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quarta-feira, 1 de janeiro de 2020

Racismo e reparação histórica


        

          Como falar de um assunto grave e controverso no Brasil iracundo dos dias de hoje? Como falar da herança do escravismo brasileiro no nosso cotidiano?
          Para fundamentar a pertinência da discussão, cabe lembrar que a maioria da população brasileira, ou seja, 54% dos habitantes em 2014, se autoidentifica como afrodescendente. A origem desse panorama cultural tem suas raízes no povoamento do país. Em cada 100 indivíduos desembarcados entre 1550 e 1850 no Brasil, 86 eram africanos escravizados e só catorze eram cidadãos portugueses. As estatísticas podem variar com novas pesquisas, mas é improvável que a proporção se altere. No século XX, imigrantes de outras paragens aumentaram a categoria dos brancos e, mais geralmente, dos habitantes não negros. Houve, contudo, desde 1960, uma queda geral da taxa de fecundidade. Mais acentuado entre as mulheres brancas do que entre as mulheres mulatas e negras, esse fenômeno acabou gerando a proeminência populacional afrodescendente. Algumas constatações podem ser tiradas dessa evolução.
          Foi essencialmente o trabalho africano e afro-brasileiro que sustentou os chamados ciclos econômicos – açúcar, ouro e café – e costurou as capitanias e depois as províncias num corpo nacional. Por esse motivo, faz todo o sentido incluir o estudo da história africana e afro-brasileira no ensino médio. Em seguida, é preciso rever o discurso sobra a nacionalidade. Não se pode dizer apenas que “O Brasil é obra de imigrantes, homens e mulheres de todos os continentes”, como afirmou o então presidente Temer no seu discurso de setembro de 2016 na Organização das Nações Unidas. O que deve ser dito na ONU e alhures, é o seguinte: “O Brasil é obra de milhões de deportados africanos, índios e outros milhões de imigrantes pobres, que criaram uma nação, um Estado independente e multicultural”.
          Os afrodescendentes são uma maioria demográfica, social e cultural. Mas são uma minoria política. Dessa desigualdade nasce a força que transforma suas reivindicações num vetor da consolidação democrática: o país avança quando as demandas da maioria social avançam. Na Constituinte de 1946, o escritor e deputado Jorge Amado, ligado aos terreiros de candomblé perseguidos pela polícia do Estado Novo, propôs a lei de liberdade de culto que guardou seu nome. Anexada na forma do artigo 5º à Constituição de 1988, essa lei garante ampla liberdade religiosa no quadro do Estado laico. Os marginais que destroem terreiros de candomblé e de umbanda, em nome de uma interpretação alucinada da Bíblia, deviam ser informados sobre esse capítulo da história cultural. Foi a afirmação da liberdade dos cultos afro-brasileiros que pôs um termo à intolerância religiosa no país.



Luiz Felipe de Alencastro- Professor da Escola de Economia de São Paulo e da Fundação Getulio Vargas (novembro 2017)

         
         

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