O ano começa com novidades por aqui. Apresento-lhes, em primeira mão, um dos novos contos a serem incluídos em meu próximo livro, que, aliás,demorará um pouco pra sair. Aos meus fãs e críticos ferrenhos, aqui vai, pois, uma incontestável prova de que continuo na ativa, produzindo um pouco menos, diga-se a verdade.
Faço, no entanto, uma séria advertência aos leitores que aventurarem-se nos próximos parágrafos: Não leiam durante as refeições, por favor.
O verme
Existem
diversos tipos de comportamentos, que correspondem às diferentes fases de
crescimento e desenvolvimento corporal humano, estando, cada uma delas,
associadas a idade do indivíduo, ao seu nível de experiência e de maturidade.
Na infância, a propósito disso, estamos sujeitos, inevitavelmente, a uma série
de enfermidades próprias do nosso organismo ainda em formação. Entre estas,
encontramos a Oxiuríase, doença causada por um verme cientificamente chamado Enterobus
vermicularis, bichinho quatro ou cinco
vezes menor do que uma minhoca, que provoca incômoda coceira na região retal. A
título de curiosidade apenas, a tal coceira ocorre devido a ação da fêmea, que utiliza as paredes do ânus para depositar
os seus ovos.
Em condições normais, no entanto,
quando o ciclo evolutivo do bicho homem segue o seu curso esperado, chegamos à
idade adulta livres de tais inconvenientes. Principalmente quando adotamos
saudáveis hábitos de alimentação e higiene corporal, essa e outras enfermidades
detestáveis batem na nossa porta mas não entram.
Encontramos certos indivíduos,
contudo, que atraem pra si, através do que comem, falam e pensam, patologias
que nem sempre estão aptos à enfrentarem. Comedores insaciáveis de carne, que
defecam sem lavarem as mãos, pessoas que com os dedos retiram secreções do
nariz e em seguida seguram crianças no colo, são, sem sombra de dúvida, por si
só, nojentas. Infelizmente, para gregos e troianos, chimangos e maragatos,
colorados e gremistas, homenzinhos assim existem aos milhares e um deles, em
particular, merece o foco investigativo desse breve relato. Por mais que
duvidem ou classifiquem a minha narrativa como mera e barata literatura
fantástica, o conto aqui apresentado apoia-se em relatos fidedignos de um amigo
íntimo da própria vítima.
Ítalo era um clássico e socialmente
respeitado pai de família, com dois filhos legítimos e um fora do casamento,
segredo este que nem a sua própria "nega véia" (esposa) sabia. Aliás,
não foram poucas as coisas que a santa e submissa Inácia ignorara durante os
vinte anos em que coabitara com o ex vigilante da empresa TRUDER, que
prosperara na vida após assumir cargo no sindicato da categoria. As ambições
políticas do homem, com efeito, eram grandes. O partido, já há algum tempo
vinha lhe cobrando uma candidatura à Câmara Municipal de Araçá.
O tal sindicalista personificava o
protótipo do cara que se deu bem na vida, cheio de segredos, vícios, taras e
cacuetes. Entre esses últimos, destacava-se um tremor e contração da face
direita, que costumava acontecer inesperadamente, sempre que ele permanecia um
longo tempo em silêncio. Talvez fosse algum sinal de nervosismo ou impaciência
em relação a algo, ninguém nunca soube.
Era corpulento, mas não musculoso. Os
seu colegas mais achegados, com especial carinho, batizaram-no de Panela de
Banha, visto a grande quantidade de massa gordurosa acumulada ao longo do seu
tronco, membros e pescoço. Panela de Banha, apesar disso, era um garanhão
atrevido e galanteador com as mulheres que desejava, manifestando especial
predileção pelas mais novinhas. Algumas delas, em concordância, reclamaram
posteriormente do seu mau hálito, chulé e odor acre das axilas, que chegavam a
estontear raparigas em quartos excessivamente fechados de motéis. E já que o
assunto descambou pra falta de pudor e asseio corporal, cumpre-me acrescentar
que um segundo alcunha fora criado em sua homenagem, este, inspirado num outro
comportamento seu: Peidão. Faça-se justiça, Ítalo só soltava gazes na presença
de homens, em sua maioria colegas de serviço. Segundo relatos, costumava
contorcer-se teatralmente toda vez que eliminava os seus mais barulhentos e
pútridos peidos, que deixavam irrespiráveis até mesmo ambientes abertos, ao ar
livre. Apenas para rapidamente mudarmos de foco, numa última alegoria
ilustrativa, o cheiro dos seus puns aproximava-se do odor próprio ao feijão
azedo misturado à ovo podre.
