Ao final do mês de junho, Rio Grande celebra a data festiva do seu padroeiro, São Pedro e eu, filho desta terra, aproveito a oportunidade para presentear os leitores com "Anaíldes", conto-crônica extraído do meu primeiro livro (Utopias Papareias), que homenageava com crítica e bom humor a cidade mais antiga dos gaúchos. Para quem ainda não conhecia a minha produção literária pré "O Grande Pajé" eis aqui uma oportunidade ímpar de vasculhar os primeiros rabiscos deste despretensioso escritor.
Deixo-lhes, pois, com Anaíldes.Uma boa degustação literária à todos.
Praça Xavier Ferreira |
‘’Ao nos voltarmos para o próprio
passado, conviria começarmos com um piedoso tributo a nossos desconhecidos
ancestrais(ágrafos), que mediante um esforço inconcebivelmente árduo e engenhoso,
lograram êxito na criação de uma raça humana. Couberam a eles as descobertas e
invenções cruciais, como o instrumento, a semente , o animal doméstico e a
criação da agricultura. Criaram um instrumento maravilhoso, a linguagem, que
permitiu ao homem descobrir seu caráter humano e, finalmente, disfarçá-lo.
Lançaram os alicerces da civilização: sua vida econômica, política e social,
suas tradições artísticas, éticas e religiosas. Com efeito, nossos antepassados
‘selvagens’ ainda se acham muito próximos de nós, e não somente em nossa
capacidade de selvageria. “
Herbert J. Muller
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“Tetos de erva, paredes de pântano
nome de vila e
construção de aldeia,
quase coberta de
volante de areia
dos cômoros que
aqui crescem todo o ano:
Brisas do vento leste e minuano,
De moscas, pulgas,
bichos é bem cheia;
Não sei quem tanto
inseto aqui semeia
Para causar ás
gentes nojo e dano!
De pé um diminuto batalhão
De cavalo os
dragões mais esforçados,
De voluntários uma
legião
Dizem que há nos
campos muitos gados;
Esta é do Rio Grande a habitação
Onde purgando estou
os meus pecados
*Soneto de autor desconhecido,
publicado
em 1816, na cidade
de Lisboa, que retrata a
amarga vivência de seu
autor na Vila do Rio
Grande poucos anos
antes.
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A cidade de Rio Grande nasceu
brigando para conquistar seu ar, seu
lugar, sua glória. Está erguida sob o sangue da implantação da primeira
fortificação a demarcar o solo rio-grandense do castelhano; em 1737. O Forte
“Jesus-Maria-José”, depois de marchas e contramarchas, por fim, afirmou-se com
o brigadeiro José da Silva Paes.
Em 11 de dezembro de 1737, Silva
Paes transmitiu o governo do Rio Grande ao Mestre de Campo André Ribeiro
Coutinho o qual se manteve no cargo até 22 de dezembro de 1740.
Nascido em Lisboa em 1680,
Coutinho foi o segundo governador do Rio Grande, tendo participado da ocupação
oficial da margem sul do Canal do Rio Grande em fevereiro de 1737.
Numa carta á um amigo de Portugal,
datada de setembro de 1737, Coutinho relatou o cenário da ocupação lusitana na
atual cidade do Rio Grande. Foram os primórdios do povoamento cercado por
imensas dificuldades que foram minimizadas por Coutinho. Rio Grande e cercanias
são o cenário para o relato que exalta a produtividade agrícola da terra, a
presença de insetos no verão, de umidade e vento no inverno e da falta de tudo
para a vida cotidiana e para o luxo.
*Artigo publicado em 10/10/03 num encarte cultural do Jornal Agora
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Quando de sua visita a Rio Grande, o
Imperador D. Pedro II ficou hospedado no prédio atualmente localizado na Rua
Marechal Floriano nº 33. O proprietário era Eufrásio Lopes de Araújo, nascido
na Vila do Rio Grande de São Pedro em 01 de janeiro de 1814. Em 1846 Eufrásio
casou na cidade do Rio Grande com Maria Joana Vieira, nascida também em Rio
Grande em 1819.
O prédio da Rua Marechal Floriano
nº 33, que foi o Paço Imperial por alguns dias, concentrou parte da mobilização
que a sociedade local realizou saudando a permanência do Imperador na cidade do
Rio Grande. O parapeito de grades de ferro ainda está preservado como
testemunho de um espaço da cultura política local internacionalizada neste
período de guerra.(Guerra do Paraguai//1865-1870). A edificação se situa no
entorno histórico do Sobrado dos Azulejos, Hotel Paris, Centro Municipal de
Cultura e Praça Sete de Setembro,(área esta apontada por muitos historiadores
como o local de construção do Forte Jesus-Maria-José).
O prédio demarca um pouco do
imaginário do período Imperial da História do Brasil, com seus personagens e
estéticas culturais ligadas a Monarquia no contexto da Guerra do Paraguai.
*Artigo publicado em 26/09/03
num encarte cultural do Jornal
Agora.
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Graças a colaboração de 2
abnegados historiadores do sul do Estado, hoje sabe-se que o referido endereço
também foi cenário de outras histórias na segunda metade da década de 60, tendo
como locatária a Senhora Sidalva Laviaguerry Salomão, conhecida na boemia
rio-grandina como “Sissí”.
Por motivos ainda
ignorados, o fato permanece até hoje oculto dos registros oficiais presentes
nos arquivos da Biblioteca Rio-Grandense. Tudo o que sabe-se á respeito provém
de uma meticulosa pesquisa realizada em meados de 1995 pelo casal de
historiadores Adão Nataniel Fonseca e Tânia Sharlene Fonseca, conhecidos na
comunidade acadêmica como “Negro & Negra”. Após fotografarem todo o entorno
histórico localizado naquela zona da cidade, tiveram eles, por razões pessoais,
a atenção despertada para o referido prédio. À partir de então, não mediram
esforços para descobrirem o histórico completo do imóvel.
