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sábado, 29 de junho de 2024

A Síndrome de Cassandra


 

                 Somente quem vivenciou de perto uma catástrofe pode traduzir aos seus leitores a dimensão desses momentos em que o tempo parece conspirar contra. Queremos que essas coisas passem rápido, mas na maioria das vezes temos que exercitar ou desenvolver paciência, resignação e poder de reação.

      O Rio Grande do Sul finalmente começa a reconstruir aquilo que foi devastado na enchente de maio e esse trabalho vai durar meses, talvez anos ainda. E pra exorcizar de vez esse assunto aqui do blog, hoje venho compartilhar o texto de uma colunista do Jornal Zero Hora, que magistralmente sinaliza a lição que deve ficar em cada um de nós, gaúchos, daqui pra frente. Aos que assistiram de longes as cenas da tragédia, também, por sua vez, queira Deus, despertem as suas consciências para as imprescindíveis questões ambientais.  

                           🙏

            

          Cassandra é um personagem mítico, filha de Príamo, rei de Tróia, cidade portuária atacada e, depois de longo cerco, destruída. Ela tem um dom e uma maldição: faz profecias certeiras, nas quais ninguém acredita. Adverte pai e irmãos do risco de uma guerra contra os gregos, mas ninguém a leva a sério, inclusive por se tratar de projeções sombrias que poderiam afetar a moral.

      Quem passou os últimos anos, alguns, as últimas décadas,  repetindo previsões tão assustadoras e certeiras sobre o clima como as da "louca" princesa troiana agora padece de "síndrome de Cassandra". Diante do fato inegável de que as tempestades estão mais frequentes e mais intensas, negacionistas do clima já não tentam fazer de conta que quase dois séculos de uso irresponsável dos recursos naturais não deixaram sequelas.

        Agora, tentam argumentar que não foram avisados a tempo. Ou com o barulho necessário. Ou com a devida ênfase. Ou não foram sacudidos no meio da noite por um cientista exausto de escrever e dar entrevistas.

            Por favor, um pouco de compostura. Não em nome dos cientistas que se cansaram de alertar, as Cassandras do terceiro milênio. Mas das pessoas que perderam familiares, amigos, casa, móveis, eletrodomésticos, memórias, livros e até área de cultivo. Um pouco de compostura.

            Ano após ano, o Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC), criado em 1988, publicou relatórios com advertências cada vez mais dramáticas. Em março de 2023, o último anual (o próximo é esperado no final da década) pedia “ação emergencial para evitar colapso climático no mundo”.

          Alegar que os governantes de plantão não sabiam ou não foram cobrados antes sobre medidas de prevenção a tempestades severas é tão leviano quanto dizer que os administradores de turno são os únicos culpados pelas perdas do dilúvio de 2024.

        Se até determinado ponto, temas ambientais eram atribuídos a “marxismo cultural”, nos últimos anos até bancos comerciais internacionais e nacionais já condicionaram crédito a medidas de proteção ambiental. Então, governantes atuais e pretéritos têm a obrigação de saber o que ocorre no mundo.

          E Cassandra? Teve fim trágico, conforme os clássicos gregos. Mais trágico foi o fim dos que a ouviram e escolheram não acreditar.




        

Fonte: Coluna da jornalista Marta Sfredo, publicada na edição de 04/06/2024 do Jornal Zero Hora.

segunda-feira, 17 de junho de 2024

Passando o tempo - Parte III


 

           Encerrando a minha atípica série de resenhas, escritas durante esse período de dimensões catastróficas aqui no meu Estado, que me obrigou a pôr a leitura em dia, trago a vocês o livro de um escritor que, só de nome, eu conhecia, Fiódor Dostoiévski.

          À princípio, com ideias preconcebidas sobre o autor, achei que estava embarcando numa leitura pesada, carregada de citações surreais e filosofia ateísta. Francamente, não sei de onde eu tirei projeções como essas, provavelmente porque o nome do homem é difícil de escrever. Pra surpresa minha a leitura fluiu fácil e, fora uma exagerada reflexão do protagonista sem nome, sobre o seu solitário passado, consegui acompanhar sem qualquer problema o desenrolar da trama.

          “Noites brancas” tem como tela de fundo as quatro noites em que um rapaz e uma moça russos, moradores de São Petersburgo,  encontram-se às margens do Rio Negro pra trocarem confidências, desabafos e ansiedades quanto ao futuro.

