Que o Eunício gostava dum trago
era fato consumado e disso poucos duvidavam ou contestavam. A sua pele
enrugada, queimada de sol, os olhos vermelhos, as canelas finas, o tremor de
mãos aos finais de tarde, o hálito de cebola com peixe, tudo isso eram
indícios. Se o sujeito, afinal era ou não era, vamos ao fatos.
--
Mas olha lá... Aquele já vem torto, com us pé encharcado...
Na data de doze de agosto
de 2019, era uma segunda-feira, quem cruzou com ele na rua ou avistou-lhe de
longe, pela janela, teve o presságio sinistro de que a manguassa
foi grande. Dona Tânia viu a cena, pois mexia na cortina e passava
flanela nos vidros. Ela gritou isso pra filha Nívea, fazendo a jovem
interromper o café da tarde.
O Benito, da barbearia, tentou
puxar assunto quando o homem passou em frente ao salão, mas disse que estranhou
ele.
--Não
falou nada com nada, nem disse coisa com coisa.
A mesma impressão parece ter
tido o velho Binhalva, do banco da praça, quando enxergou o bebum. O aposentado
lembra como se fosse hoje e testemunhou isso mais tarde:
--
Naquele dia ele vinha bem calibrado e xispava fogo pelas venta...
Um de seus companheiros
ocasionais de boteco, o Ruivo, que do outro lado da calçada, sem coragem de
chamá-lo, viu ele, comentou em roda privada:
--
Tava Pra Lá de Bagdá.
Seus passos, acima da média
habitual, eram trôpegos e vacilantes. Ele cambaleava pela rua, decidido a
executar sabe-se lá o quê. Incontrolável rancor lhe acompanhava. Tinha raiva e
isso quem denunciavam eram os seus lábios trêmulos. O olhar era sinistro,
parado, como se com os olhos da mente enxergasse um implacável inimigo. Bebia,
literalmente falando, como um condenado. Isso enfatizo por que tenho em
mãos o Processo Administrativo 17—455923/18-DV: Y, que culminou na
suspensão, a contar de doze de julho de 2019, do seu direito de dirigir. Tinha
que entregar a CNH. Ele sabia, mas fez que nem era com ele.
O seu prontuário acumulava, a
época, dezenove pontos, um só pra suspender a habilitação . A recente autuação
sofrida durante blitz, no entanto, foi quem colocou temporariamente na
geladeira a sua permissão para guiar veículo. Muito esperto e astuto, se negou
a entregar espontaneamente, ao órgão competente, o documento.
--
Vô dá umas banda com a Lu... depois eu entrego...
E foi naquele clima, naquela
vibração, mamado, que ele abriu o portão da garagem tão logo chegou em casa. Com
extrema dificuldade, após experimentar quase vinte chaves diferentes, abriu o
cadeado do trinco de ferro superior e empurrou pra dentro, com força,
ambos os portões. Em zigue-zague, chegou à entrada do próprio carro, um Civic
Laranja, ano 2016. Embarcou nele e sem se dar ao trabalho de fechar
novamente o portão, saiu cantando pneu, rua afora. A sua coordenação motora era
lenta e os reflexos tardios. Fez manobras ousadas e ignorou praticamente todas
as regras de trânsito no longo percurso que fez até a quadra de Soccer. Tinha
pressa, tinha ganas de alguém. A resolução, ainda oculta, era inabalável e não
podia mais esperar.
A
honra de um homem,
raciocinava consigo mesmo enquanto engatava as marchas, é o que de mais precioso ele carrega por
toda a vida e aquilo que lhe é mais precioso ele não deve dividir com ninguém. Lamentavelmente, ele
não estava sentado no alpendre de casa ou no bar da boate, com tempo de sobra
pra pensar nos dissabores da vida. Tava com um volante entre as mãos, um acelerador
embaixo do pé direito e as atividades cerebrais lentas.
Em alta velocidade, ainda no
centro de Passo Fundo, esqueceu de fazer uma curva e não foi suficientemente
rápido pra frear. Atropelou três pessoas na calçada. Conforme testemunhas, a
tragédia só não atingiu maiores proporções porque um carro e duas motos
estacionadas na rua acabaram amortecendo o violento impacto de um Civic à cem
quilômetros por hora e desgovernado. Viu pessoas feridas, deitadas no chão, mas
preferiu simplesmente dar uma ré e sair de cena. Tinha um objetivo já definido
naquela tarde. Seguiu na sua ébria caçada em defesa da honra.
********************************
Mas Eunício, perdoem-me a
intromissão, teve advertências e insinuações de sobra pra desconfiar de algo
que acabou manchando, de fato, a sua honra de macho. A Luciana, com aquele
celular dela, andava bem estranha e já fazia tempo. Não desgrudava os olhos da
tela, ria sozinha seguidas vezes e parava de digitar na tela toda vez que ele
chegava. Em duas oportunidades o rapaz deu a impressão de ter percebido no ar
algo estranho. Primeiro foi no carro, era noite e esperavam a afilhada na porta
da faculdade. Ele ficou em dúvida, pois despertou de um cochilo e viu ela, ao
lado seu suspirando: AAAi... Que
cara lôku... Não faaaz...
Quando viu que o marido tava acordado, desconversou rápido e baixou do
rosto o Smartphone
Já da outra vez foi em casa, na
cozinha. Chegou de surpresa na peça, por trás, querendo fungar o cangote da fêmea,
trazendo-lhe, no entanto, grande sobressalto. Recomposta do susto, novamente
Luciana agiu sem demora. Ocultou o que estava na sua tela, jogou o aparelho na
bolsa e com naturalidade, daquele jeito que só ela sabia fazer, apalpou a sua
virilha direita.
