anos, media apenas 1,59. Trabalhador, diga-se de passagem, mas embriagado pelas carícias de uma mulher mais nova, bonita e carinhosa. Era bobo por ela. Orgulhava-se de andar pra cima e pra baixo com uma china tão gostosa. O que lhe transformou, pode-se dizer, repentinamente, num boi brabo, iracundo, foi aquela página do face aberta, que ela esqueceu quando lhe deu dor de barriga, no meio daquele carreteiro com maionese, no apartamento do Rick. Na rede social, em conversa privada na ferramenta Messenger, a sua Pequena contava os segundos pra se trancar no motel com Marino, o mesmo cara que havia sido aprovado em seu lugar, num teste pra guitarrista da banda Nitroglicerina, no final da década de noventa, na cidade gaúcha. Não se davam bem, eram desafetos, competiam em tudo.

-- Puxador de fumo duma figa... Vô ti estorá us corno... Dêxa que o que é teu ta guardado...

     Doze de agosto de dois mil e dezenove foi a data criteriosamente marcada para o acerto de contas. O boi sabia que naquela tarde o Gerente de Qualidade da empresa MouraCruz, de cigarros, vinha  jogar soccer com parcerias, na Quadra do Bigode, distante cerca de quatro quilômetros do centro, em zona residencial dos fumicultores daquela região. Ele, que outrora fora manso, estava agora armado e perigoso. Tinha porte e registro para tal e, em defesa da honra, lançou-se como vespa de quem uma paulada põe ao chão o vespeiro, á fim de vingança. Não perderia de novo, pro mesmo oponente de outras tantas batalhas. Era só dá uns tiro nele e saí fora.

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-- Ezuc Bika... Tuzûki dixêu... Dixeu!

     Concordo, não dá pra entender rigorosamente nada. Será, por acaso alguma invocação ou fórmula ritual asteca? Provavelmente não, no entanto, à bem da verdade, a tradução dessa frase, bramada como ameaça, pouco importa perto do que aconteceu em seguida, quando pipocou bala pra tudo que é lado. Foi isso o que ele conseguiu balbuciar em frente ao portão lateral do bar. A fala nervosa e confusa chamou a atenção de Marino e outros dois companheiros de time, que tomavam uma gelada e jogavam conversa fora após a partida, na própria Quadra. Ao atravessarem o velho portão de madeira foram recebidos a tiros. Um deles foi ferido de raspão na coxa esquerda e precisou de atendimento pra estancar o sangue e repor a pele arrancada pelo projétil. Já ele, o alvo principal do atentado, recebeu uma bala na barriga, que perfurou os rins, tornando necessário cirurgia de emergência para extração do corpo metálico intruso. Algumas balas ricochetearam, furando paredes, estilhaçando vidraças e ferindo outros dois pedestres que encontravam-se perto. Pra cada tiro disparado, conforme fontes testemunhais, gritava Hey! Hey!  Tava doidão de tequila. Bebeu duas garrafas sozinho naquele início de tarde conturbado.
     Enganam-se, no entanto, os que só conseguem enxergar tragédia e desolação nesse desentendimento quase fatal entre jovens. Com algum esforço é preciso, sem se abalar com mentiras da oposição, visualizarmos que nem tudo saiu totalmente errado. Os acertos precisam, sim, serem reconhecidos, mesmo que isso, á princípio, soe um tanto impopular. Cada caso, cada briga ou duelo, necessita ser analisada de forma individual, sem paixões ou opiniões tendenciosas. As grandes transformações impulsionadas pelos grandes líderes são ás vezes lentas, graduais. Um avanço faz-se perceptível se fizermos um paralelo com outros tempos:  A bebida que encheu e transbordou a taça do pé-de-cana, felizmente, pra suavizar o eco dos estouros em nossos ouvidos, era autêntica, da boa,  pois fora obtida por meio da destilação de mostos, preparada direta e originalmente do material extraído das cabeças de Agave da espécie tequilana weber variedade azul, cozida e submetida à fermentação alcoólica com leveduras não cultivadas, em conformidade com o Decreto 9.799 de 23 de maio de 2019, que sacramenta a preocupação do governo brasileiro à época,  com a qualidade do trago que nos entorpece a mente.

-- U país finalmente começa a entrá nus trilho. 



                                                                                                    Cesar