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segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

No interior da mata


           Mais um fragmento de "Tribo de Papel", obra minha em processo de revisão,  escrita bem antes dos meus dois livros de contos lançados. Uma incursão à mata nativa brasileira.

 

         (...) A vibração emitida pelo canto daquela ave colocou ele num estágio de consciência diferenciada. Desfrutou um estado de relaxamento todo singular. O prazer era comparável à uma massagem no crânio. Se sentiu impelido a sentar na relva para entregar-se por inteiro ao momento. Uma brisa suave, que fazia sutilmente balançarem os arbustos de hortênsias, logo a sua frente, refrescava suficientemente aquela noite quente e estrelada de verão. A lua cheia, sem o auxílio de qualquer holofote, iluminava com resplandescência a fauna e flora do local. Podia-se tranquilamente, sem a necessidade de lanterna, acompanhar o meticuloso trabalho de tecelagem da aranha-caranguejeira entre duas folhas de costela-de-adão. Da mesma forma, era possível vislumbrar o praticamente inútil esforço do pernilongo pra desvencilhar-se da sua infalível teia.

          Não havia no coração do jovem qualquer medo ou anseio grande o suficiente para tirá-lo daquela viagem mística onde cada forma da natureza, por menor que fosse, adquiria singular importância no contexto daquela paisagem verde banhada de luar. O espaço favorecia amplamente momentos de reflexão. Como nunca, desde a sua emigração das matas, experimentou uma sensação de grande conforto. Sentiu saudades da aldeia. Mantivera, até então, distância de qualquer recordação emotiva que o ligasse ao passado. Era um cidadão realizado, profissionalmente falando, sem motivos aparentes pra pensar em seus tempos de curumim *, em meio aos parentes selvagens.

           Ali, no entanto, recordou que há tempos atrás, ainda menino, sonhou que um dia libertaria o seu povo. Permaneceu, longo tempo, num olhar meditativo em direção à mata. Murmurou, instintivamente,  um cântico guarani que aprendera dos ancestrais:

    Ndajarekoveima- Nhanderokoá py ndajareko veima

    Takua ty porã

     Ndajareko veima yary ra porã
     Jajapo haguã nhanderopyrã javy ' a haguã heta va' kuery

     Omo kanhy mba Nhanderú miri Oeja va' ekue 


          "Já não temos mais o que precisamos. Na nossa aldeia não temos mais taquareira como antigamente. Não temos mais madeira como antigamente, Já não podemos mais construir nossas ocas e nem nossa Casa de Reza, porque os não índios tomaram tudo o que nosso Deus deixou para nós."

                                                                                 



*  Menino, criança indígena.

Um comentário:

J.P. Alexander disse...

Triste impactante relato. Te mando un beso.