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segunda-feira, 10 de maio de 2021

Namoro de carnaval- Capítulo I




              Num baile de carnaval, e disso bem sabem os que são foliões, tudo pode    acontecer pra quem tá solteiro. A coisa é direta, de pele, na base da atração. Às vezes nem se perguntam os nomes. Apenas bebem,  bailam juntos e se beijam. O amor de carnaval pode ser fugaz e passageiro. Nunca mais encontram-se o pierrô e a colombina. Outras vezes, até tentam sair junto de novo, mas parece que fica faltando algo, nem assunto tem.  Por fim, temos aqueles que prolongam por mais algum tempo algo, chegam a viverem juntos, mas na vida real,  sem tantos impulsos da paixão,  nada de chope, confete ou serpentina, descobrem que não possuem tantas coisas assim em comum. E é justamente nessa última categoria que enquadra-se o casal que passo-lhes à descortinar um pouco a vida, nos parágrafos que abaixo seguem e que parte da intimidade eu começo exatamente aqui a narrar. 


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             A Edna era de família abastada, com posses, tradicional na sociedade local. Formara-se em Arquitetura pela UFPEL, em 2008, montando um ano após, em parceria com dois amigos de curso, escritório de reconhecido prestígio naquela região do Estado. Estava acostumada a ler best sellers, narrativas das mais diversas e tradicionais fontes.  Shakespeare, Graciliano Ramos, Dan Brown, Rachel de Queiroz. Era culta. Gostava de cinema, ia ao teatro de vez em quando. Ele...
            Bom... já que é necessário seguir em frente, não era alguém que fisicamente impressionasse muito. Para os padrões de beleza convencionais, digamos que era um pouco esquisitinho, talvez.  Mulato magro mas barrigudo. Moreno de pele tostada , curtida do sol, mas com olhos claros, acesos, sugestivos. Fez com ela, naquela primeira noite carnavalesca, o que outros já tinham feito, chegado perto, mas não daquela maneira. Afoita. Selvagem. Urgente.

                  -- Pláft! Pláft! Pláft! 


            Explodiram assim, em sua nádega esquerda, as bofetadas que, ao menos pra ela, surpreendentemente, desferiu- lhe o cara, já na primeira noite. Soube, porém, recompor-se e enfrentou com firmeza o seu ímpeto violento. Ele bateu forte, como se tivesse, de fato, chicoteando uma égua que merecesse castigo. A reação dela foi firme na ocasião.

                    -- Aah não! Assim não! Não gosto que me batam.

            Uma outra vez, permitam-me acrescentar, finalizando esse assunto, ele se apresentou pro ato, pro chamego, vestido de cowboy americano, acreditem ou não vocês, de botas, com espora e tudo. Seus olhos faiscavam um desprezo machista, maior do que o habitual. Desejava-a, e era só isso. Aconteceu, ironia do destino ou não, quando comemoravam o segundo mês juntos, depois do churrasco que ele assou pros amigos.  Quis subjugá-la de uma maneira mais autoritária naquele quartinho de motel. Era-lhe, pelo visto, necessário dar à ela uma lição, castigá-la pela sua condição inferior, de vaca, de cadela, de égua. Quando Edna o viu saindo do banheiro, daquele jeito, patético, assustador talvez, já foi argumentando logo a sua opinião:

-- Mas o que é isso??? Tira isso por favor... Que horror... Não quero se montada desse jeito.

            É importante amenizar. Foram só essas duas vezes que ele se comportou meio descontrolado, dominador, sadista. Aconteceram porque ele tomou todas, encheu demais o tanque nessas noites. Conseguiu ela, impor alguns limites que ficaram bem estabelecidos.  Nada de tapas. Nada de ofensas na cama. Só love, só love, só love, só love. Só love, só love, só love, só... love.


