terça-feira, 23 de fevereiro de 2021
Aglomerados na paixão
domingo, 7 de fevereiro de 2021
Diário Forense Parte II
Na manhã seguinte, chegaram os banheiros químicos e containers para banhos. Os primeiros, tinham o formato de pequenas cabines azuis e assumiram aspecto e odor repugnantes com o transcurso do Fórum. Não contentando-se com os vasos sanitários, muitos Carlo Giullianenses optaram em tingirem o espaço interno das latrinas com os seus aquosos dejetos estomacais. Já os containers, permaneceram relativamente limpos. Longas filas passaram a formarem-se em horários específicos do dia (principalmente manhãs e finais de tarde). Nos chuveiros, desconfiança e cabreragem dominavam grande parte dos acampados. Todo sabonete que caía ao chão, lá permanecia. Ninguém perdia de vista as suas roupas e toalhas, dependuradas no encanamento do recinto.
Apesar dos transtornos, não havia desculpa convincente que justificasse a esquiva de alguns em banharem-se.
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Genuíno havia imaginado uma linda utopia. Nela, encontraria no Fórum, parceiros para formar a sua banda estilo rock rural. Se tudo corresse bem, pretendia inclusive, ficar de vez na capital, colocando Arroio das Rãs e, principalmente, a tia Corina pra trás.
Corina, sintetizava tudo aquilo que as pessoas tímidas detestam. Adorava fazer gracejos ás custas das manias alheias. Para as moças recatadas, indagava:
- I tu quandu vais arrumá hômi?
Aos moços desempregados, cobrava:
- Mas tu tais mesmo procurando serviço?
Era uma mulher autoritária e de difícil convivência. Tinha-se por esperta, mas julgava tudo segundo a malícia de seus próprios pensamentos. Vivia em companhia de sua heróica filha, que apesar de tudo, a amava muito. Dizia-se quadrada e defensora do “tempo bom”, onde tudo era mais sadio.
Por duas vezes, tentara montar negócio próprio. Primeiro foi o Pet Shop. Porque o troço tem tudo pra dá certo e coisa e tal. Depois apareceu com a idèia do bazar, dizendo que numa localização daquelas, próximo de uma escola, não tinha como dar errado. Não foi bem sucedida, infelizmente, em nenhuma das tentativas, atolando-se em dívidas que o marido, Geninho, teve que pagar.
Corroída pela decepção e possuída pela inveja, excitava-se ao desmantelar sonhos juvenis;
- Há, há, há, essa é boa... Um songa-monga dessis virá artista im Portu Alégri... Olha, eu vô ti sê bem sincera... tu já tem idádi pra trabalhá. Tens qui ti preocupá im arrumá serviço. Vai nas loja ou nas fábrica qui tu consegui rapidinho... A mim ninguém passa pra trais... Quéis ti livrá du batênti? Pareci qui tão botandu genti lá nu açogui du Ivã... Vai lá guri! Eu sempri digo isso pra minha guria: Tem qui si sujeitá a qualquer coisa qui pague...
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Os três jovens, oriundos do Canadá, amontoados numa barraca com capacidade para duas pessoas (armada aos fundos da Praça de Alimentação do evento), carregavam em suas mochilas o romantismo dos antigos festivais de música jovem. Haviam sido seduzidos pelos folders e mensagens de divulgação, principalmente o comercial de meio minuto, embalado pela lendária “Give Peace A Chance”, dos Beatles. Aquele, era o primeiro Fórum Social após o ataque às Torres Gêmeas, em Nova York e havia forte apelo pacifista no ar.
Um deles, Parker, antes de atravessar o continente, fora bastante enfático ao despedir-se do pai, na rodoviária de Vancouver. Intencionava juntar-se a alguma espécie de comunidade a eclodir dentro da “Carllo”.
Segundo as suas projeções e anseios, tudo poderia acontecer naqueles cinco dias de paz e amor, principalmente, se as mesquinharias partidárias fossem realmente, conforme os apelos de divulgação, deixadas de lado.
O ânimo de Parker e seus dois conterrâneos esfriou. preleminarmente, , na segunda noite do evento, quando ao retornarem da Mostra Internacional de Música, depararam-se com o que restara da barraca vermelha e branca deles.
Felizmente, a queixa do furto foi devidamente registrada para que as medidas cabíveis fossem tomadas.