Coincidências,
bobas desconfianças e impressões sem fundamentos. Assim ela respondeu quando percebeu nele,
pela primeira vez na vida, desconfianças quanto a sua fidelidade. A
justificativa foi o suficiente pra ele deixar tudo como estava e seguir no
balanço da correnteza. Amava-a de paixão. Pra
quê desconfiá da nega veia?
Certo camarada de trabalho,
quando comentou sobre a Lú entre parceiros de bilhar disse que o bichinho anda muito solto e que o cara ta dando sopa pro azar. O pai, que ele ouvia
de vez em quando, já tinha tentado abrir-lhe os olhos do entendimento:
--
Essa tua criança, tenho que te dizê, acredite tu ou não, anda fazendo arte...
***************************
Ela
sempre foi gente boa, dedicada... O que virô a cabeça dela foi as
companhia, disse o corn... desculpem-me, Eunício, quando
finalmente caiu-lhe a ficha da traição. A propósito, já que quase toquei no
assunto, necessário se faz ressalva. Em oposição ao que muitos devem já
desconfiarem, o rapaz não era corno. Era um corninho se quisermos, sem
exagero, fazer justiça aos fatos. Apesar dos trinta e seis anos, media apenas
1,59. Trabalhador, diga-se de passagem, mas embriagado pelas carícias de uma
mulher mais nova, bonita e carinhosa. Era bobo por ela. Orgulhava-se de andar
pra cima e pra baixo com uma china
tão gostosa. O que lhe transformou, pode-se dizer, repentinamente, num
boi brabo, iracundo, foi aquela página do face aberta, que ela esqueceu quando
lhe deu dor de barriga, no meio daquele carreteiro com maionese, no apartamento
do Rick. Na rede social, em conversa privada na ferramenta Messenger, a sua Pequena contava os
segundos pra se trancar no motel com Marino, o mesmo cara que havia sido
aprovado em seu lugar, num teste pra guitarrista da banda Nitroglicerina, no
final da década de noventa, na cidade gaúcha. Não se davam bem, eram desafetos,
competiam em tudo.
--
Puxador de fumo duma figa... Vô ti estorá us corno... Dêxa que o que é teu ta
guardado...
Doze de agosto de dois mil e
dezenove foi a data criteriosamente marcada para o acerto de contas. O boi
sabia que naquela tarde o Gerente de Qualidade da empresa MouraCruz, de
cigarros, vinha jogar soccer com parcerias, na Quadra do Bigode, distante
cerca de quatro quilômetros do centro, em zona residencial dos fumicultores
daquela região. Ele, que outrora fora manso, estava agora armado e perigoso.
Tinha porte e registro para tal e, em defesa da honra, lançou-se como vespa de
quem uma paulada põe ao chão o vespeiro, á fim de vingança. Não perderia de
novo, pro mesmo oponente de outras tantas batalhas. Era só dá uns tiro nele e saí fora.
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--
Ezuc Bika... Tuzûki dixêu... Dixeu!
Concordo, não dá pra entender
rigorosamente nada. Será, por acaso alguma invocação ou fórmula ritual asteca?
Provavelmente não, no entanto, à bem da verdade, a tradução dessa frase,
bramada como ameaça, pouco importa perto do que aconteceu em seguida, quando
pipocou bala pra tudo que é lado. Foi isso o que ele conseguiu balbuciar em
frente ao portão lateral do bar. A fala nervosa e confusa chamou a atenção de
Marino e outros dois companheiros de time, que tomavam uma gelada e jogavam
conversa fora após a partida, na própria Quadra. Ao atravessarem o velho portão
de madeira foram recebidos a tiros. Um deles foi ferido de raspão na coxa
esquerda e precisou de atendimento pra estancar o sangue e repor a pele
arrancada pelo projétil. Já ele, o alvo principal do atentado, recebeu uma bala
na barriga, que perfurou os rins, tornando necessário cirurgia de emergência
para extração do corpo metálico intruso. Algumas balas ricochetearam, furando
paredes, estilhaçando vidraças e ferindo outros dois pedestres que
encontravam-se perto. Pra cada tiro disparado, conforme fontes testemunhais,
gritava Hey! Hey! Tava doidão de
tequila. Bebeu duas garrafas sozinho naquele início de tarde conturbado.
Enganam-se, no entanto, os que
só conseguem enxergar tragédia e desolação nesse desentendimento quase fatal
entre jovens. Com algum esforço é preciso, sem se abalar com mentiras da
oposição, visualizarmos que nem tudo saiu totalmente errado. Os acertos
precisam, sim, serem reconhecidos, mesmo que isso, á princípio, soe um tanto
impopular. Cada caso, cada briga ou duelo, necessita ser analisada de forma
individual, sem paixões ou opiniões tendenciosas. As grandes transformações
impulsionadas pelos grandes líderes são ás vezes lentas, graduais. Um avanço
faz-se perceptível se fizermos um paralelo com outros tempos: A bebida
que encheu e transbordou a taça do pé-de-cana, felizmente, pra suavizar o eco
dos estouros em nossos ouvidos, era autêntica, da boa, pois fora obtida por meio da
destilação de mostos, preparada direta e originalmente do material extraído das cabeças
de Agave da espécie tequilana weber variedade azul, cozida e submetida à
fermentação alcoólica com leveduras não cultivadas, em conformidade com
o Decreto 9.799 de 23 de maio de 2019, que sacramenta a preocupação do governo
brasileiro à época, com a qualidade do trago que nos entorpece a mente.
--
U país finalmente começa a entrá nus trilho.
Cesar
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