Os próximos parágrafos tratam-se de uma raridade. Foram extraídos do meu 1º livro publicado, Utopias Papareias de 2007. Pra quem me conhece tão somente como o consagrado escritor de "O Grande Pajé" vale a pena conferir como tudo começou...
REVOLUÇÃO RÉSTIA
"Descendo de uma raça que se distinguiu, em todos os tempos,
pelo seu temperamento imaginativo e facilmente excitável. E desde a mais tenra
infância dei prova de ter herdado por completo o caráter da família. À medida
que me adiantava em anos, mais fortemente se desenvolvia ele, tornando-se, por
muitas razões, causa de sérias inquietações para os meus amigos e de positivo
dano para mim mesmo. Tornei-me voluntarioso, afeto aos mais extravagantes
caprichos e presa da mais indomáveis paixões. Espíritos fracos e afetados de
enfermidades constitucionais da mesma natureza da que me atormentava, muito
pouco podiam fazer meus pais para deter as tendências más que me distinguiam.
Alguns esforços fracos e mal dirigidos resultavam em completo fracasso da parte
deles, e, sem dúvida, em completo triunfo da minha. A partir de então, minha
voz era lei dentro de casa e, numa idade em que poucas crianças deixaram as
suas andadeiras, fui abandonado ao meu próprio arbítrio, e tornei-me em tudo,
menos de nome, o senhor de minhas próprias ações.”
A auto
análise acima transcrita, extraída do livro “Histórias Extraordinárias” de
Edgar Allan Poe, descreve fiel e minuciosamente a infância do célebre
personagem da história alternativa do Rio Grande do Sul, Airton Amarante
Clêncio Kurts de Braz Teixeira, natural de São José do Norte, um pequeno
município economicamente sustentado pela pesca e o cultivo da cebola.
Muitos
detalhes da sua vida ainda hoje permanecem em total obscuridade, entre eles o
meio pelo qual obtinha ele a sua subsistência. Sempre que indagado á respeito,
limitava-se a responder:
- Eu vivo de rendas.
A
resposta, tão vaga e abstrata, decepcionava profundamente os “repórteres
populares” e estimulava a imaginação de alguns:
- Mas u Texêra afinal, faz u quê da vida?
- Olha, u Tuco, filho da Nadir, disse qui êli mexi cum
droga.
- Aaaaaah... Só assim mesmo pra si mantê du jeito qui êli
vive. Bem qui eu sempri achei cum cara di maconhêro uns cara qui vem na casa
dêli as quarta di tardi, pur volta das duas i meia e vão imbora só lá pelas
oito i dez... oito i quinze mais ou menos...
- Mas isso aí já é ôtra história... A Kika, sogra do Vládi,
falo qui pareci qui êli mexi cum as coisa du capeta i qui até judiaria cus
bicho êlis fazim lá dentro... Levam coelho, pato, pombo i até filhotinho di
cachorro pra judiá dus animal.
- A genti trabalha, trabalha i trabalha, mas nunca consegue
comprá as coisa qui a gênti qué, mas um excomungado, sem vergonha, vagabundo
dessis tem tudo du bom i du melhor. Como é que pode?
- Mas dêxa qui u qui é dêli tá guardado... Qualquer hora
apagam êli... Ô cumadre! Esse chimarrão vem ou não vem?
- Calma cumpadre, to isquentando bem a água... Essis dia eu
fui tomá chimarrão cum a Norminha e tu acridita qui a mulhé mi serviu cum água
fria? Não é querê falá mas eu não suporto chimarrão frio...
- Ah, nem eu.
- Mas não querendo interrompê o assunto di vocês, como é qui
essi tal di Texêra faz pra discontá a aposentadoria? Será qui êli paga u
carnezinho aquele?
- Olha, um infeliz dessis, si ficá entrevado im cima duma
cama ninguém vai querê cuidá dêli. É todo metido a Doutor, a magnata, mas na
hora du sufôcu vai é apodrecê numa cama.
- Shhh, shhh! Ali vem êli... Opa! Grandi Texerão! Cumé qui
tá neguinhô? Cumé qui vai essa força?
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Alheio á
todas as mesquinharias da plebe e confinado a maior parte do tempo em seu
sobrado cinza azulejado, Teixeira, descendente de nobres germânicos, conservava
ainda traços de uma educação erudita, nos moldes tipicamente europeus. Entre os
seus hábitos preferidos estavam as caminhadas vespertinas das segundas, quintas
e sextas-feiras, o chá diariamente tomado ás dezoito horas quinze minutos e
trinta segundos, a degustação de iguarias da culinária sueca trazidas nas
noites de sábado por um mercador de sorriso fácil, mais cínico que um gato ao
deixar-se afagar apenas para arranhar a vítima de perto.
