Debaixo de um sol de 42° C os funcionários da empresa vencedora da licitação (T.W. Montagens S.A) prestavam à Prefeitura Municipal porto-alegrense o serviço de montagem das estruturas galvanizadas que serviriam de suporte para as arquibancadas da “Passarela do Samba”.
Os festejos momescos aproximavam-se, exigindo dos operários um ritmo ainda mais acelerado do que o habitual.
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Em contrapartida, na mais absoluta inércia, em companhia de mais dois colegas, sentado numa das mesas cobertas situadas na extremidade do parque fronteiriça á referida via temporária de desfiles carnavalescos, um membro do MTD (Movimento dos Trabalhadores Desempregados) vigiava uma costela bovina repousada em brasas.
Dono de um poderoso complexo vocal, não encontrava qualquer dificuldade para comunicar-se á distância com os seus colegas, sentados em outro banco tosco de madeira. Esses, esperavam as roupas secarem na cerca de arame.
-Ei companhêro! Queres um pedaço de CARNE? Já ta quase pronto!
O convite foi ouvido num raio de alcance consideravelmente longo (cerca de 500 m).
Inabalavelmente disposto á quebrar o silêncio monótono daquele início de tarde no Parque Harmonia, o assador estendeu a proposta a um jovem que, sentado na relva, revisava os originais da sua coletânea de contos.
- Ei amigo! Amigo! Queres um pedaço de carne?
- Não, não, obrigado.
Feito isto, o boca grande, voltando o seu olhar para o alto, resolveu fazer um inocente gracejo com um dos operários que empoleirado no degrau superior da arquibancada em construção, apenas voltou o rosto para ele.
- Faz isso direito si não levas aperto du teu chéfi!
Com aquele sol escaldante ardendo-lhe direto no lombo, o operário, que tinha constituição física tipicamente nordestina, a princípio fez-se de desentendido.
No entanto, o gracejo foi repetido:
- Ô rapaz, faz isso direitinho ôviu? Não ti isquéci!
Dessa vez ouve uma resposta. Ela foi um reflexo da conjunção explosiva de dois fatores primordiais: o cansaço do trabalhador, exposto á tamanho calor e o duvidoso senso de humor daquele carnívoro, que insistira com sua “flauta”.
- Vai tomá nu teu cu!
- Ô, ô, não tens educação não?
- Vê si acha ôtro, gaudério!
- Sai ô terra seca!
- Vai tomá nu cu!
- Terra seca!
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O Acampamento Intercontinental da Juventude estava sendo, a passos lentos, dotado da infra-estrutura necessária para receber as 5 mil barracas previstas para os 4 dias de palestras, oficinas e apresentações artísticas.
No local, acampados por enquanto, apenas membros do MST, do MTD alguns jovens , voluntários do Comitê de Apoio ao Fórum e alguns indigentes.
Estes últimos, ofereciam um espetáculo todo peculiar aos observadores atentos daquele complexo arborizado. Sentados, pensativos, alguns permaneciam por horas a fio em quase total imobilidade, transparecendo em seus olhares indícios nítidos de melancolia. Esperavam tão somente o monótono transcurso das horas, numa contagem regressiva sem perspectiva alguma. Seus sonhos eram regados basicamente à cachaça.
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Vítor, numa bancada próxima, entabula uma conversa com o jovem ainda absorto em seu manuscrito original. Dizendo ignorar o real motivo daquele ritmo de trabalho (estacas eram erguidas e enterradas no chão do parque), o artista plástico e escritor Vítor indaga ao jovem Tiago visando sanar definitivamente a sua dúvida:
- Que diabos está acontecendo aqui?
- É o Fórum Social Mundial.
Conversaram em seguida sobre política, trabalho e amizade. Reservaram um momento à parte para abordarem a crise Argentina, momento este no qual Vítor revelou-se um profundo conhecedor das raízes históricas do peronismo.
Não se aprofundaram em projeções sobre o grande evento socialista que materializava-se naquele parque arborizado. Tiago apenas engatinhava em questões partidárias, principalmente nos acontecimentos históricos. Por esse motivo manteve-se cauteloso ao explanar o seu ponto de vista. Buscava no Fórum mais informações para somente assim posicionar-se com desenvoltura.
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Na mesa do gaudério bocarra, um ancião, espichado num banco, interrompia de tempos em tempos a sua séstia para dirigir imprecações á um guri magro, de olheiras profundas e submisso. Pela semelhança física, era neto ou filho do velho renegado.
