Aos domingos pela manhã um torneio de futebol de 7 na Vila
Barranco costumava agitar os ânimos dos munícipes. Todas aquelas jogadas
ríspidas e desleais onde abundavam cotovelaços, beliscões e mata-cobras excitavam
os torcedores sempre dispostos a colocarem lenha na fogueira:
- É êssi! É êssi! Dali no meio dêli qui êssi tá merecendo!
- Tem qui chegá junto Vadinhô! Qualé?! Vais tirá u pezinho
fora?
Até mesmo
nas manhãs frias do inverno gaúcho os atletas não se privavam de suas
atividades futebolísticas, amenizando a baixa temperatura com doses puras da
cachaça Vulcano, a mais comercializada e barata da região. Sob o efeito do
álcool e outros aditivos, muitos deles transformavam-se em verdadeiros tanques
de combate prontos á derrubar e amassar no chão qualquer adversário,
ocasionando, não raras vezes, fraturas expostas nos membros inferiores das
vítimas.
Cléverson,
um descendente de índios caingangues e atacante do Sem Frescura F. C. declarou-se
certa vez abismado com a relação do homem branco com a poderosa planta de seus
ancestrais pajés. O bugre confessou que dava os seus “peguinhas”, contudo
desaprovava o uso descriterioso que seus amigos civilizados faziam do “Cachimbo
da Paz”.
O campo ficava
exatamente nos fundos do pátio de Teixeira, que confessava-se irritado com toda
aquela gritaria e foguetórios agredindo-lhe os ouvidos. Sua erudição fazia-o
odiar todas essas manifestações populares. Sentia-se na verdade como um Lorde,
um Gentlemam no meio daqueles simplórios. Apesar da modesta escolaridade
(cursara até a 5ª séria do 1º grau) era um homem dado à leitura e aos bons hábitos
que, ao menos externamente, tornam o homo sapiens um ser civilizado. Conseguia
manter a classe nas mais conturbadas situações que a convivência com os
nortenses lhe impunham. Nas discussões, falava claro, pausadamente, olhando
sempre profundamente nos olhos do oponente, defendendo as suas idéias
centro-esquerdistas com a convicção de um monarca, mesclando nelas algumas
visões distorcidas da realidade social. Em certas ocasiões adotava posturas
extremamente radicais para demonstras sua indiferença frente a costumes
arcaicos que presenciava.
Quando tinha
apenas cinco anos de idade os seus pais descobriram a aversão que ele sentia
por personagens fictícios, quando na festa da Chegada do Papai Noel organizada
pela Associação de Senhoras do Crochê (ASC), desferiu um tapa certeiro na face
esquerda do bom velhinho, que tentou depositar um ósculo na sua testa. No ano
seguinte chutou com uma força descomunal para a sua idade as canelas de uma
funcionária do Varejo Comprão caracterizada como coelhinha da páscoa, que
dançava meio constrangida a tradicional modinha que tocava nos auto-falantes
instalados nos quatro cantos do prédio:
“Coelinho da Páscoa o que trazes pra mim
Um ovo, dois ovos, três ovos assim.”
Shirley
pediu ás contas logo que saiu do seguro previdenciário, pois não agüentava mais
os seu patrão, Anacleto Braga, que entre tantos empregados à disposição
escolhia sempre ela para encarnar os personagens das festas criadas pelo
comércio como a própria páscoa, o natal, o dia das crianças, o dia dos
namorados e outras apelações do calendário. Segundo a moça, que era uma pessoa
bastante introvertida, as imposições tornaram-se insuportáveis. Até mesmo em
dias ensolarados, de extremo calor, a ordem expressa era vestir a fantasia da
vez e requebrar-se, sempre sob a ameaça do chefe. Felizmente, logo que ele, ainda meio
perplexo, deu baixa em sua carteira profissional, conseguiu ela uma vaga na
Loja da Dinda, estabelecimento bem mais comprometido com a saúde psicológica
dos funcionários.
- Tu já sabia qui a Shirley saiu du imprego qui ela tava?
- Saiu? Já fazia uns seis anos e ... 4 mês qui ela tava
nele... Aquela sempre foi batalhadora... Em compensação a irmã dela...
- É mesmo Ruth, qui guria malandra! Gosta muito é di si socá
na casa dus vizinho. Já vi ela entrá im todas as casa aqui da quadra.
- Qui horror! Em vez di í fazê ficha nas loja...
- Lívia, terça-feira passada, di noiti, eu vi u teu marido...
Fazia tanto tempo qui eu não via êli... Como tá magro... Só conheci êli pur
causa du boné azul cum u brasão bordado im amarelo formando u leme dum barco
cuma âncora no meio, bordada im
vermelho. Aliás, ondi êli comprô aquêli boné? Eu quiria dá um pru meu
afilhado... Aaah, também reconheci êli pur causa dus tênis branco cum duas
listra preta du lado i uma bola di futibol desenhada im cada pé. Eu vi qui a du
lado esquerdo já tava meio desbotada... Foi aí qui eu mi dei di conta qui era u
Élber.
