Como
falar de um assunto grave e controverso no Brasil iracundo dos dias de hoje?
Como falar da herança do escravismo brasileiro no nosso cotidiano?
Para fundamentar a pertinência da
discussão, cabe lembrar que a maioria da população brasileira, ou seja, 54% dos
habitantes em 2014, se autoidentifica como afrodescendente. A origem desse
panorama cultural tem suas raízes no povoamento do país. Em cada 100 indivíduos
desembarcados entre 1550 e 1850 no Brasil, 86 eram africanos escravizados e só
catorze eram cidadãos portugueses. As estatísticas podem variar com novas
pesquisas, mas é improvável que a proporção se altere. No século XX, imigrantes
de outras paragens aumentaram a categoria dos brancos e, mais geralmente, dos
habitantes não negros. Houve, contudo, desde 1960, uma queda geral da taxa de
fecundidade. Mais acentuado entre as mulheres brancas do que entre as mulheres
mulatas e negras, esse fenômeno acabou gerando a proeminência populacional afrodescendente.
Algumas constatações podem ser tiradas dessa evolução.
Foi essencialmente o trabalho
africano e afro-brasileiro que sustentou os chamados ciclos econômicos –
açúcar, ouro e café – e costurou as capitanias e depois as províncias num corpo
nacional. Por esse motivo, faz todo o sentido incluir o estudo da história
africana e afro-brasileira no ensino médio. Em seguida, é preciso rever o
discurso sobra a nacionalidade. Não se pode dizer apenas que “O Brasil é obra
de imigrantes, homens e mulheres de todos os continentes”, como afirmou o então
presidente Temer no seu discurso de setembro de 2016 na Organização das Nações
Unidas. O que deve ser dito na ONU e alhures, é o seguinte: “O Brasil é obra de
milhões de deportados africanos, índios e outros milhões de imigrantes pobres,
que criaram uma nação, um Estado independente e multicultural”.
Os afrodescendentes são uma maioria
demográfica, social e cultural. Mas são uma minoria política. Dessa
desigualdade nasce a força que transforma suas reivindicações num vetor da
consolidação democrática: o país avança quando as demandas da maioria social
avançam. Na Constituinte de 1946, o escritor e deputado Jorge Amado, ligado aos
terreiros de candomblé perseguidos pela polícia do Estado Novo, propôs a lei de
liberdade de culto que guardou seu nome. Anexada na forma do artigo 5º à
Constituição de 1988, essa lei garante ampla liberdade religiosa no quadro do
Estado laico. Os marginais que destroem terreiros de candomblé e de umbanda, em
nome de uma interpretação alucinada da Bíblia, deviam ser informados sobre esse
capítulo da história cultural. Foi a afirmação da liberdade dos cultos
afro-brasileiros que pôs um termo à intolerância religiosa no país.
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