Música e literatura, é fato, andam de mãos dadas no
Brasil, configurando-se esta, uma pareceria que se confunde à formação de nossa
identidade peculiar, como nação. Autores clássicos como Machado de Assis, Lima
Barreto e Aloísio de Azevedo já flertavam com as partituras, nem que fosse para
retratarem superficialmente o que sentiam ou pensavam seres tão atípicos quanto
os músicos. Com o passar dos séculos, cronistas e críticos musicais
debruçaram-se sobre esse inesgotável tema, produzindo impecáveis obras que
retrataram e esmiuçaram a Música Popular Brasileira, catalogando estilos,
períodos e tendências. É possível, graças a estes, estudarmos com ampla
abrangência teórica, o que de fato aconteceu, quem foi e fez determinado
compositor ou ainda, onde germinou um específico gênero nacional.
De
uns tempos pra cá, segundo percebo, a hegemonia dos estudiosos e pesquisadores
começou a ser ameaçada ou, na melhor das hipóteses, compartilhada com a
produção literária dos próprios músicos, que resolveram, eles próprios,
contarem as suas próprias tramas. Não citarei nomes para evitar ser
tendencioso, mas são vários os sambistas, roqueiros, rapers e repentistas que
resolveram investir em suas idéias e relatos escritos. É a música vista pelo
lado de dentro, definida por quem a faz. Sai ganhando, principalmente, o
admirador sincero dessa arte, seja ele hábil ou não em algum instrumento.
Inserindo-me nesse contexto, através da presente resenha, trago à tona
uma obra que, recentemente lançada, mergulha nas raízes do samba produzido no
sul do Brasil, mais precisamente na capital dos gaúchos, Porto Alegre. Em seu
livro “Memórias”, Geraldo do Cavaco, nome respeitado pela “velha guarda” do
samba, conta o que viu, ouviu e sentiu em quase seis décadas de batucadas, a
começar pela primeira experiência marcante com a música:
“Na
vila, me apareceu um cara tocando bandolim, de noite e sem luz. Todos nós
corremos pra perto daquele som, no escuro. Achávamos bonito, lindo, aquilo
mexia comigo. O cara era chamado de canhoto e era bom no bandolim. Uma vez por
semana o Canhoto aparecia com seu bandolim e mais um pandeiro. Ficávamos
curtindo aquele som.”
Não é exagero dizer que as recordações
de Geraldo são as próprias recordações do samba porto-alegrense do final da
década de sessenta em diante, com grande ênfase na fundação da agremiação
carnavalesca Unidos da Restinga (que mais tarde tornaria-se na premiada e
reconhecida Estado Maior da Restinga), na qual teve ativa participação. O autor
é gente do povo, simples, sem avançados recursos lingüístico-intelecutais, mas
que transmite com clareza as suas impressões de vida no vilarejo:
“Mas como, se lá era varzeio, não tinha esgoto e o terreno
era plano e enchia d’água da chuva? Aí é que aparece a gana de um povo. Eles se
unem e se ajudam e com alguns conhecimentos eles vão cavando ali, vão fazendo
cisternas, pontes de madeiras, derrubando árvores, vão abrindo caminhos. Os
pobres e os escravos conseguiram viver e sobreviver em lugares nunca habitados
por um ser humano, a não ser os índios. Formaram vilas e foram vivendo bem.
Acostumaram-se com a diversidade do lugar.”
A
leitura flui agradável e encontrará eco, principalmente, no coração dos
sambistas e da gente batalhadora das favelas e periferias, que sabem o que é
viver com pouco, precariamente, esquecida das políticas governamentais. De
fato, como não poderia deixar de ser, é grande a identificação do livro com a
vida no morro, onde mocinhos e bandidos apenas mudam de sotaque, mas desempenham basicamente os mesmíssimos
papéis em qualquer aglomerado urbano do país. Períodos históricos como a
segunda guerra mundial e a ditadura militar encontram-se contempladas nessa
narrativa que apresenta o ponto de vista não dos historiadores, mas do povo
humilde que sentiu os efeitos desses conflitos em sua já sofrida rotina.