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A caminho da rodoviária, para iniciar a baldeação de retorno à América do Norte, Parker sentiu a indisposição estomacal mais violenta de seus 10 últimos anos. Comera na véspera, um sanduíche de pedaços fatiados do corpo de um porco, regado com um copo de batida de amendoim e cachaça. Seu aparelho digestivo acabou não conseguindo transformar tal composto alimentar em energia, entrando em colapso.
No banheiro de um casarão, sito à Rua André Poente, 318, escoltado por seus patrícios, conseguiu, finalmente, eliminar resíduos orgânicos.
Enquanto espremia-se no vaso sanitário, os outros dois foram convidados a assistirem um debate na sala ao lado, onde escritores, intelectuais e educadores discutiam o papel do livro no outro mundo possível, proposto no Fórum. Ao sentarem-se na platéia, escutaram apenas os trechos finais do emocionado pronunciamento de uma educadora guatemalense, que dizia-se decepcionada com os rumos da educação em seu país. No fundo da sala, uma professora de Literatura Brasileira, tentava quebrar a concentração dela e auto-afirmar-se, interrompendo aquela argumentação de sotaque latino com o sarcasmo todo peculiar das víboras;
- Fala mais alto!
Após alguns minutos trancado na privada, Parker gritou pedindo papel, sendo acudido, prontamente, por seus colegas. Esses, acabaram saindo do debate sem entenderem absolutamente nada. Serviram o defecante com folhas da revista literária “Vox”.
Tão logo o canadense puxou a descarga e abriu a porta, alguém da mesa de debatedores levantou-se abruptamente, para ocupar a latrina vaga. Era Moacyr, o consagrado escritor, e em mãos carregava o seu exemplar da Vox.
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Se por um lado, os companheiros da República do Canadá voltaram sem o s seus principais pertences pessoais, por outro, encheram os compartimentos vazios das suas mochilas com as camisinhas, abundantemente distribuídas pelo GAPA (Grupo de Ação e Prevenção á AIDS).
Revoltado e profundamente desestabilizado com a maré braba da terra pampeana, literalmente falando, não comera ninguém, Parker comportou-se de maneira pouco convencional durante todo o trajeto até São Paulo, a bordo de um ônibus semi-leito, da empresa Itapemirim. Encheu os seus preservativos com água do banheiro e alvejou quatro passageiros escolhidos aleatoriamente, por seu insano livre arbítrio. Quando repreendido pelos colegas e demais passageiros perplexos, limitou-se a responder serenamente:
- Gui.
A partir de então, todas as suas afirmações, exclamações e questionamentos, restringiram-se à essa expressão, fruto do choque traumático mais avassalador de seus últimos 20 anos vividos.
Em Vancouver, sem certificar-se ainda de tal distúrbio neurolinguístico, seu pai, tão logo avistou-lhe no alpendre de acesso à casa, saudou-lhe com aquela costumeira espontaneidade:
- How are you my boy?
- … Gui? Gui!
- The World Social Forum… was beautiful?
Nesse instante. Parker, permaneceu pensativo por cerca de 30 segundos. Em seguida, ainda com um olhar vago em direção ao nada, balançando negativamente a cabeça, sentenciou, como se uma grande dúvida permeasse ainda em seus pensamentos:
- Gui...
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Ao avistar a infinidade de computadores instalados no galpão de comunicação da Carlo Giulliano, Tiago encheu-se subitamente de esperanças. Necessitava, urgentemente, concluir a digitação do seu 1º livro de contos e aquela parecia ser a oportunidade filantrópica que faltava-lhe. O trabalho não levaria mais do que um dia, por isso, convicto da viabilidade de sua idéia, procurou o voluntário responsável por aquele setor informatizado do acampamento para expor a sua dificuldade. Queria tão somente algumas horas em um dos terminais, no entanto tal concessão lhe foi categoricamente negada. Os computadores, segundo a explicação lógica e fria apresentada, eram para o exclusivo uso dos profissionais da imprensa, devidamente credenciados.
Mesmo assim, o jovem interiorano ainda guardou consigo um resquício de esperança, principalmente quando ainda no referido galpão,,, escutou certo informe, transmitido pela Rádio Poste (emissora radiofônica operante na área do acampamento):
- Hoje, às quatorze horas, no espaço Axônios Culturais, haverá uma palestra sobre os efeitos nocivos da globalização e a conseqüente desvalorização do indivíduo e de suas necessidades específicas.
