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sábado, 20 de novembro de 2021

Manifesto do Fórum pela Inclusão Escolar

 


MANIFESTO SOBRE PROCESSO DE MATRICULAS E TRANSIÇÃO DOS ALUNOS PÚBLICO ALVO DA EDUCAÇÃO ESPECIAL EM ATENDIMENTO DE EDUCAÇÃO PRECOCE E PSICOPEDAGOGIA INICIAL NA REDE MUNICIPAL DE ENSINO (POA).


            O Fórum pela Inclusão Escolar, constituído em 2007, com o compromisso de defender a Educação Inclusiva, seja no âmbito do ensino comum ou especial tem como principal objetivo aprofundar o tema da Inclusão Escolar com todos os segmentos envolvidos: professores/as, familiares e alunos/as, além de movimentos e atores sociais interessados no tema.

         Apoia suas ações em redes com educadores de diferentes instituições que firmaram seu compromisso em um conjunto de mudanças educativas amparadas pelas legislações vigentes. 

            Desta forma, em reunião aberta deste Fórum, no último dia 26 de outubro, foi encaminhado por maioria presente apresentar nossa manifestação de repúdio às novas orientações da Secretaria Municipal de Educação (SMED) quanto a inscrições e matrículas das crianças público-alvo da Educação Especial, que ignora o processo de transição entre duas etapas da educação básica - educação infantil e o ensino fundamental - sem garantia de vaga em escola previamente planejada junto às famílias e que acolheria as necessidades das crianças. 

           O processo de transição, assegurado na legislação vigente – Resolução CME 13/2013 que dispõe sobre as Diretrizes para a Educação Especial no Sistema Municipal de Ensino, na perspectiva da Educação Inclusiva - acolhe os sujeitos com o apoio dos servidores públicos responsáveis pela educação inclusiva no município, garantindo equidade, diminuição e/ou eliminação de barreiras na aprendizagem. 

       O coletivo de profissionais do Fórum pela Inclusão Escolar, oriundos das escolas comuns e das escolas especiais da rede municipal bem como professores de Universidades do Rio Grande do Sul, também repudia incluir como um dos indicadores para vaga a necessidade do “atestado /laudo médico constando CID dos sujeitos”. Os atendimentos ofertados pelo serviço de Educação Precoce e Psicopedagogia Inicial, bem como das Salas de Recursos, NÃO exigem tal documento. A validação da Necessidade Educativa Especial (NEE) é de âmbito escolar e atribuição do especialista em educação especial, avaliação esta amparada pela LDB, pela Nota Técnica nº 4/2014 emitida pelo MEC que apresenta Orientação quanto a documentos comprobatórios de alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades/superdotação no Censo Escolar e a Resolução Municipal já citada acima. Portanto, a exigência de laudo médico fere a legislação em âmbito federal e municipal e nega a responsabilidade do profissional capacitado para tal. Cabe ressaltar que os atendimentos de apoio à inclusão como o AEE, Educação Precoce e Psicopedagogia Inicial tem um caráter pedagógico e não clínico. A exigência desse documento clínico, ou seja, o laudo, “denota imposição de barreiras ao acesso ao sistema de ensino, configurando-se em discriminação e cerceamento de direito” conforme específica a nota técnica nº 4/2014.


 Assinam esta carta os educadores do Fórum pela Inclusão Escolar, 

                                                                                 Outubro de 2021

sábado, 6 de novembro de 2021

A Liga dos Judiados- parte II

           


          Com a dissolução da Frente Permanente de Algazarra, a Liga foi sendo aos poucos cortejada pelas idéias marxistas do sociólogo recém diplomado Lauro Pontes, que aproveitou a situação para tentar a sua autopromoção em meio á tantas mentalidades rudes. Tinha na ponta da língua 5334 citações de pensadores políticos socialistas e freqüentemente excedia-se em devaneios intelectuais perante companheiros cuja escolaridade não ultrapassava em média a 5ª série do 1º grau.


- U subjetivo, di uma certa forma é desprovido di nexo... A complexidade da dialética hegeliana coloca um paradoxo entre a sociedade capitalista e a realidade tecnológica di mercado... A cultura marginal, na verdade, não chega a desestabilizar u Estado im prol da sistematização da máquina administrativa si, é claro, nus detivermos aos aspectos neo-democratas dessa corrente...