Possuía
uma extensa biblioteca com muitos volumes em latim, entre os quais
destacavam-se: “Decamerão” de Giovanni Boccacio, “O Príncipe”, de Nicolau
Maquiavel e “Eneida” de Virgílio. Contudo, descobriu-se posteriormente que tal
língua lhe era tão familiar quanto o idioma hebraico o é para os favelados da Baixada Fluminense. Os
títulos que lhe faziam a cabeça, na verdade, eram “A felicidade depende de
você”, “A arte e a técnica do beijo”, “Bola de sebo”, “Memórias de Gertrudes, a
devassa” e os infantis “O jacaré assustado”, “O capinxo feliz” e “O elefante
velho”. Seu livro de cabeceira era “O Vampiro”, de Britney Snipes.
Era, no
entanto em sua videoteca que materializavam-se os traços mais intrigantes em
seu caráter. Produções cinematográficas como: “Capitão Maclau’d na ilha das
ninfas selvagens”, “A festa do cabide”, partes I e II, “Orgias no cemitério”,
“Luxúria, o filme” e “Sacanagens sem limites”, contradiziam toda a sapiência
que supostamente adquirira através da cultura livresca.
Certa vez
a rapariga mais rodada da vila resolveu conhecer os CD’s de Bossa Nova que o
introspectivo e reservado intelectual afirmava ter. Como era uma sacana,
imaginou tratar-se apenas de mais uma aventura erótica, contudo, confessou mais
tarde que, pela 1ª vez em sua vida, corou as faces diante de propostas tão
absurdas pronunciadas ao pé do seu ouvido. Segundo ela, Calígula pareceria um
colegial inexperiente em comparação com tal homem.
Várias tentativas fez ele buscando
abrandar os seus instintos, contudo a televisão, com sua programação
essencialmente erótica, encarregou-se de minar as expectativas.
Apesar
disso, tal fraqueza pessoal não impedia Teixeira de figurar entre as 10 pessoas
menos ruinzinhas do povoado. A maior parte das asserções que pairavam a
respeito dele eram inverídicas e caluniosas. Provavelmente a sua conduta,
bastante reservada, era o estopim da ira popular. Incomodava-os o simples fato
daquele culto cidadão não tomar parte nas fofocas habituais, confinando-se no
conforto do seu lar enquanto eventos tradicionais como A Quermesse do Padre
Tito (de 13 a 16 de maio), o aniversário de Vó Zulma (4 de setembro) e a Festa
do Engenho Roçado (no 2º domingo de novembro) aconteciam num frenesi total,
regado á álcool, sambanejo e muita conversa fiada.
Em São
José do Norte existiam também espaços alternativos para a galera jovem,
principalmente à moçada do rap. Alguns deles protagonizavam a cada final-de-semana
pancadarias bárbaras que tingiam de sangue as calçadas vizinhas ao ‘Black
Nigger Club”. Sob a batuta do conceituado D.J. Cavalo e seu enteado, Mano Piva,
a boate nutria com bastante peso todos aqueles ouvidos ávidos por hip-hop.
Galeras da vizinha cidade histórica de Rio Grande, onde situa-se entre tantas
preciosidades a maior praia do mundo em extensão (Praia do Cassino), uma das
mais ousadas obras arquitetônicas destinadas à navegação (Molhes da Barra), a
agremiação futebolística mais antiga do país (S.C. Rio Grande), o porto
marítimo do Mercosul e a reserva ecológica do Taim, vinham balançar o esqueleto
transportadas pelas lanchas de transporte coletivo hidroviário que realizavam a
travessia do Canal Miguel da Cunha na Lagoa do Patos, em aproximadamente trinta
minutos. Até mesmo ali, no suave flutuar das embarcações, gangs rivais
degladiavam-se sem qualquer temor ao misterioso território de Netuno (conforme
reza a mitologia grega). Por motivos banais como um simples esbarrar ocasional
dentro do salão, socos, pontapés, navalhaços e tiros decidiam quem eram os mais
porradas da área. Os confrontos faziam parte da adrenalina da festa e tal como
cães raivosos, rosnavam ao simples olhar de um desconhecido.
- Qualé meu? Vais incará muito? Eu tenho uma coisa aqui na
cintura pra ti...
- Si eu tivéssi medo di faca eu não cumia churrasco...
- Ah é? Aí Duda, dá u tóqui prus guri qui tem uma bronca pra
nóis.
- Só... Vâmo rebentá essi otário.
As rixas
envolviam elementos de bairros distintos, preocupados única e exclusivamente em
confirmar a supremacia física e o status de valentões sanguinários. Alguns, no retorno a seus territórios,
cambaleando sob o efeito de substâncias impróprias e ás vezes retalhados e
cheios de hematomas no corpo, ofereciam um nada agradável espetáculo aos olhos
dos demais passageiros. Insaciados ainda por arruaça infernizavam a vida do
cobrador de ônibus que levantara ás 4h e 30 minutos do domingo, privando-se de
horas a mais no aconchegante calor do lar, onde mulher e filhos dormiam ainda
como cutias á espera do belo sol matutino para despertarem.