 

“Hoje o dia foi triste, chuvoso, sem luz, exatamente como minha velhice futura. Fui oprimido por pensamentos tão estranhos e sensações tão sombrias, questões ainda tão obscuras acumulavam-se em minha cabeça, e era como se eu não tivesse forças nem vontade de resolvê-las. Não cabia a mim resolver tudo aquilo!

Hoje não nos veremos. Ontem, quando nos despedimos, nuvens começavam a cobrir o céu e erguia-se um nevoeiro. Eu disse que o dia seguinte seria feio; ela não respondeu, não queria falar contra si mesma; para ela, este dia seria luminoso e claro, e nenhuma nuvenzinha iria encobrir a sua felicidade.

– Se chover, não nos veremos! – disse ela. – Eu não virei.

Pensei que ela não se importaria com a chuva de hoje; no entanto, não veio.

Ontem foi o nosso terceiro encontro, nossa terceira noite branca...”

 

             Sintetizando tudo, a impressão que em mim ficou é de uma obra sobre a  amizade entre dois jovens de sexos opostos. Algumas vezes o sentimento se confunde na cabeça de ambos, mas a relação não chega a ultrapassar os limites da pura e simples empatia entre duas almas. Os diálogos inocentes surpreendem os apreciadores de romances tradicionais, apimentados.

          Recomendo o livro como sugestão de leitura rápida, em tom de diário pessoal adolescente, composto por esse escritor considerado pela crítica e leitores como um dos maiores autores russos de todos os tempos.       

domingo, 2 de junho de 2024

Passando o tempo- Parte II


 

       A segunda obra devorada durante esse fatídico período, já mencionado nas três postagens anteriores, possui  alguns contrastes e poucas semelhanças com a anterior. Há muitíssimo tempo eu não lia uma obra tão extensa, de 321 páginas.  “Eva Luna”, da escritora chilena radicada na Venezuela, Isabel Allende, tem um único contato com “Réquiem para um burocrata”(vide postagem anterior). Ambas abordam a ditadura militar na América do Sul.

          Ao contrário do apático Argemiro, Eva, protagonista da obra, é uma mulher pouco inclinada  à rotinas, corajosa e sempre em busca de autonomia para viver os seus sonhos e exorcizar o passado. Após a morte da mãe, que lhe deixa como herança o dom de contar histórias e uma vida de privações, perambula como hóspede em diversas casas, na função de empregada doméstica, vivendo situações inusitadas e conflitantes em cada uma delas. A sua trajetória vai sendo construída cercada de reviravoltas do destino,  romances, separações, tragédias, mas sempre com uma luz ao fim do túnel, em forma de amizade. O seu envolvimento sentimental com um guerrilheiro opositor à ditadura, nas páginas finais, traz um contorno cinematográfico à obra, com direito a plano de fuga, resgate com helicóptero e repercussão nacional.

         Antes da minha análise pessoal sobre essa obra, tenho de admitir que as minhas leituras anteriores vinham sendo, imperceptivelmente pra mim, marcadas por uma tendência machista, com predominância de autores homens em minhas escolhas. Peço desculpa a todas vocês, pois sempre fui admirador confesso da incomparável sensibilidade feminina e não há motivo plausível pra não intercalar leituras dos dois gêneros.

       Isabel Allende evoca no leitor intensas emoções, que vão da tristeza ao júbilo, da esperança à desilusão. Existem momentos fortes, chocantes na trama, principalmente as narrativas de mortes trágicas. A melancolia percorre grande parte dos parágrafos, no entanto, o poder da imaginação e das palavras apontam pra um caminho libertador. Torci bastante pelo destino da Eva Luna, uma vítima das circunstâncias, jogada ao mundo muito cedo.

 

“Naqueles anos tentei recuperar o tempo perdido. Estudava em uma academia noturna para obter um diploma que depois de nada me valeu, mas que então me parecia indispensável.     Trabalhava durante o dia como secretária em uma fábrica de uniformes militares e, á noite, enchia meus cadernos de contos. Mimi me suplicara para abandonar aquele emprego reles e que me dedicasse somente a escrever. Desde que viu uma fila diante de uma livraria, todos esperando a vez para que um bigodudo escritor colombiano em turnê triunfal autografasse  seus livros, entulhava-me de cadernos, lapiseiras e dicionários. É uma boa profissão, Eva, você não precisaria levantar tão cedo e ninguém ficaria dando-lhe ordens… Ela sonhava ver-me dedicada à literatura, mas eu precisava ganhar a vida e, neste sentido, a escrita é um terreno um tanto escorregadio.”