Somente quem vivenciou de perto uma catástrofe pode traduzir aos seus leitores a dimensão desses momentos em que o tempo parece conspirar contra. Queremos que essas coisas passem rápido, mas na maioria das vezes temos que exercitar ou desenvolver paciência, resignação e poder de reação.
O Rio Grande do Sul finalmente começa a reconstruir aquilo que foi devastado na enchente de maio e esse trabalho vai durar meses, talvez anos ainda. E pra exorcizar de vez esse assunto aqui do blog, hoje venho compartilhar o texto de uma colunista do Jornal Zero Hora, que magistralmente sinaliza a lição que deve ficar em cada um de nós, gaúchos, daqui pra frente. Aos que assistiram de longes as cenas da tragédia, também, por sua vez, queira Deus, despertem as suas consciências para as imprescindíveis questões ambientais.
🙏
Cassandra é
um personagem mítico, filha de Príamo, rei de Tróia, cidade portuária atacada
e, depois de longo cerco, destruída. Ela tem um dom e uma maldição: faz
profecias certeiras, nas quais ninguém acredita. Adverte pai e irmãos do risco
de uma guerra contra os gregos, mas ninguém a leva a sério, inclusive por se
tratar de projeções sombrias que poderiam afetar a moral.
Quem passou os últimos anos, alguns, as últimas
décadas, repetindo previsões tão assustadoras e certeiras sobre o clima
como as da "louca" princesa troiana agora padece de "síndrome de
Cassandra". Diante do fato inegável de que as tempestades estão mais
frequentes e mais intensas, negacionistas do clima já não tentam fazer de conta
que quase dois séculos de uso irresponsável dos recursos naturais não deixaram
sequelas.
Agora, tentam argumentar que não
foram avisados a tempo. Ou com o barulho necessário. Ou com a devida ênfase. Ou
não foram sacudidos no meio da noite por um cientista exausto de escrever e dar
entrevistas.
Por favor, um pouco de compostura. Não em nome dos cientistas que se cansaram de alertar, as Cassandras do terceiro milênio. Mas das pessoas que perderam familiares, amigos, casa, móveis, eletrodomésticos, memórias, livros e até área de cultivo. Um pouco de compostura.
Ano após ano, o Painel
Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC), criado em 1988, publicou
relatórios com advertências cada vez mais dramáticas. Em março de 2023, o
último anual (o próximo é esperado no final da década) pedia “ação emergencial
para evitar colapso climático no mundo”.
Alegar que os governantes de plantão
não sabiam ou não foram cobrados antes sobre medidas de prevenção a tempestades
severas é tão leviano quanto dizer que os administradores de turno são os
únicos culpados pelas perdas do dilúvio de 2024.
Se até determinado ponto, temas
ambientais eram atribuídos a “marxismo cultural”, nos últimos anos até bancos
comerciais internacionais e nacionais já condicionaram crédito a medidas de
proteção ambiental. Então, governantes atuais e pretéritos têm a obrigação de
saber o que ocorre no mundo.
E Cassandra? Teve fim trágico,
conforme os clássicos gregos. Mais trágico foi o fim dos que a ouviram e
escolheram não acreditar.
Fonte: Coluna da jornalista Marta Sfredo, publicada na edição de 04/06/2024 do Jornal Zero Hora.