- Ãããã,  disculpa Lauro, eu tô ficando meio confuso... Teria como tu explicá um pouco mais devagar?

- Bom... eu posso fazê u siguinti... võ dexá êssi livro aqui cum vocês. Aí vocês xerocam... Ó, só vô lê u prefácio... Ah! Já ia mi esquecendo, o nome dele é A Sedução da Barbárie- Marxismo na Modernidade- de Nelson Brissac Peixoto... Olha só: “Com os olhos centrados na Europa expressionista dos anos 20 e 30, fascinado pelos encantos de atroz o autor elabora um instigante ensaio sobre a modernidade, cujas correntes estéticas se aventuravam pelo caos, atraídos pela transgressão.”... Cum êssi livro vocês vão intendê a raiz da questão.

- Aah tá... É, acho qui assim fica melhor...



            Em seus discursos Lauro sempre detinha-se basicamente em alguns pontos específicos. Seu grande prazer consistia em arrotar conhecimento na cara da sua modesta audiência. Insistia obsessivamente na “Teoria do Subjetivo”, que, aliás, jamais conseguiu explanar objetivamente. Com oportunismo, costumava relembrar á exaustão diante de todos a sua mais ilustre façanha como ativista político, quando acompanhara cerca de 13 colonos sem-terra numa marcha de protesto de quase 3 Km na zona rural do vizinho município de Pelotas.

            Segundo constava nos registros de imprensa da zona-sul, sua atuação restringia-se sempre a passeatas ou artigos publicados no jornalzinho de sua ex-colega de faculdade, Dulce Borges. Quando desafiado para um debate em Porto Alegre com sociólogos ligados ao movimento acadêmico “Sociólogo Ativo”, esquivou-se alegando uma forte gripe. Posteriormente, no entanto, em confissão a um de seus condiscípulos judiadeístas, definiu mais claramente a sua recusa:


- Não vô discuti política com quem não entende do assunto! Só converso com gente como us meus companheiros colonos, qui EU acompanhei naquela marcha exaustiva im Pelotas...


            Lauro tentou criar uma mística em torno de sua própria pessoa. Ministrou durante dois meses, na Associação do Bairro Dom Bosquinho, aulas de iniciação política, as quais eram apenas um pretexto para os seus devaneios intimistas.


- EU sugeri à Universidade de Passo Fundo, a UPF, que utilizasse mais u seu complexo arborizado... Graças ao qui EU disse, eles começaram a tê aula na rua nos dias de calor... EU não dô aula im colégio particular porque mi formei numa universidade pública... EU prefiro assim. Aliás, quando EU e meus companheiros colonos marchamos em nome do (...)


            Uma forte corrente oposicionista surgiu dentro da Liga, visando afastar Lauro do comando. Após algumas reuniões secretas no Bar do Tripa, um grupo liderado pelo próprio Ordenael Junqueira de Castro, o Tripa, resolveu pôr um fim naquela liderança tão subjetiva:


- É u siguinti Laurô, eu i us guri conversêmo onti sobri um assunto qui não pode mais sê adiado... A genti sabi qui tu tem alta cabeça, falas tri bem, mas u pessoal tá ficandu tudo confuso, magrão... Tâmo tudo perdido, sem sabê aondi qui tu qué chegá realmente... Á partir di hoji, qualquer decisão tomada im nomi da Liga vai passá à sê discutida pur nós tudo, pra não tê mais problema.


- Olha Tripa, pur mim tudo bem. Eu só tinha tomado a diantêra purque achei qui vocês tavam precisando duma força... Pur essi mesmo motivo EU acompanhei os colonos naquela caminhada que eu falei um tempo atrás...



            No dia posterior a cordial intimação que sofreu, Lauro dirigiu-se ao guichê rodoviário para adquirir um bilhete de passagem intermunicipal com destino à Ronda Alta. Dois dias depois embarcou num ônibus semi leito para não mais retornar. O motivo da abrupta partida foi, segundo ele, um convite feito às pressas exortando-o á implantar naquele município uma Rádio Comunitária. Intencionava ainda, posteriormente, transferir-se para Guiné Bissau na África, para debater com os aborígines a superação do capital na dimensão subjetiva.