- Aí galera, olha só... sênti só essa batida: Si essa pôrra
não virá, olê, olê, olá/ Eu chego lá ah.
- Agora assim ó: Hu, hu, hu!/ U cobrador é pau nu cu! Vâmo
lá, vâmo lá gurizada!
- HU, HU, HU! U COBRADOR É PAU NU CU!
- CRÁS!
PÓFT! BUFT! PLÁFT! Vâmo arrebentá cum essa merda aqui!
- Heeeeeeeeeê, huuuuuuuuuu! Não dá nada gurizês... Tâmo
chegando na área...
- É isso aí motora, não olha muito meu... Dale pau nessa
carroça véia.
- É u siguinti... a gênti é um problema social/ Não mi leva
a mal/ Nós sômu marginal.... Vâmo detoná êssi sistema fudido... Heeeeeeeeê,
huuuuuuuuuuu! Vâmo azuerá! Si tu chupá bala vâmo ti mandá.
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Em suas
raras madrugadas de boemia Teixeira não trocava por nada nesse mundo o Bar Tok,
onde ás sextas-feiras o renomado intérprete e instrumentista local, Lázaro
Bigorna, costumava animar o ambiente acompanhado por seu grupo Rebentos da Lua,
desfilando verdadeiros clássicos do tempo das serestas. Nomes como o de Ataulfo
Alves, Lupicínio Rodrigues e Orlando Silva eram presenças certas no repertório
do conjunto, mesclando-se ás vezes a composições da atualidade com forte apelo
comercial. Se essa atuação eclética por um lado garantia-lhes o contrato e os
aplausos da massa, por outro denegria interiormente a consciência de cada
componente. Possuía, cada uma deles, uma refinada bagagem musical, sentindo-se
profundamente constrangidos ao acompanharem com seus valorosos instrumentos
versos nada profundos como:
“Vamos sambar a,a, a,a,a,a,
Traga mulher, é, é, é, é, é,é
Estou
aqui, i, i, i, i,i, i,
No tororó,
ó, ó, ó, ó, ó, ó, ó
Vem de
buzú, u, u, u, u, u, u. u”
Ou:
“Todo mundo de olho, de olho, de olho,
de olho, de olho
Na mina
do cara, do cara, do cara, do cara, do cara
Lázaro certa vez
confidenciou a um amigo íntimo que sentia-se como uma meretriz, adequando
mercenariamente o estilo do conjunto às exigências daquele “bando de
simplórios” que iam escutar-lhes e consumirem bebidas alcoólicas, dando lucro
ao proprietário do estabelecimento. Como justificativa para a sua conduta usava
as muitas despesas domésticas em que estava enredado, entre as quais destacavam-se:
o sustento do genro, da filha e dos dois netos que moravam nos fundos da sua
casa e a pensão que desembolsava mensalmente para o Tio Acílio, que
judicialmente, baseando-se nos princípios legais, resolveu sugar algumas
cédulas do sobrinho após estudar minuciosamente o Código de Processo Civil
(CPC).
Art. 396- De
acordo com prescrito neste capítulo podem os parentes exigir uns dos
Outros os alimentos de que
necessitem para subsistir.
Art. 397- O
direito á prestação de alimentos é recíproco entre pais e filhos e
extensivo a todos os
ascendentes recaindo a obrigação nos mais próximos
em grau, uns em falta de
outros.
Art. 398- Na
falta dos ascendentes cabe a obrigação aos descendentes, guardada a
ordem de sucessão e faltando estes,
aos irmão, assim germanos como
unilaterais.
Art. 399- São
devidos os alimentos quando o parente que os pretende, não tem
bens, nem pode prover, pelo
seu trabalho, a própria mantença, e o de
quem se reclamam, pode
fornecê-los, sem desfalque do necessário ao
seu sustento.
Acílio
teve ganho de causa decretada pela Exma. Sra. Dra. Juíza de Direito da Vara de
Família da Comarca de São José do Norte, Angelitta Brum.
Aos gastos
já mencionados juntavam-se ainda as despesas domésticas, nas quais a sua
esbanjada mulher, Selminha, contribuía decisivamente, desperdiçando água, luz,
telefone, gêneros alimentícios e produtos de limpeza.
Mesmo com
tantas bocas agarradas ás suas tetas, Lázaro conseguia manter-se razoavelmente
bem, o que gerava nos companheiros uma certa perplexidade. O cachê que ganhavam
passava primeiramente pelas mãos do líder fundador do conjunto, que após
trancafiar-se numa saleta aos fundos do bar reaparecia com os pequenos maços de
dinheiro já criteriosamente separados para o pagamento. O único que atreveu-se
a contestar tal método foi o ex-integrante Ênio do Cavaco, um velho
desconfiado, azedo e perfeccionista que durou apenas duas semanas e meia no
conjunto, sendo banido após acirrada discussão na qual, servindo-se de
palavrões, exigiu uma participação maior no faturamento líquido dos shows.
(Segue)
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