- Ah é? I êli ti viu?
- Acho qui não. Êli tava tão distraído conversando cuma moça
qui tava di costas... Tavam ali perto du Quartel lá pelas 9:17 da noite...
- Ah sim, eu mi lembro. A moça era eu.
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Teixeira sabia que aquela cidade precisava de uma sacudida
muito forte para deixar de ser uma incubadora de tolices. Os interesses
mesquinhos dos políticos irritavam-no bastante, sendo que era daquele município
o infeliz título de Cidade Nepotista. Ninguém fazia nada de concreto para mudar
o panorama. Lamentações não faltavam, contudo, tal como um cão exibido que
ladra apenas estando protegido em seu pátio, não enfrentavam o inimigo frente a
frente.
Foi nesse
clima cheio de farsas, hipocrisias, bajulações e submissão que eclodiu a
revolta mais significativa da história contemporânea do povo gaúcho. Liderados
por Airton Amarante Clêncio Kurts de Braz Teixeira, os cerca de 11 rebeldes
recrutados nas mais diversas facções da sociedade nortense azucrinaram a vida
do demagogo prefeito Adinelson Bulhões, eleito por dois mandatos consecutivos,
sempre no 1º turno das eleições que disputara contra a oposição, que
apresentava-se essencialmente fragmentada e sem qualquer concreto poder de
reação. “Adi”, como era conhecido, auto-definia-se como um homem de origem
humilde e conhecedor dos mocós e quebradas onde habitava o eleitorado, no
entanto, contra-cheques e extratos bancários de décadas atrás sugeriam uma
tranqüila situação financeira na família Bulhões já há algumas gerações. Seu
pai fora um dos maiores proprietários de barcos pesqueiros da região, atividade
que, distorcidamente, serviu de alavanca para as suas campanhas, nas quais
proclamava-se “Adi Pescador”.
Qualquer
minuciosa investigação em suas 2 gestões
na Prefeitura apontariam fatalmente para diversas improbidades administrativas,
motivo óbvio para um processo de cassação de mandato. Um abaixo assinado
organizado pelos oposicionistas do PC (Partido do Contra) correu de mão em mão
pelos becos, favelas e cortiços da estreita cidade litorânea. Infelizmente a
omissão acabou superando o inicial entusiasmo dos idealizadores. Apenas 19
almas vivas tiveram a coragem suficiente para assinarem sem medo das
represálias aquele importante documento de protesto que sugeria a instauração
de uma Comissão Parlamentar de Inquérito para apurar as irregularidades na
construção dos banheiros destinados aos membros do Executivo Municipal, uma
velha reivindicação que segundo o próprio prefeito não mais deveria esperar.
Segundo ele “fazer as necessidades” era um direito básico daqueles que
administram. As instalações sanitárias, até então, eram ainda arcaicas para uma
década já informatizada, funcionando no método dos “cabugos”, onde todo o
material evacuado pelos aparelhos digestivos dos funcionários era despejado em
tonéis (os cabugos propriamente ditos) ficando à espera dos cabungueiros, que
faziam a coleta de 2 em 2 dias, exceto nos sábados, domingos e feriados. A
obra, no entanto, tornou-se superfaturada, sem qualquer transparente prestação
de contas à comunidade, que só teve conhecimento do rombo aberto nos cofres
públicos através do jornal alternativo “A Pilha”, semanário editado por Mônica
Aldrighi, uma das ativas militantes da Brigada de Libertação Nortense.
A
BLN nasceu do descontentamento de alguns pensadores locais com a política
adotada por Adinelson, que tão logo foi informado por um caguete ligado ás
bases do movimento rebelde convocou a Guarda Municipal para um exercício de
prontidão. O QG dos rebeldes inicialmente situou-se nos fundos da Tabacaria do
Zezé, contudo o próprio proprietário do estabelecimento e pai de Gelsinho, foi
quem deu de bandeja pro prefeito a rapaziada. Por esse motivo foram obrigados a
transferir a sede para a residência de Teixeira, local bem mais amplo, discreto
e melhor adaptado às necessidades de um grupo clandestino.
Zezé, não satisfeito com sua 1ª caguetagem tentou ainda por
diversas vezes rastrear os passos do filho nas noites de reunião, no entanto o
rapaz sempre conseguia despistá-lo na zona de meretrício ou bocas de fumo,
lugares que o seu puritanismo exterior fazia-o isolar. Sabia de cor cerca de
1.500 versículos da Bíblia, no entanto o seu coração era mais duro que granizo
bruto. Quis sem sucesso incutir em Gelsinho a sua mentalidade retrógrada, porém
o rapaz acabou conhecendo algo que influenciou-o decisiva e ideologicamente: O
rock’n´roll.
(Segue)
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