            O referido sociólogo escreveu o livro “A subjetividade do capital”, que trazia na capa, preciosa informação;

                             

ESTE LIVRO FOI INICIADO EM PLENA MARCHA DE  PROTESTO REALIZADA PELOS COLONOS PELOTENSES                        NA HISTÓRICA TARDE DE 5 DE AGOSTO DE 1988. 



            Deixou Lauro uma contribuição inestimável ao cenário de radiodifusão local, implementando com suor a 1ª Rádio Comunitária Alternativa da cidade, a “Subjetiva Fm”, que acabou consolidando-se no veículo de comunicação mais imparcial da região. É bem verdade que, na busca pela audiência, a postura da emissora acabou degradando-se com o correr dos meses, momento este que culminou na contratação do comunicador André Lazarotto Filho, o “Sussuca”. Sussuca passou a comandar as noites de segunda à sexta-feira com o seu “Sussucaldeirão”, das 22 horas às 2 hs da madrugada, extravasando depravação:


- Oi, oi, ôoooi pessoal... tudo legal? Cumé qui tá?... Sussuca chegando pra comandá com muita alegria, com muita fissura o seu final di noiti i nício di madrugada... Na mesa de som, como sempre, como não poderia deixar de ser, o requisitado, o corpinho enxuto... Alcidino Prates, o popular... LLLinguinha... Dale Lingüinha! Huuuuu! Isso aqui vai pegá fogo hoje... To cum brotinho aqui no gancho i vô senti qualé qui é a dela: Óóó, tudo bom? Com quem falo?

- Tudo bom Sussuca? Não tais reconhecendo a minha voz?

- Não, não tô. Com quem falo?

- É a Suzana, a Suzana Esqueminha.

- Haaaaaaaaa... Suzaninha, claro, claro... Cumé qui tá? Tudo bom?

- Tudo bom. Depois eu quero falá cuntigo fora do ar, tá?

- Claro, claro, depois a genti cunversa melhor... Agora pra abreviá u assunto qui u tempo é curto, eu quero ti ouvi... eu quero ti sentí pronunciando a identificação toda especial du meu programa. Diz aí Suzana!

- Ssssssssssssussssssssssssuca.

- Aaaai qui delícia! Que gostooso... Qui  música vais querê ouvi, meu corpinho?

- Hhhhhhhhum... deximivê... ah, toca uma qualquer aí qui tu quisé. Bem bunita ta?

- Então ta ... ta legal, eu rodo, rodo uma bem legal... E vai sê agora mesmo... Só qui antes eu vô tê qui fazê uma pergunta pra tu levá no mole um ingresso pro show de amanhã do Musical Calígula no Clube Rosa Branca... O que é o que é... um pontinho vermelho no canto do carpete?

- Aaaaaaaaah... não sei. Não sei o que é.

- É uma ervilha menstruada... Mas vô ti dá ôtra chance... O que é o que é... um ator anão qui só contracena em comédias?

- Bah... mi pegassi di novo... não sei.

- Um comicuzinho. HA HA  HA  HA  HA  HA  HA   HA  HA  HA  HA  HA  HA  HA  HA  HA  HA  HA  HA HA HA HA! Hoje eu tô dimais, HA HA HA HA HA HA HA HA HA! ... Agora vâmo di Wando... Manda aí Lingüinha!

                      

   “Eu já tirei a tua roupa, Nesses pensamentos meus,   Já bolei mil fantasias...”


            E já que o assunto é rádio-comunicação, torna-se oportuno fazermos uma incursão ao trabalho desenvolvido em uma emissora de ondas médias desta mesma cidade. Trabalho este desenvolvido pelo experimentado, usado e abusado radialista Afrânio Lazarini, conhecido em muitos botequins como ‘Xulapa”. Xulapa mantinha um perfil do estilo “cão que ladra”, descarregando avalanches de impropérios contra pessoas que sequer estavam no estúdio encarando-o:


- Êssi marginal safado tem qui sê amarrado pelos pé i pelas mão i depois apedrejado!... Heim ô? Tem qui ficá sem comida uma coisa dessas... Heim ô? Heim? Tem qui passá fome, vagabundo! Heim? Heim ô? Vai trabalhá nu mercado, nu porto descarregando saco? Não qué? Isso tu não qué né? Heim ô? Heim?


