Mais um fragmento de "Tribo de Papel", obra minha em processo de revisão, escrita bem antes dos meus dois livros de contos lançados. Uma incursão à mata nativa brasileira.
(...) A vibração emitida pelo canto daquela ave colocou ele num estágio de consciência diferenciada. Desfrutou um estado de relaxamento todo singular. O prazer era comparável à uma massagem no crânio. Se sentiu impelido a sentar na relva para entregar-se por inteiro ao momento. Uma brisa suave, que fazia sutilmente balançarem os arbustos de hortênsias, logo a sua frente, refrescava suficientemente aquela noite quente e estrelada de verão. A lua cheia, sem o auxílio de qualquer holofote, iluminava com resplandescência a fauna e flora do local. Podia-se tranquilamente, sem a necessidade de lanterna, acompanhar o meticuloso trabalho de tecelagem da aranha-caranguejeira entre duas folhas de costela-de-adão. Da mesma forma, era possível vislumbrar o praticamente inútil esforço do pernilongo pra desvencilhar-se da sua infalível teia.
Não havia no coração do jovem qualquer medo ou anseio grande o suficiente para tirá-lo daquela viagem mística onde cada forma da natureza, por menor que fosse, adquiria singular importância no contexto daquela paisagem verde banhada de luar. O espaço favorecia amplamente momentos de reflexão. Como nunca, desde a sua emigração das matas, experimentou uma sensação de grande conforto. Sentiu saudades da aldeia. Mantivera, até então, distância de qualquer recordação emotiva que o ligasse ao passado. Era um cidadão realizado, profissionalmente falando, sem motivos aparentes pra pensar em seus tempos de curumim *, em meio aos parentes selvagens.
Ali, no entanto, recordou que há tempos atrás, ainda menino, sonhou que um dia libertaria o seu povo. Permaneceu, longo tempo, num olhar meditativo em direção à mata. Murmurou, instintivamente, um cântico guarani que aprendera dos ancestrais:
Ndajarekoveima- Nhanderokoá py ndajareko veimaTakua ty porã
Ndajareko veima yary ra porãJajapo haguã nhanderopyrã javy ' a haguã heta va' kueryOmo kanhy mba Nhanderú miri Oeja va' ekue
"Já não temos mais o que precisamos. Na nossa aldeia não temos mais taquareira como antigamente. Não temos mais madeira como antigamente, Já não podemos mais construir nossas ocas e nem nossa Casa de Reza, porque os não índios tomaram tudo o que nosso Deus deixou para nós."
* Menino, criança indígena.
Um comentário:
Triste impactante relato. Te mando un beso.
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