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         Tudo começou num baile de carnaval. Foi uma relação que nasceu num salão de clube, explodindo de foliões. Aquelas suas mãos finas mas ágeis, em volta daquela cinturinha, moldando-a com firmeza, o encaixe perfeito dos quadris, litros e litros de chope, cerva, marchinhas, axé-music, sambas enredo das antigas. Apenas se deixou levar, nem quis  ver de quem eram os dedos magros que deslizavam-lhe, ainda  sutilmente, cintura à baixo. Aceitou o convite para bailar junto àquele desconhecido. Foi pele, acho eu. Foi paixão. Foi instintivo. Primeiro ele, quando, de súbito, avistou à alguns metros ela, branca de pele, naquele short apertado de lycra grená com lantejoulas, toda gostosinha. Virou bicho. Um predador das savanas quando avista ao longe a caça e passa a segui-la,  espreita-la para o salto matador. Que quer devorá-la, estraçalhá-la, deglutir ela com vontade.
          Poucos homens, em situação semelhante, no embalo da folia, desviariam os olhos de uma formosura como aquela. Após oito ou nove voltas no salão, dançando daquele jeito, á moda trenzinho,  ele grudado nela, por trás, coxando, esfregando, no embalo da banda. A rapariga se mostrou cúmplice e receptiva aquela impetuosidade de um desconhecido e nem se deu ao trabalho de virar o rosto pra ver quem era. Quando assim começou a fazer, depois daquele amasso todo, o fez lentamente e enquanto girava pra trás a cabeça, foi imaginando, nesse rápido instante, que poderia dar de cara com o seu Príncipe Encantado. Saudável. Forte. Bonito. Inteligente. Romântico. Cheiroso. De bom gosto. Sensível. Elegante. Apreciador de bons vinhos. Bem resolvido financeiramente. 
          O que os seus olhos viram, não posso aqui omitir, não agradaria muito a maioria de vocês, leitoras. Se ela lhe conhecesse em algum outro lugar, arrisco á dizer, provavelmente a história seria outra ou, permitam-me nesse ponto uma reformulação de frase, nem haveria história em comum pra contar.  Era de estatura mediana e nada tinha de atlético, conforme anteriormente descrito. Tinha canelas finas e pelos por todo o corpo, protuberantes, saíam-lhe ainda que sutilmente, até pelas narinas.  Barba, a maioria das vezes por fazer e cavanhaque liso, escovado pra baixo como o de um bode. Cabelo, raramente penteava. Era a antítese do gato que ela sonhava, mas soubera se aproximar na hora certa, da maneira correta, na vibe¹ oportuna do momento. Namorar daquela forma,  talvez quem tenha chegado mais perto foi o Lico, um cacho do período da faculdade. Esse era também ousado mas lhe faltava fôlego, não tinha tanta garra como o Melo se apresentou tendo.
          Foi pega quase de surpresa. Nem reagir conseguiu ou queria. Andava carente. Precisava, é da natureza, daquilo. Sentiu-se engatada à ele como fios num circuito elétrico. O magrinho sabia o que fazer e farejava, adivinhava, tudo aquilo que ela gostava. O cara era de pegada. Disposto. Decidido. Incansável. Resistente e, já que mergulhei de cabeça nessa matéria específica, hirto. Um vulcão Vesúbel em plena atividade. Se preparava, vivia para o amor. Tomava gemada pra turbinar o café da manhã. Ovos de codorna, quase sempre fritos, no almoço. Mascava amendoins praticamente o dia todo. Maminha, lombo de porco, matambre²  de sentí o sangue do bicho na língua eram seu cardápio pra almoço e janta. Ingeria chás de cipó milango, das cascas de marapuana e da flor da catuaba. Ouvia bastante funk pancadão, irado. Assistia, não mais com tanta frequência como  em tempos outrora, filmes pornôs. 



              -- Vô te contá uma coisa, Silene, ouve o que a Edna vai aqui te falá... Aquele é sobre-humano, é um bicho, uma fera, uma besta selvagem. Potro fogoso. É garoto maroto, travesso, no jeito de amar. Faz de mim, seu pequeno brinquedo querendo brincar. Qui homem...