            Afrânio utilizava-se no ar, na falta de pauta jornalística, do espaço “Diga Leitor”, editado nas terças, quintas e sextas-feiras nas páginas do jornal Aqui. Assim o fazia para rebater as opiniões populares que lhe desagradavam e feriam as suas convições sócio-econômicas e ideológicas:


- Francamenti... qui pobreza essa opinião aqui heim? Heim? Heim ô? Heim? Heim ô? U que qui é isso? Dizê qui não si deve dexá uma Usina Atômica, qui é uma geradora di imprego, si instalá aqui na cidade... Tu ti acha inteligenti? Heim? Heim ô? Si a tua consciência tivéssi num mal dia ela ia ti dizê um palavrão... aaah si ia... Heim ô? Heim? Heim ô?



            Para abreviar a descrição do perfil físico de Afrânio, cumpre-nos salientar que ele media 1,55 de altura era gordinho, grisalho e quando na rua passava por alguma ninfeta pronunciava bem juntinho ao seu ouvido elogios “calientes”. Fazia juntamente com a sua rádio, “Vento-Sul”, o jogo do prefeito Valadão Paiva e das forças papareias economicamente ativas.


                                            ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

            Tripa era um sujeito bem mais moderado que o seu predecessor Lauro. Freqüentava esporadicamente as reuniões vespertinas do Café & Letras, às 19 hs. O Café & Letras, que situava-se á Rua General Osório nº 500, entre a Floricultura Suíta e o Mini-Mercado Macedinho, era na verdade um ponto de efervescência cultural naquele município. Fora idealizado pelo bacharel e professor de História quase aposentado, Jacó Martins, o “Professor”. Jacó, descontente com o cenário político-social estagnado dos rio-grandinos, com muito sacrifício alugou o referido prédio para nele abrigar o primeiro NPD (Núcleo De Difusão Política). Lá desenrolavam-se diálogos francos e expressivos sobre a desoladora conjuntura municipal, tão pobre em perspectivas.

            A ATA da reunião número 14, redigida pelo próprio Professor, fora bastante reveladora:



    “Ao décimo nono dia do mês de novembro do ano de 1990, rigorosamente na décima nona hora iniciamos os trabalhos. Sem que todos houvessem ainda sentado-se em suas cadeiras, Tripa, em nome dos seus companheiros da Liga dos Judiados, anunciou que a mesma apóia o êxodo proposto na ATA nº 13 e aprovado por todos os presentes, exceto o Rui, que não veio com boas intenções naquela tarde, disposto à encrencar.

            Fica, portanto confirmado através da presente, a nossa grande debandada coletiva em direção à Ilha dos Marinheiros, visando lá estabelecermos habitat em caráter definitivo, sobrevivendo da pesca e do cultivo de legumes, hortaliças e árvores frutíferas. Não agüentamos mais vivermos num ambiente tão poluído em diversos aspectos. Iremos embora porque nada mais nos resta a obter nessa terra cruel. A partir do término desta, apenas duas semanas nos separam do êxodo final.

            


                          Rio Grande, 19 de novembro de 1990 




            A bombástica iniativa daqueles abnegados desbravadores pegou os rio-grandinos de surpresa. Muitos escarneceram de tal idéia, duvidando da sua concretização. Os idealizadores, porém, alheios ao deboche, utilizaram a Rádio Subjetiva FM para divulgarem o êxodo através de uma canção raulseixiana sugerida pelo irmão de criação do Professor:


“Vamos logo que já ta na hora de zarpar, vem sem medo que não vamos naufragar.  navegador, vê se na praça tem alguém para vir, a barca de noé tá pra sair (...)” 


                                                          ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨


- Tão é tudo doente da cabeça... Ondi si viu só!? Í pra Ilha dus Marinhêro... Pur pior qui teja a situação não si dévi abandoná a cidade assim... Mas aproveitando a nossa prosa, Seu Jurandí, u senhor qui é um homi culto, pódi mi ixplicá uma coisa... A minha véia dissi qui saiu nu jornal qui u Exército vai começá à entrá nus terreno qui não tem banhêro di tijolo pra demoli as patente... É verdadi?