- Eu vô ti matá ô filho duma coisa ruim! Tô cum nojo di olhá na tua cara aí parado... Dêxa só eu terminá di isticá meus osso...
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Como haviam decorridos já cerca de três horas desde o pequeno entreveiro entre o gaúcho e o nordestino, passado o calor da discussão, um deles resolveu acreditar realmente num outro mundo. O sulista convidou outros dois operários empoleirados na arquibancada para um churrasco de final de tarde (ele ainda continuava assando tecidos animais). Logo em seguida, tomou a iniciativa de propor uma trégua ao “terra seca”. O nordestino encontrava-se ainda absorto em suas engenhosas tarefas de montagem.
- Ei amigo! Companhêro! Tu também tais convidado, ôviu? Vâmu dexá aquela bobági di terra disso ou daquilo pra lá... Certo companhêro? A gênti não ganha nada si bicando, né mesmo?
- É
- Intão eu vô lá nu acampamento buscá mais CARNE! Quandu vocês for liberado aí, vêm tudo pra cá, ta bom?
- Tá.
- Heim? Não ti iscutei!
- TÁ
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Vítor foi-se. Deixou no ar uma frase de efeito. Era o conselho de um artista da capital, que extraía do seu dom o auto-sustento:
- Cavalo encilhado só passa na nossa frente uma vez na vida.
Ainda refletindo sobre tal máxima, a caminho da sua barraca, Tiago cruzou com um pai enternecido a olhar os passos do pequeno filho de 4 anos. O nenê caminhava com desenvoltura, três metros à sua frente.
O olhar daquele brasileiro dava aos observadores a sensação nítida de que uma outra realidade era possível.
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Alguns violões foram surgindo, na medida em que mais acampados chegavam.
A duas noites da abertura oficial do evento, o movimento era grande no pátio central da ¹ Carlo Giulliano. Vários grupinhos farfalhavam como colegiais na hora do recreio. Não havia ainda qualquer intercâmbio entre as rodas de bate-papo.
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Buscando enturmar-se com pessoas de mentalidade urbana, o jovem membro do MST, Genuíno, após sorver um último gole de chimarrão junto á seus companheiros de batalha e acampamento, apartou-se. Saiu decidido a estabelecer algum contato no meio de todos aqueles simpáticos jovens. As palavras de sua tia estavam ainda bastante vívidas em sua mente. A advertência da mesma, às margens do Arroio das Rãs, córrego natural sito a 313 Km de Candiota, havia sido direta e conclusiva:
- Tu tem é qui ti inturmá, guri... Tens qui sê mais cara di pau. Só assim tu vai sê alguma coisa na vida.
Esperançoso em realmente encontrar amigos dispostos a estabelecerem intercâmbios de idéias, deteve-se por cerca de 15 minutos num ponto escuro do pátio. Durante esse tempo, sentado num moirão deitado ao chão, apenas visualizou, um a um, os aglomerados de acampados a confabularem.
Feito o reconhecimento, tentou então uma aproximação com universitários paranaenses sentando-se a alguns metros deles. Buscando facilitar o contato e exalar simpatia, sorriu com uma candura toda peculiar. Acabou sendo mal interpretado, pois o grupo dissolveu-se em questão de segundos. Já um pouco deprimido, voltou ele a ocupar a sua tora de madeira. Somente no instante em que um grupo de quinze pessoas instalou-se perto da fogueira vigiada por um místico mexicano, animou-se a dar outro bote. No entanto, o círculo já estava fechado o suficiente para não permitir o seu ingresso. Pôs-se então a ouvi-los. Os jovens começaram a comunicarem-se em idioma francês, visando rechaçá-lo de vez.
Quando por fim viu-se só, sem ter pra onde olhar e sem entender o que escutava, levantou-se sem-graça, como que ao encontro de um compromisso marcado.
Assim que a sua imagem dissipou-se por entre as barracas, novamente a Língua Portuguesa ocupou lugar na conversação privada do círculo:
- Essis sem-terra são muito estranho, meu...
- Bom, agora continuando... Gênti, u Galeano foi muuuuito genial quando disse qui a superação du capital...
Continua
¹ Denominação utilizada pelos organizadores do Fórum Social Mundial, edição 2002, para designar a área do Parque Harmonia destinada ao Acampamento Intercontinental da Juventude.
Um comentário:
Um texto interessante, especialmente se analisamos a maneira de falar dos intervenientes.
Abraço, saúde e boa semana
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