                  Desabafava-se assim, uma semana após engatar namoro,  pra uma prima,  nossa personagem central desse breve romance e realmente, poucas discordariam dela se os quesitos avaliados fossem, de fato, esses. 
           Era o típico boi reprodutor das estâncias, o que multiplica a boiada. Tinha onze filhos registrados, mais os que não quis registrar. Era galador. Um coelho. Não perdia tempo e essa era o seu diferencial. Metia pra dentro. Botava pra quebrar. Treinava, se preparava, se alimentava pra ser bom amante. E era. Principalmente no quesito resistência. O homem não descansava em serviço. Na primeira noite, na saída do tal baile, dentro do carro dela, só pra abreviar esse mais apimentado assunto, uma coisa com certeza posso afirmar que eles não fizeram, enroscados daquela forma. Dormirem. De que jeito dormiria ela, com tantos beijos intercalados, da nuca pra boca, da boca pra nuca. De que jeito cochilaria, com aquelas mãos percorrendo-lhe os contornos, madrugada à fora. Como pregar ele os olhos se aquela belezura ali, deitada de lado, estimulava-lhe os mais indecentes pensamentos.

               Melinho, se era por um lado bom de namoro, não tinha muito preparo quando o assunto era respeito e companheirismo. Não dava bola pros filhos. Não os adotara em seu coração. Não saía com eles pra passear. Não ensinava a andar de bicicleta, a jogar bola. Nunca fez um sanduíche, fritou um ovo pra algum de seus pequenos.  Não respondia o que eles perguntavam. Vivia, basicamente, pra si e querendo, à moda sanguessuga, sugar os outros. Era tosco. Um pedaço de granizo bruto e ainda não esculpido. Inacabado. Sem firmeza de caráter. Achava que a mãe e os irmãos deviam ajudá-lo mais, eram uns ingratos, uns mal agradecidos que esqueceram o que ele fez,  o que  trabalhou por eles. De como foi um cara legal com todos eles. Que fez e aconteceu pra conseguir um bom pedreiro pra reforma da irmã e até botou gasolina do próprio bolso pra ir buscar o homem, no dia que foi fazer o orçamento de serviço. Que fez a diferença pra ajudar o irmão em dificuldade, sem comida em casa.

            -- Agora, olha só como é que são as coisa, Germano, ninguém me dá força, ninguém liga pra sabê do Melo, como é que ele tá. Se tá bem de saúde... Uma gente assim não me serve pra nada. Nem quero assunto. Vô até excluí das minha amizade esses meus irmão. Não ajudam, não dão força pro cara... É foda.

           Não que eu ache necessariamente produtivo focalizar a atenção num carinha tão desprovido de bom senso como esse. mas a historia aqui narrada é um romance. Aconteceu. Num momento de euforia carnavalesca, é bem verdade.  Ele se apresentou como o homem certo no lugar certo. Edna, não repito mais, tava carente, precisando dum afago mais ostensivo, ousado, objetivo. Precisava se sentir outra vez e de maneira completa, fêmea. Andava abstêmia à quase oitos longos meses. Sem carinho. Sem beijo. Sem dançar abraçada. Nada. Só se concentrando no trabalho, em contratos que devia cumprir, nos memoriais e medições dos projetos... Homem? Só nas postagens, nos compartilhamentos das amigas no face, no wats. Nada de romance, nada de sair com alguém. 
            Acontece que o corpinho pedia algo e isso não vai ser eu quem vai  esconder aqui pra maquiar a situação. Queria algo que fosse bem pegado, com entrega, impregnado de instinto. De tanto desejar recuperar o tempo perdido ela acabou, de fato, tendo o que precisava e havia clamado. Um macho. Um homem firme, que soube o que tinha de ser feito naquele espaço e tempo. Foi por isso que naquela noite ele, obedecendo aos seus já elogiados impulsos procriadores, apenas encaixou-se, direto, pra bailar, sem pedir licença,  mãos em seus quadris, nariz em seu pescoço.  Era o que ela queria. Era o que ele, talvez ainda mais, queria naquela noite.
            Poucos na face da terra, repetir isso não faz mal, virariam o rosto da direção daquela polaka se rebolando daquele jeito,  naquele momento de folia, cheia de chope, cerva, solta. livre e descontraída. Pronta pro que der e vier e pro que tiver que acontecer. 
            E não é que aconteceu? Da forma que tinha de ser, principalmente porque o príncipe não era assim tão  encantado.  Ao longo do relacionamento, ganhou fama de abusado.  A Teka, senão me falha a memória, era esse o nome dela, disse que num aniversário, o da sobrinha dela, no momento dos três beijinhos tradicionais e respeitosos de despedida, ele cheirou os seus cabelos, aproveitando-se daquela proximidade toda.
         Talvez, abro aqui, brevemente, parêntese , só exista uma coisa mais desagradável para uma mulher do que ser cheirada por um desconhecido. É o desconhecido ter pêlos no nariz e esse, infelizmente, tinha e fizeram cócegas. Incômodas, atrevidas, inconvenientes cócegas em seu pescoço. O abusadinho se aproveitou, se a Teka tiver de fato certa, pra cheirar também o seu cangote no tal aniversário e provavelmente só ela tenha sentido e percebido isso. O cara foi rápido. Preciso. Certeiro.