- Como é qui é essa história?

- Peraí qui eu vô lá dentro pegá u jornal... Ó taquí, vô lê pru senhor: “ O presidente disse ontem em Uberaba, no Triângulo Mineiro, que o país vai quebrar patentes sempre que for necessário para a saúde e o bem estar do povo brasileiro. Em seu pronunciamento ele foi enfático: - Não estamos aqui para desafiar e quebrar patentes à torto e a direito, mas estamos aqui para dizer que, quando for necessário para a saúde do nosso povo, não hesitaremos...  Viu só? I quem não tem condição di fazê um banhêro melhor agora? Tô apavorado! Pur que qui essi homi vai fazê isso cum as nossa patente?


                                           ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨


            Três caícos abarrotados de ativistas descontentes com a política do prefeito Valadão Paiva, que cumpre o seu 5º mandato, atracaram no trapiche norte da Ilha dos Marinheiros. Segundo informações de dois pescadores ilhéus encarregados da recepção, eles vieram pra ficar e estão dispostos a tudo para manterem-se no local.


                                       Jornal Aqui, 3 de dezembro de 1990.



                                                     ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

            O jornal Folha Papareia não publicou, no referido dia, notícia alguma á respeito.   




                                                                               FIM    


terça-feira, 2 de novembro de 2021

A Liga dos Judiados- parte I

 



           Mais uma pincelada do primeiro livro. Talvez o conto, futuramente, ganhe uma continuação. Aqui vai a primeira parte.

          O dia 4 de junho de 1989 ficou imortalizado na memória dos munícipes rio-grandinos como a data de fundação da maior organização oposicionista das associações de bairros no Rio Grande do Sul. Descontentes com a política exclusivicionista e arbitrária do então prefeito e coronel reformado do glorioso Exército Brasileiro, Valadão Paiva, líderes comunitários resolveram elaborarem em conjunto um programa alternativo de administração e ações populares. Na referida oportunidade foi redigida uma moção de repúdio, enviada no mesmo dia ao gabinete executivo e distribuída posteriormente à imprensa. O documento chamou a atenção dos jornais da capital pela singeleza do seu conteúdo, que traduzia os anseios e frustrações do proletariado local:



                   MOÇÃO DE REPÚDIO AO PREFEITO:



            Ao 4º dia do mês de junho de 1989, nós, membros da recém fundada Liga dos Judiados, viemos através do presente instrumento externarmos a nossa profunda decepção com a atual administração intervencionista que nos é imposta goela abaixo.

            Até então, apaziguados pela turma do “deixa disso”, havíamos simplesmente cruzado os nossos braços diante dessa agressiva política implementada nos moldes típicos da ditadura, que teoricamente fora já extinta.

            O apelo principal que aqui lançamos, mais em forma de petição do propriamente em tom de ameaça é a seguinte, Sr. Prefeito: PARE COM ISSO. Deixe-nos viver dignamente e sonharmos com uma sociedade mais justa para nossos necessitados filhos. Ponha a mão na consciência pelo menos uma vez na vida e arrependa-se de seus atos intransigentes. Abandone essa arrogância expressa gratuitamente em seu semblante e aceite as reivindicações de seus governados. PARE COM ISSO, PREFEITO. Pare, por favor. Nós já não agüentamos mais essa sua perseguição contra todos que não pertencem ao seu partido e com dificuldades lutam por maiores oportunidades. Seja mais imparcial e permita aos menos favorecidos iguais chances de usufruírem as muitas potencialidades da nossa terra, sem distinções de cor, crença ou conta bancária. Até quando esse inferno ainda vai durar?

            Muitos de nós, companheiros de Liga, estamos já desesperados, sem perspectivas imediatas de auxílio. Uma antipatia irremediável em relação a sua pessoa começa a surgir nos cortiços e favelas. Tente resolver isso por meios diplomáticos enquanto há tempo. Caso contrário a revolta popular poderá atingir dimensões ainda mais alarmantes. Estamos abertos ao diálogo e buscamos tão somente justiça. O povo também merece ser ouvido.