- A passos decididos, próprios de quem tomou alguma resolução inabalável, saiu em busca da Coordenadora Cultural do evento, encontrando-a após longa procura. Mal começou a expor o seu dilema e foi bruscamente interrompido.
- Depois, depois... ôtra hora a genti conversa com calma. Agora eu tô cheia di coisa pra fazê.
- Tá... pódi sê...
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O MST acabou concretizando-se na grande vedete do acampamento, acrescentando força humana (mão-de-obra) aos organizadores. Sem eles, certamente, a infra-estrutura do evento socialista não seria disponibilizada em tão curto espaço de tempo.
Foram cordiais e atenciosos com jornalistas e curiosos em geral, além de administrarem uma improvisada central de distribuição de água fervida para chimarrão. Foram hospitaleiros e solidários com os acampados que necessitaram utensílios domésticos de cozinha ou ferramentas para trabalho braçal.
Contrariando a fama de baderneiros, deram um brilhante exemplo de convivência social pacífica. Possuíam um organizado e inflexível regimento interno que penalizava os membros extraviados dos propósitos básicos do movimento. (Ocupar, Resistir, Produzir).
Euzébio, após ser algumas vezes admoestado verbalmente, foi expulso por insistir em cortejar, sem qualquer pudor, as raparigas Carlo Giullianenses.
Como bons amantes do campo, nos instantes de intensa agitação de transeuntes dentro do Parque Harmonia, sentiram saudades do cenário bucólico de seus melhores dias.
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Restavam á Genuíno pouco mais de três dias para encontrar, no calor do Fórum, os seus companheiros de banda. Em seu platônico universo de projeções, figuravam manchetes de jornais ,aclamando o seu fictício grupo como: "A grande reação musical contra o mundo globalizado e neoliberal".
Tal qual a virgem recatada, que durante a espera pelo príncipe encantado rende-se à impaciência, o jovem sem-terra, resolveu finalmente ir ao ataque. Era introspectivo e tinha dificuldades para expressar-se perante pessoas estranhas ao seu convívio. Por outro lado, não lhe restava outra alternativa palpável. O tempo esgotava-se depressa. Somente passando por cima da própria timidez conseguiria manter algum tipo de contato promissor com aspirantes à fama.
Queria realmente muito mais daquela madrugada. Pela 1ª vez na vida, para incrementar a sua faceta rebelde, resolveu “dar uns peguinhas”. Recebera na véspera, das mãos do ativista capixaba Lúcio, redator-chefe da Revista Paranga, um baseado pronto para a queima. Solitariamente, dirigiu-se até a área arborizada apropriada e fumou-o até a última ponta.
O resultado daquela experiência inicial com a erva cannabis foi, no mínimo, curiosa. Sentiu como se todos ao redor olhassem para ele, condenando-o. Teve pensamentos incertos e confusos a ponto de sentir-se desorientado.
Ao caminhar em direção ao pátio central, deparou-se com uma animada roda de jovens, sentados ao chão, com violões.
Sem hesitar, foi ele ao encontro do destino. Com os olhos avermelhados, vidrados, agachou-se próximo a um cabeludo, que tentava reproduzir em sua viola acordes dos já extintos “Heróis da Resistência”. O violonista, naquele instante sentiu-se constrangido, passando á errar sucessivamente os acordes, levantando-se abruptamente logo em seguida, para não mais retornar à roda.
Genuíno então, apresentou-se formalmente, na tentativa de quebrar aquela incômoda situação, criada naqueles primeiros instantes:
- Eu... eu sô di Arroio das Rã... Gostu di tocá pandêro.
- Aaah... qui legal... respondeu uma moça, que empunhava um violão.
Como num passe de mágica, de repente, o sem-terra lembrou-se vivamente de Corina. Isso foi o suficiente para emudecê-lo e travá-lo de vez perante todos, que apenas trocaram olhares de perplexidade. Temerosos, sem saberem ao certo até que ponto aquela insanidade seria pacífica, dispersaram-se deixando-o ali, solitário em seu delírio.
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Chovia intensamente, quando os últimos acampados debandaram do Parque em direção a seus respectivos lares. Tiago, encharcado, deu ainda um último passeio pelas já ruínas daquela cidade. Procurava ainda o seu cavalo encilhado.
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EPÍLOGO
O Fórum Social Mundial pôde ser definido de várias formas, sob vários ângulos e contextos, porém só foi sintetizado por completo, com síntese e clareza, através de uma expressão bastante singela:
- Gui...
