segunda-feira, 20 de outubro de 2025

O ponto fraco do Arthur

 


          Ele relutou bastante antes de ligar. Foram necessárias várias conversas entre os dois para que, enfim, vencido pelo cansaço e sem mais argumentos pra se agarrar, Arthur tomasse a iniciativa.

          Arthur tinha qualidades e talentos incontestáveis, granjeando através deles muitas amizades. A sua conversação era agradável, com bom senso de humor. Apesar dos quase quarenta anos, era um mulato com dentes bem polidos, olhar vivaz e pele saudável. Combinava simpatia com beleza e isso, naturalmente, abria-lhe algumas portas.

          Havia algo nele, contudo, que andava esgotando a paciência da sua mulher. Kleiva custara a perceber uma triste mas estampada realidade: O rapaz não gostava de trabalhar.

          O gelo, todos sabem, não foi feito para o contato com o fogo, pois derrete e perde a forma característica. A água, por sua vez, não nasceu para o óleo, pois se colocarmos ambos num copo eles sequer misturam-se. Se deixarmos de lado os estados físicos da matéria e o mundo dos elementos químicos para adentrarmos no reino animal, veremos que, da mesma forma, algumas espécies repelem ou incompatibilizam-se com outros seres e/ou ambientes. É o caso do peixe, que não nasceu para a grama ou para o chão de saibro. Por outro lado, o bom ditado já diz: "Gato escaldado tem medo de água fria" e dificilmente veremos o felino jogando-se por vontade própria num banho de rio.

          Arthur, conforme constatado e comprovado de fato, não nascera para o trabalho. Fugia dele como o diabo da cruz. Duas semanas antes de Kleiva colocá-lo contra a parede, insistindo com aquela página dos classificados (a da imagem), aberta diante dele, escutou ela um intrigante diálogo. Naquele dia, ao final da tarde, receberam em casa a visita de Diogo, o vizinho e compadre que batizara Úrsula, a nenê do casal. Tomaram chimarrão, falaram sobre a última rodada do Gauchão e, já no portão, quando a sós ficaram os dois varões, houve uma proposta do visitante, pedreiro "de mão cheia" e sempre bem requisitado pra obras.

-- Olha, tô precisando di servente pra erguê umas parede lá na Dona Eloá. Ela qué qui faça um quarto nos fundo pru guri dela. Fiquei di passá lá amanhã cedo pra dá um orçamento pra velha. Di tarde, si fizé tempo bom, já começo o serviço... Tá á fim di encará essa?

--...Bah cara... É que eu ajudo a Kleiva a cuidá da guriazinha aqui em casa... Agora fica ruim pra mim...


          Ela ouviu tudo em silêncio, atrás da cortina na janela e guardou pra si a revelação. Na gíria, dir-se-ia que naquele exato instante, após tão forte sacudida, a ficha finalmente caiu.

                                                  

                                 (...)


Trechos iniciais do conto "Meu querido tambo", do último e longínquo  livro meu, "O Grande Pajé".






15 comentários:

Jornalista Douglas Melo disse...

Meu amigo César,
Este texto me lembrou dos livros que costumávamos ler para as provas na época de escola.
Abraços!!!

chica disse...

Que lindo conito e há muotos como o Artur por aí. Querem moleza e que bom a ficha dela caiu!
Muito bom! abraços prainos, chica

J.P. Alexander disse...

uy Pobre Kleiva que hara con su marido Te mando un beso.

Linda's Relaxing Lair disse...

An amazing story ❤️ Thank you 😊 for sharing this.

Graça Pires disse...

Uma narrativa muito bem contada que aguça a nossa curiosidade para o que se segue.
Uma boa semana.
Um beijo,

Sintra blogue disse...

obrigado

Aleatoriamente disse...

Amigo César,

seu trecho é um mergulho delicado e perspicaz na complexidade dos relacionamentos e do caráter humano. Arthur encanta com qualidades visíveis, mas revela uma resistência ao trabalho que altera a dinâmica com Kleiva. Adorei como você mistura descrição detalhada, diálogo e reflexões quase filosóficas sobre compatibilidade e natureza, usando analogias criativas entre elementos e pessoas. Um texto que combina humor, crítica e observação social com ritmo e elegância.

Abraço
Fernanda!

Luiz Gomes disse...

Boa sexta-feira e bom final de semana meu querido amigo Cesar. Desculpe a demora na resposta. Obrigado pelo seu comentário.

Fá menor disse...

Há-de ser um excelente conto, a avaliar pelo belo texto.
Realmente, a vida desse casal não vai ser fácil...

Beijinhos e tudo de bom!

Aleatoriamente disse...

Que texto saboroso, César. Há nele uma cadência madura, um domínio claro do ritmo narrativo e um olhar clínico sobre o humano esse tipo de olhar que não julga, mas desnuda. A introdução é precisa: você constrói Arthur com uma ternura quase irônica, revelando suas virtudes antes de desferir, com elegância, o golpe da verdade ele simplesmente não gostava de trabalhar.
O uso das analogias naturais (gelo e fogo, água e óleo, peixe e grama) dá um charme quase fábulico à narração, como se a natureza conspirasse para ilustrar a teimosia ou o destino dos personagens. Há humor e filosofia misturados, algo que lembra os contistas do interior, que sabem que a vida se explica melhor num bom exemplo do que num tratado.
E Kleiva, silenciosa atrás da cortina, é a síntese do conto: o instante em que o amor amadurece e percebe que o encanto não paga as contas. Um texto que respira realidade e ironia na medida certa e deixa vontade de ler o resto de O Grande Pajé.
Pixa amigo! Amei 🥰

Abraço
Fernanda

MELODY JACOB disse...

I love the way you used those analogies ice and fire, water and oil, the scalded cat to illustrate the fundamental incompatibility between Arthur and work. It was a very clever way to frame his avoidance.
That final paragraph where Kleiva overhears the conversation is so powerful. It's those little, quiet moments of revelation that are always the most impactful in a relationship. I’m already rooting for Kleiva to figure out her next move.

Eduardo Medeiros disse...

Olá, César.
Olha, fico imaginando o que a Kleiva fez com o Arthur depois que o amigo foi embora...

Rosangela A. Santos disse...

Obrigada por compartilhar! Realmente fiquei querendo saber mais! Abraços!

Ana Lucia Nicolau disse...

Que bacana gostei muito, obrigada por visitar meu blog Pensar com Leveza, se quiser visite também https://www.ananicolau.adv.br/

Luiz Gomes disse...

Boa noite meu querido amigo Cesar. Obrigado por suas palavras. Você disse o principal: na proteção de Deus. E o que não somente a cidade do Rio de Janeiro precisa e todo o Brasil. Alguns desses lugares, já fui na adolescência. E fui nascido criado em morro do Rio de Janeiro. Se eu convivi na época de criança, adolescência e depois dos meus 18 anos. Imagina hoje que eu tenho 52?