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            Gostem ou não dele alguns, na cama o homenzinho não tinha o que se criticar. Era bom. O legítimo comedor. Talhado pra furar o concreto. Pra pegar na perseguida. Fazia filho que nem coelho, mas só criou, à trancos e barrancos, um só, o Sisso.
            Silvonei Fagundes de Maya, o Sisso, foi o único que ele fez e assumiu. O fato de tê-lo assumido, pago despesas de colégio, remédios, comida, fez o Melinho se achar no direito de resgatar tudo o que investiu no filho, tempos atrás. Esbravejava, indignado, entre parceiros, o que pensava da situação:

                -- Esse meu filho é um ingrato. Agora tá bem de vida, mas não pára pra pensá no pai e dá pra ele uma força... Paguei despesa de colégio... Botava comida pra dentro de casa... Trabalhava que nem lôku... Agora taí... Bem. Vê se eli traz um presente pra mim, vem vê cumé qui eu tô... Baaah... Não dão força pru cara nunca...  Parente assim não me vale nada.      
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* A mulher tem que lavar toda a roupa suja do marido.
* Não gosto de comida muito tarde,  com pouco sal ou empapada demais, nem gosto de ficá repetindo toda hora isso.
* Não preciso lavar louça, porque tenho mulher que lava.
* Tenho direito de tê o meus recreio,  o meus namorico por fora, porque eu sô esperto e ela nem precisa ficá sabendo.
* Condorda comigo no meus ponto de vista, porque mulher não tem que ficá discordando toda hora do homem dela e ficá contra o que ele tá pensando.

             Essas cinco condições não estão aqui porque eu as tenha reconhecido como normas de conduta num relacionamento amoroso. Elas traduzem, por outro lado,  a posição, a norma de conduta adotada pelo Melo em relação às mulheres com quem conviveu e fez filho. Era assim que o cara pensava. Mulher tem que fazer todo o trabalho de casa. O rapaz nunca lavou louça, enxaguou roupa ou secou o banheiro. Abandonava as próprias cuecas no chão, úmidas, após o banho. Ela que pegasse. Ela que torcesse ou , se fosse o caso, esfregasse. Botava panelas e pratos sujos dentro do forno.
   
               -- Uma hora ela vai vê e lava.    

          Reclamava quase todos os dias da comida. Que tave sem gosto algumas vezes e em outras mole demais. Começou a andar com uns caras estranhos. Cantou duas amigas sua. Não trazia dinheiro pra casa. Se irritava quando contestado. Arrumou briga com o vizinho.       

             
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¹ vibração

² pedaço de carne que se extrai dentre a pele e a costela do gado bovino.




                                                                                             Continua

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