            A presente moção é um manifesto coletivo de todas as entidades pertencentes à Liga:


                                                                            

                                              Associação dos Descascadores de Camarão

                                              Cooperativa dos Biscateiros Autônomos

                                              Liga Federativa de Futebol de Sete

                                              Ordem dos Músicos de Boteco

                                              Clube das Senhoras Datilógrafas

                                              Conselho dos Bairros Periféricos





            O prefeito, tão logo teve conhecimento do referido texto, sem deixar transparecer o seu ódio, desculpou-se publicamente numa emissora de rádio local, esquivando-se estrategicamente de maiores esclarecimentos ideológicos. Ao final da entrevista ao radialista Afrânio Lazarini, apresentador do programa matinal “Manhã da Gente”, fez publicamente um convite às associações pertencentes a Liga:


- (...) Nêssi dumingo estaremos recebendo di braços abertos toda a população rio-grandina pru nóssu tradicional Carretêro du Dia di São Pedro nóssu amado padroeiro... Us portão du Ginásio Municipal vão ta aberto pra quem quisé chegá i cumê essi suculento prato dus gaúcho acompanhado pur uma saladinha di maionese... Vai tê pagode, vai tê fandango, vai tê música pra todus us gostu depois da comilança!... Vâmo acabá cum essa história di dizê qui eu não mi preocupo cum us meus conterrâneo... Eu faço u qui posso. Quando dá, dá, quando não dá, não dá...


                                                                 ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨


            O carreteiro acabou, de fato, criando uma perspectiva otimista aos estômagos do proletariado, que simpatizou-se de imediato com o convite.

             Aparentemente a moção de repúdio havia surtido um efeito maior do que o esperado e alguns estavam já arrependidos de terem alimentado ressentimentos contra o chefe do Executivo Municipal durante tanto tempo. Vivas e mais vivas foram surgindo, já que a integração social tão almejada agora parecia mais próxima do que nunca. “E viva o prefeito!”

            O artigo a seguir, extraído do periódico sul riograndense “Folha Papareia”, ilustrará o impacto da atitude conciliadora do prefeito.



Folha Papareia, 9 de julho de 1989- Coluna Espaço do Leitor:


                        O homem não é ruim, pessoal!


            Os últimos acontecimentos nos fazem admitir que esse prefeito não é tão desumano o quanto se supunha. Tem lá os seus excessos como todo cidadão normal, mas nem por isso deve sofrer maiores condenações. Já tivemos administrações piores. Lembram do falecido Gadêncio Duarte, o “Coisa Ruim”? Depois do próprio Gadêncio teve ainda o Pompeu Dutra, que convenhamos, meteu bonito a mão nos cofre. Se eu for me lembrar de todos que ocuparam o trono de ¹Silva Paes certamente muita coisa suja viria à tona.

            Esse carreteiro promete ser o grande acontecimento da zona-sul em termos de integração política e por que não dizer, social. Chegou o momento de tirarmos o nosso orgulho bairrista de dentro do armário e nos congratularmos nesse autêntico banquete de núpcias.

            Acabam assim as nossas diferenças. Não há vencedores, não há vencidos. A diplomacia desse homem público está conseguindo suavizar as pendengas antigas que atrasavam o progresso do povo. Agora sim, os pessimistas de plantão irão render-se às evidências. Nada mais deve ou pode atrapalhar o nosso desenvolvimento tão sonhado. Deram com a língua nos dentes esses que só pensam no pior.

            O homem não é ruim... pessoal! Se fosse, jamais abriria pra nós o seu salão de baile. Bom apetite a todos! Nos encontramos lá!


                                                                                       Beto Molina

                                            2º tesoureiro do CBF (Conselho dos Bairros Periféricos)

                                                                          

                                                         ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨

                     A publicação do emotivo desabafo abalou consideravelmente a homogeneidade da Liga, visto que alguns companheiros acharam prematura a sua declaração pública. Mesmo assim, apenas dois ²judiadeístas atreveram-se à pedirem cautela e prudência. Todos os demais, como cuscos de rua famintos, abanaram o rabo diante da eminente refeição. Com efeito, a situação daquela gente era quase desesperadora, por isso ninguém arriscou-se a menosprezar uma oportunidade gastronômica como aquela. Suas narinas, paladares e estômagos ansiavam pelo momento. Que se danassem, pelo menos por ora, as convicções ideológicas e posturas de combate. Que se colocasse, pois, uma pedra em cima de tudo que pudesse despertar ressentimentos contra o prefeito.       