Usava pesados óculos, daqueles fundo
de garrafa, que ficavam totalmente embaçados e gordurentos quando ele,
ofegante, discutia com alguém ou, por algum outro motivo, ficava tenso. Trazia
cabelo e barba impecavelmente aparados, orgulhando-se de não ter "jeito de
vagabundo maconheiro." Em algumas ocasiões, quando lançava-se a paqueras
amorosas extraconjugais, vestia-se com finas camisetas de grife e tomava banhos
de desodorante para tapear a sua natural catinga, que parecia embrenhada à pele.
Ítalo possuía visões curiosas de
vida. Não era muito adepto da caridade e quando a praticava, fazia-o com
excessivo alarde, para convencer os Araçazenzes, possíveis eleitores, o quanto
era generoso. Nos jornalecos da cidade, abundavam fotos dele a entregar
sacolões em creches, afagando mãos de idosos no asilo e até mesmo vestido de
papai noel, dando presentes na tradicional festa de final de ano da Escola
Estadual de Ensino Fundamental Otomar Vivian, na zona rural do município. Já em
casa, por outro lado, sempre que algum produto manufaturado expirava o prazo de
validade, ou alguma comida estragava na geladeira, ele mandava, sem exceção,
dar pros "negrinhos dos fundo". Os tais pretinhos em questão, moravam
e viviam em condições precárias junto aos pais, ambos papeleiros, dentro de um
pequeno barraco onde amontoavam-se seis irmãos mais o casal. Certa vez, de
acordo com informações do amigo Celso, uma panelada de linguiça ardida e arroz
encaruchado, gentilmente doado à família afrodescendente, fez o pequenino
Estephan, de apenas três aninhos, parar na emergência pediátrica do hospital
local, esvaindo-se em vômitos e diarreia crônica, desidratado pela excessiva
perda de líquido em seu jovem e magro corpo. O gurizinho ficou em estado de
observação, por dois dias, na U.T.I. e por muito pouco não matou a sua mães de
desgosto e sentimentos de culpa.
O grau de apreço e consideração que
o tal vigilante sentia pelos animais tornou-se indiscutivelmente evidente no
episódio do cachorro sarnento da família. Skip, um cusco de dois anos, presente
da cumadre Chica à sua filha menor, a Biba, contraiu sarna e começou a agonizar
de tanta coceira, sangramento e perda de pêlo. Um dia, em conversa privada com
a esposa, prometeu uma solução definitiva para o drama que começava a
entristecer e causar constrangimento à família.
--
Dêxa qui eu vô dá um sumiço nêssi cachorro... Já té sei onde vô largá êli...
--
Mas negro... paréci qui passá óleo queimado no pêlo do bichinho resolve....
Dêxa êli novinho em folha...
--
Qui óleo queimado o quê... Dêxa cumigo.
Na manhã seguinte, acordou-se bem
mais cedo que o de costume, principalmente pra não despertar desconfianças na
pequena Biba. Calçou as botas de couro cru, jogou água no rosto, mordiscou um
pedaço de mursilha preta e um naco de torresmo que estavam em tigelas de louça
na mesa, sorveu apenas dois goles de café preto e foi buscar, no galpão de
ferramentas, uma coleira com corrente. Em seguida, amigavelmente, assoviou, á
intervalos curtos e sincronizados, para Skip, que mesmo adoentado demonstrou
surpreendente alegria e gratidão ao ser solicitado para um passeio. O cachorrinho
estava acostumado a caminhar pelas redondezas com o dono, que sempre tentara
desempenhar frente à filha um papel de bom pai, que brinca e diverte-se como
criança. Foi por isso, provavelmente, que o cusco nem sequer desconfiou que
naquele instante havia algo de diferente nas intenções daquele cara,
entregando-se inocentemente à coleira, abanando freneticamente o rabinho já
pelado e castigado pela sarna. Andaram uma, duas, três, quatro, cinco, seis
quadras e chegaram à um matagal próximo à um arroio que fazia divisa com o
Sítio do Almeida. O animalzinho, ofegante pela longa distância percorrida, em
condições tão debilitadas de saúde, sentou-se ao pé de um arbusto, dando
oportunidade para Ítalo esconder-se sem ser notado, atrás de um cinamomo. Skip,
alheio ao eminente perigo de abandono, passou a coçar-se, já quase sem forças
para tal, oferecendo a definitiva oportunidade de fuga em disparada ao homem,
que retornou à passos rápidos para casa. Olhava de tempos em tempos pra trás,
certificando-se que não estava, de fato, sendo seguido. Fazia um rigoroso frio
naquela manhã do inverno gaúcho e o bichinho enrolou o corpo como pôde, para
esperar relativamente aquecido o destino não muito promissor que lhe aguardava
nas próximas horas. Faltava-lhe energia para qualquer tentativa de locomoção.
Nunca mais foi visto por alguém da família ou vizinhança.
(continua )
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