A inveja possui ramificações e manifesta-se conforme a
ocasião ou atratividade do objeto em questão. A linha que separa esse
sentimento da admiração sincera, desprovida de malícia, é tênue como um fio de cabelo ou o
caráter de um político. Tão frágil e imperceptível é, que todos nós,
indubitavelmente, acabamos cobiçando em menor ou maior grau, aquilo que não nos
pertence. O pior é que, em grande parte das vezes, nem nos damos conta
disso, o que nos deixa inteiramente vulneráveis à esse, que configura-se num
dos sete condenáveis pecados capitais. Ora, jamais teremos a iniciativa de
remediar uma enfermidade que ainda nem percebemos. Necessitamos, antes de mais
nada, enxergá-la, detectá-la em nós mesmos para que daí nasça a vontade de
corrigirmos o que está errado e essa percepção é difícil para alguns.
O olho
grande é implacável, existe, acreditemos ou não em energias psíquicas ou
fenômenos paranormais . Fiquem tranquilos leitores ateus, pois o pano de fundo
dessa narrativa não consiste em enumerar técnicas de benzeduras ou sugerir
talismãs contra mau-olhado, muito embora fosse louvável essa preocupação. A
história, apenas ela, será a minha grande aliada e veículo de expressão nos
próximos parágrafos, abduzindo-nos a uma remota época onde as pessoas andavam
de bonde e charrete, escreviam com caneta tinteiro e comunicavam-se tão somente
através de cartas quando queriam trocar confidências entre si. A memória do
fato, preservada em diário e correspondência pessoal de uma senhorita que
desembarcara de Portugal pra cá no século XVIII, provocará, entre algumas
polêmicas, um questionamento sobre até onde o consumismo pode nos enterrar à
lama escura e pegajosa da inveja.
O
Brasil vivia um profundo período de transição e a monarquia apresentava já
visíveis sintomas de cansaço. As ideias republicanas, que sugeriam ao país um
novo regime de governo, começavam a ganharem força. Inspirados pelos vizinhos
argentinos e uruguaios, nosso aliados na Guerra do Paraguai, os militares
contavam nos dedos as horas para expulsarem daqui, de mala e cuia, o imperador
D.Pedro II e seus convivas mais próximos. Sonhavam implantar nesta ex colônia
portuguesa uma República Federativa, onde o presidente governasse, o
legislativo elaborasse leis e o judiciário zelasse pelo cumprimento destas. A
recente abolição da escravatura, assinada há pouco mais de seis anos, em meio a
parcial entusiasmo da sociedade, não passava de apenas teoria e ainda não
trouxera efetiva liberdade ao negro, que sem concretas oportunidades de
subsistência continuou a desempenhar as mesmas tarefas braçais de outrora, em
troca de um prato de comida.
O ano
era 1894 e a fonte de memórias extraída de um livro de anotações encontrado no
baú de Dona Lourdes Epifânia de Coimbra Salazar Fernão, mulher de um fidalgo
português radicado no país desde a segunda metade do século dezoito. Naquela
época, tudo que relacionava-se ao luxo, ao glamour, a beleza, vinha, invariavelmente, da Europa e o burburinho que
agitou aquele vilarejo carioca estava, de fato,
relacionado a algo contrabandeado do primeiro mundo.
Todos nós aqui dos lados de cá do além mar, inclusive eu,
estamos a querer a boceta de Antoninha.
Era
isso, acreditem, o que lia-se na página 34, lá pelas últimas linhas, sem
emendas, rasuras ou metáforas. O diário, á partir desse ponto, encontra-se
quase que exclusivamente dedicado a esse tema aparentemente fútil, mas que
utilizarei de parâmetro histórico para a inveja. Se acreditarmos que é possível
aprender com os erros cometidos no passado, sejam eles nossos ou não, sigamos
pois, juntos, por mais alguns parágrafos, distância suficiente para que eu pormenorize, com base nos já
referidos escritos, o quê, de fato, aguçava tanto desejo por um objeto tão efêmero como aquele.
Antoninha tinha, mas não dava nem emprestava, uma *boceta que
literalmente valia ouro. Ela conseguia a incrível façanha, para aquela época,
de despertar a cobiça de homens e mulheres, que sonhavam dia e noite com algo
praticamente inviável. Eusébio já tentara e dera com os burros n'água. Floriano
aproximara-se mas a moça percebera as suas intenções ocultas e despachou-lhe
porta à fora no segundo dia de namoro. Setembrino chegou a tocá-la, mas foi
repelido como a um gatuno vulgar, levando golpes de sombrinha que incharam-lhe
o rosto esquerdo. Entre as mulheres, a que mais chegou perto foi Antonieta, que
fingiu-se de amiga para descobrir o melhor momento e local para agir. Acabou,
coitada, sendo traída pela própria ansiedade e no dia de dar o bote certeiro
atrapalhou-se toda, sendo desmascarada na hora H.