Os relatos transcritos á
seguir foram extraídos dos diversos depoimentos colhidos junto a pessoas que
direta ou indiretamente conheceram as paredes internas do “Cafôfu”,
estabelecimento noturno da Marechal Floriano, 33.
Como fonte de pesquisa foram
também utilizados alguns exemplares do
extinto jornal alternativo “Denúncia”, do saudoso escritor e jornalista
Renan Nogueira Pinto, o “Xinxa”.
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Cafôfu
“Os
luminosos de minha infância,
Ainda
são marinheiros
Saem
pela cidade inquieta,
Deslizam
por night clubs
Procuram
um duelo com outros olhos
Tão
inseguros... tão sedentos
por
um corpo qualquer
De
uma bela mulher.”
Discrição e prazer
são os
nossos pilares.
Sissi
F: 32323874
|
* Modelo de um cartão impresso em 1966
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.
Xinxa, desde os tempos de
UCPEL(Universidade Católica de Pelotas) sempre fora um polêmico e excluído.
Mesmo sem patrocínio ou apoio de colega algum, começou a distribuir pessoalmente,
sem qualquer ônus ao leitor, o seu jornal alternativo comprometido
exclusivamente com os fatos sigilosos ou pouco divulgados na mídia da cidade
Noiva do Mar. Foi ele o pioneiro na busca por informações mais detalhadas sobre
o histórico imóvel que abrigou o imperador em sua curta visita a Rio Grande no
século XVIII.
Para tal, o jornalista rastreou os
passos dos possíveis herdeiros do proprietário original da construção
tipicamente européia, Eufrásio Lopes de Araújo. Acabou posteriormente chegando
à uma rapariga que dizia-se ex- colega da tataraneta de Maria Joana Vieira, a
matriarca da família. Os seus relatos foram preciosíssimos para o
transcurso da pesquisa conduzida por
Xinxa, que antes de desaparecer misteriosamente em 1990, publicou muitas
poesias em seu “Denúncia.”
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High
Society
Mas que bonito o vestido
novo da madame
Deve ser mais um modelito da capital
Já reparaste no penteado
Aquele cara acompanhado é
casado
Aqueles dois ali sorrindo
amarelo
Só para sair no
“Peixeiro”(*)
No smoking gastei todo o meu dinheiro
Agora vou falar de novela
Agora vou falar do meu
time
Agora vou falar da bela
Agora vou dizer muitas
bobagens
Agora vou disfarçar coisa séria
Pois nada melhor que
mentir
Longe da miséria
A família do fulano já
foi para o SPA
Eu também já vou já
As senhoras de boa
plástica
As senhoras fazem regime
Um quilo de doces e uma
coca diet
Para disfarçar o crime
O colunista futurista
Ensaia sua pose de
artista
Ele toma sua Sprite
Tudo ao seu redor é light
É diet, é high
É high society
(*)Jornal
rio-grandino. (#)
Sidalva Laviaguerry Salomão, a
“Sissí”, quis abocanhar uma gorda fatia do mercado do sexo com seu discreto e
muito bem camuflado Cafôfu. Investia nas melhores e mais jovens meninas da
cidade, garantindo assim a preferência dos cinquentões, sessentões e setentões
que freqüentavam em massa a casa. Nomes de políticos, juristas e empresários
influentes no município deixaram as suas marcas no livro de presenças daquele
quase secreto inferninho, dançando nus, excitados e ébrios ao som de Ray
Coniff, Tony Bennett e Frank Sinatra
Fez parte do corpo funcional da
boate, por cerca de seis meses e meio, a dançarina “Sá”, uma pequena e roliça
bugra de olhar atrevido, aguda percepção e eloqüência verbal com os homens. Tal
mulher veio á protagonizar uma das histórias mais intrigantes que a saga do
povo gaúcho já escreveu. Foi criada até os dezoito anos de idade pelo avô,
Lourival Simplício de Almeida Quaresma, o ‘’Xucro”, produtor rural de muito
poucas palavras e avesso à relações com parentes ou colegas.
Seu nome chegou a ser mencionado em
alguns periódicos uruguaios e argentinos, contudo foi abafado até mesmo das
conversações populares em sua terra natal.
Bastaram apenas alguns meses no ramo
para Anaíldes Donato Quaresma perceber o
quanto realmente conseguia envolver homens em sua teia.
Aos dezenove anos casou-se com Ilton
Freitas Kupinski, o “Bolinha”, morador do distrito do Povo Novo e proprietário
de um açougue que receptava carne proveniente de abigeato.
Com 20 anos, sem que Bolinha sequer
desconfiasse, tramou a sua fuga com o vizinho ao lado, com quem há muito tempo
já vinha “curtindo”, fixando-se na periferia de Rio Grande. Segundo testemunhas
oculares do drama, Ilton chorou como uma criança angustiada ao finalmente
constatar que fora traído.
Sabe-se que pouco mais de 2 meses acabou
durando o apaixonado caso amoroso.
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A sua vida na cidade foi
pontilhada de enganos e desenganos. Perambulou pela indústria do peixe antes de
optar pelo trabalho noturno com Sissí. Tinha fibra e ambição para almejar
degraus a mais em sua trajetória pessoal. Interessou-se pela política e traçou
metas para adentrar nos bastidores do poder, Foi estabelecendo intercâmbios com
líderes comunitários em Associações de Bairros, intermediando as reivindicações
deles com o Executivo Municipal.
Molhes da Barra |
Continua na próxima postagem.
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