FIM
segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021
Diario Forense Parte I
Debaixo de um sol de 42° C os funcionários da empresa vencedora da licitação (T.W. Montagens S.A) prestavam à Prefeitura Municipal porto-alegrense o serviço de montagem das estruturas galvanizadas que serviriam de suporte para as arquibancadas da “Passarela do Samba”.
Os festejos momescos aproximavam-se, exigindo dos operários um ritmo ainda mais acelerado do que o habitual.
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Em contrapartida, na mais absoluta inércia, em companhia de mais dois colegas, sentado numa das mesas cobertas situadas na extremidade do parque fronteiriça á referida via temporária de desfiles carnavalescos, um membro do MTD (Movimento dos Trabalhadores Desempregados) vigiava uma costela bovina repousada em brasas.
Dono de um poderoso complexo vocal, não encontrava qualquer dificuldade para comunicar-se á distância com os seus colegas, sentados em outro banco tosco de madeira. Esses, esperavam as roupas secarem na cerca de arame.
-Ei companhêro! Queres um pedaço de CARNE? Já ta quase pronto!
O convite foi ouvido num raio de alcance consideravelmente longo (cerca de 500 m).
Inabalavelmente disposto á quebrar o silêncio monótono daquele início de tarde no Parque Harmonia, o assador estendeu a proposta a um jovem que, sentado na relva, revisava os originais da sua coletânea de contos.
- Ei amigo! Amigo! Queres um pedaço de carne?
- Não, não, obrigado.
Feito isto, o boca grande, voltando o seu olhar para o alto, resolveu fazer um inocente gracejo com um dos operários que empoleirado no degrau superior da arquibancada em construção, apenas voltou o rosto para ele.
- Faz isso direito si não levas aperto du teu chéfi!
Com aquele sol escaldante ardendo-lhe direto no lombo, o operário, que tinha constituição física tipicamente nordestina, a princípio fez-se de desentendido.
No entanto, o gracejo foi repetido:
- Ô rapaz, faz isso direitinho ôviu? Não ti isquéci!
Dessa vez ouve uma resposta. Ela foi um reflexo da conjunção explosiva de dois fatores primordiais: o cansaço do trabalhador, exposto á tamanho calor e o duvidoso senso de humor daquele carnívoro, que insistira com sua “flauta”.
- Vai tomá nu teu cu!
- Ô, ô, não tens educação não?
- Vê si acha ôtro, gaudério!
- Sai ô terra seca!
- Vai tomá nu cu!
- Terra seca!
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O Acampamento Intercontinental da Juventude estava sendo, a passos lentos, dotado da infra-estrutura necessária para receber as 5 mil barracas previstas para os 4 dias de palestras, oficinas e apresentações artísticas.
No local, acampados por enquanto, apenas membros do MST, do MTD alguns jovens , voluntários do Comitê de Apoio ao Fórum e alguns indigentes.
Estes últimos, ofereciam um espetáculo todo peculiar aos observadores atentos daquele complexo arborizado. Sentados, pensativos, alguns permaneciam por horas a fio em quase total imobilidade, transparecendo em seus olhares indícios nítidos de melancolia. Esperavam tão somente o monótono transcurso das horas, numa contagem regressiva sem perspectiva alguma. Seus sonhos eram regados basicamente à cachaça.
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Vítor, numa bancada próxima, entabula uma conversa com o jovem ainda absorto em seu manuscrito original. Dizendo ignorar o real motivo daquele ritmo de trabalho (estacas eram erguidas e enterradas no chão do parque), o artista plástico e escritor Vítor indaga ao jovem Tiago visando sanar definitivamente a sua dúvida:
- Que diabos está acontecendo aqui?
- É o Fórum Social Mundial.
Conversaram em seguida sobre política, trabalho e amizade. Reservaram um momento à parte para abordarem a crise Argentina, momento este no qual Vítor revelou-se um profundo conhecedor das raízes históricas do peronismo.
Não se aprofundaram em projeções sobre o grande evento socialista que materializava-se naquele parque arborizado. Tiago apenas engatinhava em questões partidárias, principalmente nos acontecimentos históricos. Por esse motivo manteve-se cauteloso ao explanar o seu ponto de vista. Buscava no Fórum mais informações para somente assim posicionar-se com desenvoltura.
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Na mesa do gaudério bocarra, um ancião, espichado num banco, interrompia de tempos em tempos a sua séstia para dirigir imprecações á um guri magro, de olheiras profundas e submisso. Pela semelhança física, era neto ou filho do velho renegado.