Outra
que merece menção, mesmo não tendo aproximado-se o bastante para vangloriar-se,
foi Joaquina, a primeira a descobrir o passado e o real valor de mercado
daquela, digamos, caixinha oval. Graças à ela, uma especialista no assunto, a
notícia espalhou-se rápido, primeiro entre as donzelas burguesas, estendendo-se
às raparigas ordinárias do povoado e por último aos rapazes enamorados de
jovens damas, desejosos de impressionarem as suas amadas. Entre estes, para não
chatear a paciência do leitor com considerações estatísticas, aludo aqui, tão
somente, ao afortunado Estevão, um aristocrata recém doutorado em Direito pela
renomada Universidade de Oxford na Inglaterra. O tal sujeito, que retornara à
casa paterna após duas décadas de formação na Europa, em meados de 1891, ano em
que a primeira constituição republicana é promulgada e Machado de Assis lança às prateleiras "Quincas Borba",
queria a todo custo enamorar-se de certa fidalguinha. A moça, não restava
dúvida, era um mimo de encher os olhos, no entanto, suas ambições tornavam-lhe
uma cara aquisição. Rita queria casar, mas casar bem, com o melhor partido que
pudesse financiar os seus sonhos de morar em Veneza, na Itália e frequentar os
badalados cafés de Milão. Ficava lisonjeada apenas com presentes caros e
peculiares, como a tal pequena circunferência em questão. É lógico, tão logo o
mancebo pensou em pedir a mão dela em casamento, passou a imaginar meios de
apropriar-se, indevidamente, do desejado utensílio feminino de Antoninha. Não
foi bem sucedido, apesar da queda que a moçoila sentia por ele, um promissor
advogado em início de carreira.
Sensível a confusão que à essas alturas, provavelmente, estará
embaralhando a mente do leitor, em meio a tantas frustradas conquistas,
agravadas com a recente insinuação de um
triângulo amoroso, vamos aos fatos, nus e crus, pormenorizados conforme
informações da linguaruda Joaquina:
Reza a
lenda, que D. Maria I, mãe de D. João VI, 1º imperador do Brasil, não batia
muito bem das ideias. Era tão piradinha que colocou numa caixinha oval que tinha para guardar jóias, uma pomba
forjada em ouro, encravada de diamantes, tratando a milionária esculturazinha
como se tivesse parido o pequeno pássaro.
Agasalhava-o no colo, beijava-o e apalpava-o com o bico como se fosse, de fato,
uma afetuosa mamãe pomba. A boceta, conforme a sua peculiar linha de
raciocínio, era o ninho que servia de descanso às longas revoadas da pombinha,
peça fundida e moldada numa casa de fundição mineira, no auge do ciclo do ouro,
na segunda metade do século XVII.
Um
dia, em Portugal, contrariada com uma suposta malcriação da ave de estimação,
jogou a caixinha amarela arredondada fora, pela janela, em plena rua, com a
pequena fortuna dentro. Posteriormente, com a transferência da família real
portuguesa para o nosso país, em janeiro de 1808, um dos membro da comitiva
desembarcou no Rio de Janeiro com o objeto oculto entre seus pertences,
ofertando-o anos mais tarde à sua filha, Antonia Margarida de Queiroz Andrade,
a Antoninha, nossa protagonista central.
Findo
o relato, feitas as devidas reconstituições e cálculos, é possível, ao menos
parcialmente, aceitarmos que um pequeno receptáculo feito para guardar joias,
seja disputado à unhas e dentes por seres humanos. Com efeito, a íntima ligação
com a família real, aliada ao grande valor de mercado, tornavam aquele
acessório deslumbrante aos olhos de qualquer um . Ainda assim, mesmo tolerando
que a carne seja fraca e o santo ás vezes de barro, não consigo silenciar uma
impertinente indagação que me faz divagar e projetar-me à um futuro próximo:
O que um homem
será ainda capaz de fazer por causa de uma boceta?
Cesar
* boceta- caixinha redonda, oval ou oblonga, feita de
materiais
diversos e usada para guardar pequenos objetos.
(Minidicionário Luft)
* b
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