Todo escritor vai percebendo, ao longo da sua
carreira literária, a cada novo livro, detalhes que antes não considerara
atentamente na estruturação física da obra. Começo a minha primeira resenha do
ano, admirando-me perante a singeleza e expressividade que uma capa é capaz de
imprimir à um desabafo escrito. Tal qual o príncipe que abandonou tudo para
contemplar a própria alma refletida na pequena piscina de um oásis, retratado
no filme "Bab'Aziz", do diretor tunisiano Nacer Khemir, a moça da
capa parece efetivamente enxergar na clareza e transparência do mar um
video-tape da própria vida.
E é
isso o que Jacqueline Aisenman faz magistralmente em seu décimo livro (espero
ter acertado na conta), "Sentimentos confiscados", que tem por um
lado, a autenticidade histórica de um diário adolescente e por outro a
despreocupação cronológica do experimentalismo poético. A obra vem a ser um
apanhado de textos curtos e mini-contos sem quase nenhuma ligação entre si,
aleatoriamente ordenados, casualmente aproximados, deliciosamente misturados.
Esse formato tão peculiar, convida os navegantes à uma degustação pausada,
despreocupada e sem maiores compromissos com prazos de entrega. Tal liberdade
de estilo, própria de uma autora vacinada contra toda espécie de
convencionalismos intelectuais, sopra-nos uma suave brisa, que transporta as
nossas atenções para o que realmente importa: Entender as raízes dos nossos
sentimentos. (mesmo que isso seja praticamente impossível)
A
intuição feminina à flor da pele dessa catarinense de Laguna, lapidada pelo
divino dom da maternidade, confere-lhe uma autoridade ímpar nas coisas da vida,
presenteando o leitor com impressões pessoais algumas vezes provocantes. Somos
amorosamente estimulados, á cada texto, à revermos as nossas próprias verdades
intocáveis, que permanecem preguiçosamente repousadas naquele compartimento
interno chamado entendimento. Jacqueline, sem a pretensão de impor dogmas
existenciais, convida-nos à uma pausa na insana correria do dia-dia, através de
pequenas histórias e reflexões intimistas mas de fácil assimilação. É esse,
segundo penso, o principal compromisso que devem assumir os apologistas da
democratização da escrita, simplificando toda excessiva frescura que afaste
novos leitores.
No
livro, em doses condensadas, encontramos crônica, romance, comédia e drama,
numa insofismável demonstração das múltiplas ramificações criativas da
escritora, que parece de fato não se importar em fazer parte exclusiva desse ou
daquele gênero literário. São os seus sentimentos, e nada mais, quem ditam-lhes
a próxima trilha à seguir e a maneira de se expressar perante as próximas
páginas ainda em branco. De Jacqueline, com efeito, podemos esperar com grata
expectativa, o inesperado.
Tomo
a liberdade de colocar "Sentimentos confiscados" na categoria das
obras fadadas á serem lidas e relidas. Chegamos à última página com a sensação
de termos mergulhado fundo nas recordações pessoais de uma amiga, passando a
admirá-la e conhecê-la melhor. Intimidade, transmitida com tamanha fluidez,
poucos conseguem fazê-lo. É coração na ponta da caneta.
Cesar S. Farias
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