- Eu vô ti matá ô filho duma coisa ruim! Tô cum nojo di olhá na tua cara aí parado... Dêxa só eu terminá di isticá meus osso...
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Como haviam decorridos já cerca de três horas desde o pequeno entreveiro entre o gaúcho e o nordestino, passado o calor da discussão, um deles resolveu acreditar realmente num outro mundo. O sulista convidou outros dois operários empoleirados na arquibancada para um churrasco de final de tarde (ele ainda continuava assando tecidos animais). Logo em seguida, tomou a iniciativa de propor uma trégua ao “terra seca”. O nordestino encontrava-se ainda absorto em suas engenhosas tarefas de montagem.
- Ei amigo! Companhêro! Tu também tais convidado, ôviu? Vâmu dexá aquela bobági di terra disso ou daquilo pra lá... Certo companhêro? A gênti não ganha nada si bicando, né mesmo?
- É
- Intão eu vô lá nu acampamento buscá mais CARNE! Quandu vocês for liberado aí, vêm tudo pra cá, ta bom?
- Tá.
- Heim? Não ti iscutei!
- TÁ
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Vítor foi-se. Deixou no ar uma frase de efeito. Era o conselho de um artista da capital, que extraía do seu dom o auto-sustento:
- Cavalo encilhado só passa na nossa frente uma vez na vida.
Ainda refletindo sobre tal máxima, a caminho da sua barraca, Tiago cruzou com um pai enternecido a olhar os passos do pequeno filho de 4 anos. O nenê caminhava com desenvoltura, três metros à sua frente.
O olhar daquele brasileiro dava aos observadores a sensação nítida de que uma outra realidade era possível.
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Alguns violões foram surgindo, na medida em que mais acampados chegavam.
A duas noites da abertura oficial do evento, o movimento era grande no pátio central da ¹ Carlo Giulliano. Vários grupinhos farfalhavam como colegiais na hora do recreio. Não havia ainda qualquer intercâmbio entre as rodas de bate-papo.
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Buscando enturmar-se com pessoas de mentalidade urbana, o jovem membro do MST, Genuíno, após sorver um último gole de chimarrão junto á seus companheiros de batalha e acampamento, apartou-se. Saiu decidido a estabelecer algum contato no meio de todos aqueles simpáticos jovens. As palavras de sua tia estavam ainda bastante vívidas em sua mente. A advertência da mesma, às margens do Arroio das Rãs, córrego natural sito a 313 Km de Candiota, havia sido direta e conclusiva:
- Tu tem é qui ti inturmá, guri... Tens qui sê mais cara di pau. Só assim tu vai sê alguma coisa na vida.
Esperançoso em realmente encontrar amigos dispostos a estabelecerem intercâmbios de idéias, deteve-se por cerca de 15 minutos num ponto escuro do pátio. Durante esse tempo, sentado num moirão deitado ao chão, apenas visualizou, um a um, os aglomerados de acampados a confabularem.
Feito o reconhecimento, tentou então uma aproximação com universitários paranaenses sentando-se a alguns metros deles. Buscando facilitar o contato e exalar simpatia, sorriu com uma candura toda peculiar. Acabou sendo mal interpretado, pois o grupo dissolveu-se em questão de segundos. Já um pouco deprimido, voltou ele a ocupar a sua tora de madeira. Somente no instante em que um grupo de quinze pessoas instalou-se perto da fogueira vigiada por um místico mexicano, animou-se a dar outro bote. No entanto, o círculo já estava fechado o suficiente para não permitir o seu ingresso. Pôs-se então a ouvi-los. Os jovens começaram a comunicarem-se em idioma francês, visando rechaçá-lo de vez.
Quando por fim viu-se só, sem ter pra onde olhar e sem entender o que escutava, levantou-se sem-graça, como que ao encontro de um compromisso marcado.
Assim que a sua imagem dissipou-se por entre as barracas, novamente a Língua Portuguesa ocupou lugar na conversação privada do círculo:
- Essis sem-terra são muito estranho, meu...
- Bom, agora continuando... Gênti, u Galeano foi muuuuito genial quando disse qui a superação du capital...
Continua
¹ Denominação utilizada pelos organizadores do Fórum Social Mundial, edição 2002, para designar a área do Parque Harmonia destinada ao Acampamento Intercontinental da Juventude.