É com
grande mágoa que Geraldo relata o episódio em que, numa manobra, segundo ele,
típica do regime militar, ditatorial, o presidente da primeira Escola de Samba
do bairro, a Unidos da Restinga, é afastado de sua posição por funcionários da
Prefeitura Municipal. Em seu lugar foi colocado outro, com o aval e confiança
dos donos do poder. Isso aconteceu, para espanto e surpresa do músico, logo
após o primeiro título conquistado, ainda na divisão de acesso ao grupo principal. Essa decepção,
aliás, volta e meia, em vários momentos, vêm pincelar as lembranças deste
folião que, em dupla com o seu cavaco, muito contribuiu para a afirmação dessa
comunidade entre as grandes do carnaval local.
“Passamos
pro primeiro grupo, mas ficamos sem glória e ficou difícil para nos acostumar
com os novos senhores, eles faziam questão de apresentar os novos contratados e
vinham todos para o meio da quadra a rodear e iluminar os novos contratados.
Nós, o povo, éramos os pobres de Paris, sem direito a nada.”
Crítica, irreverência, paixão, decepção e religiosidade são os
ingredientes que prendem a atenção do leitor, cativado pela espontaneidade do
autor, que se expressa objetivamente, revelando-se um hábil cronista da
realidade social em que vive. Pra quem ainda acredita que na favela só mora
assaltante e traficante, Geraldo revela, sem acanhamento, toda a sua
integridade, mesmo em meio a tentadoras oportunidades de lucro fácil. Conviver
com o crime, não necessariamente tornará alguém um criminoso e isso comprova-se
apenas com exemplos práticos como esse, proporcionado por um escritor
ambientado na periferia de uma grande cidade. O seu testemunho de vida
convida-nos, em nome da literatura, a despir-nos de preconceitos sociais que
carregamos sem sabermos de fato o que é a pobreza.
O
instrumentista mostra-nos, no entanto, que nem só de miséria, privações e
angústias vivem os favelados. Romance, humor e, principalmente, a música, são
os responsáveis por atenuarem os efeitos degradantes da má distribuição de
renda e disparidade entre as classes.
“Uma
vez eu escrevi pra ela coisas, versos, poesia: Quisera não ter te conhecido,
pois isto me tornou um prisioneiro em minha solidão... Meus pensamentos voam em
tua direção... Eu me sentia, até te conhecer, livre...”
A
trilha sonora que embala, do início ao fim, essa autobiografia do escritor e
músico porto-alegrense Geraldo da Neves é perceptivelmente a do samba. Samba
bom, das antigas, com sentimento e autenticidade. Cheio de entusiasmo e
nostalgia o autor relembra o auge e declínio dos principais conjuntos em que
tocou, alguns deles com reconhecido prestígio na capital gaúcha como Candeias,
Velha Guarda do Samba Puro e Banda Porto.
Nitidamente, temos a sensação de estarmos conversando informalmente com
um músico, já que a sua narrativa desenvolve-se inteiramente na primeira
pessoa, fazendo-nos adentrar em fatos marcantes da sua vida pessoal. À medida
que, cronologicamente, a história encaminha-se para o final, sentimo-nos
íntimos e confidentes desse sambista remanescente do seu tempo. Álcool, brigas,
contravenções, pitadas de sexo, misticismo, fé, tudo isso e mais aquilo que faz
parte da vida de tantos pais de família que com suor batalham o pão de cada
dia, seja sentando tijolo, capinando pátio, dirigindo ônibus ou pintando
paredes. Considero-me um privilegiado por ter encontrado, no bairro que adotei
em meu coração, um exemplo de artista tão eclético, (já ia esquecendo, Geraldo
também pinta quadros nas horas vagas de aposentado) que se dispôs a
compartilhar com as gerações posteriores, ingredientes que moldam o seu
pensamento e ditaram á ele um modelo de conduta.
Trata-se, enfim, de uma obra que se juntará, certamente, aos manuais e
tratados que definem, se é que isso é possível, o samba em palavras. Já rimavam
Vadico e Noel Rosa: “Batuque é um privilégio. Ninguém aprende samba no
colégio.” Podemos, sim, esmiuçá-lo em versos, crônicas ou exemplos de vida como
esse, que raramente oferecem-se assim, sem reservas. Os estudantes sinceros da
Música Popular Brasileira agradecem o que está lá no sumário:
“
O motivo porque passei a escrever sobre minha existência foi pra relatar as
lembranças de minha vida aos amigos, coisas boas e ruins que vivenciei ao longo
dos anos e que gostaria de deixar registrado.”
Cesar
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Um comentário:
Pela resenha parece ser muito interessante.
Abraço
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