                                            ......................................................

        

- Bá lokô, vai tê altos rango dumingo agora lá nu Ginásio da Prefeitura. Vô chegá lá na cara dura...

- Quê, mas... é só chegá?

- Claro lôko, u prefeito dissi qui a gênti pódi metê essi rango di graça i qui dá até pra repetí

- Olha só... Pódi crê... Quando qui é mesmo?

- Dumingo. Nessi dumingo agora.

- Baaah... vô dá u tóqui lá na báia... Mas vem cá Luizinho, é real qui tu anda matando a Inês, filha du Leleco?

- É, é real... Tô curtindo cum ela já faz uns dois mês... A mina faz tudo im cima duma cama, lokô...

- Ah é? Eu sempri achei aquela mina tri quiridinha... Eu curti a uns cinco anos atrás cum a irmã dela.

- A pára! A Valeska? HA HA HA HA HA HA HA!

- Só... a Valeska... Mas ela é tri quiridinha também...

- Bá lôko, eu acho aquela mina “nada à ver”.

- Luizinhô, vô ti dá u tóqui: Não entra nessas aí di querê mi rebaixá purquê vai dá merda...

- Eu só tô ti dando a real lôko, qualé?


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  SALMONELA ATRAPALHA  A  BRILHANTE

  INICIATIVA DO PREFEITO VALADÃO PAIVA.

  DIARRÉIAS E VÔMITOS INTERROMPERAM A

  “FESTA DE SÃO PEDRO”.



          Com esta manchete estampada na contracapa de sua edição de segunda-feira, 30 de junho (um dia após o incidente) o diário “Aqui” sintetizou parcialmente o que ocorrera no tão aguardado banquete. Fazem-se necessários, porém, alguns esclarecimentos que visam alargar o horizonte de apreciação do leitor. As preciosas informações a seguir foram prestadas por Mariângela Torres, empregada do prefeito.

            Segundo a doméstica, seu patrão comportou-se de uma maneira bastante estranha naquele almoço, tratando-a com descortesia por um motivo aparentemente banal:


-... Si  eu subéssi qui a colherada di salada qui eu dei pru guri dêli di nóvi anos fôssi dexá u homi doido di raiva, eu nem teria servido...


            Mariângela salientou que isto aconteceu bem antes de surgir o primeiro sintoma de infecção intestinal nos presentes. Acrescentou ainda, que viu ele cochichar no ouvido do seu secretário de gabinete, algo que fez o mesmo gentilmente ceder toda a sua salada para um vira-latas amarelo de patinhas marrom que insinuava-se ao pé da mesa:


-... Depois disso êli saiu feito um lôko im direção à mesa du Comandanti da Guarda Municipal, qui já tava ingulindo uma garfada di salada... Êli também falô umas coisa pra êli i u homi só cumeu um pôko di carretêro i foi imbora...


             Ao final das contas acabou ficando “o dito pelo não dito”, já que inexistiam provas concretas que pudessem responsabilizar o administrador. Mariângela foi despedida e no ato da rescisão contratual ouviu acusações e ameaças do seu ex-patrão, que amaldiçoou o dia em que a havia contratado.  A moça, á partir dali, enfrentou sérias dificuldades para fazer ficha em estabelecimentos comerciais e indústrias da região, optando posteriormente pela atividade informal. Comprou uma carrocinha para comercializar cachorro-quente em frente ao terminal de ônibus da Vila Naba, no centro da cidade, contudo, devido as precárias condições de higiene em suas instalações, foi proibida pela Vigilância Sanitária de exercer as suas atividades. Tentou recorrer da decisão judicial contratando os serviços do advogado Guarnielli Silva, que após pessoalmente certificar-se das condições deploráveis da carrocinha, alegando indisponibilidade de tempo, negou-se à “descascar aquele abacaxi”. Conforme confidências da sua esposa a uma colega... 

-... U negro nunca mais quis cumê cachorro-quente depois di tê ido vê u relaxamento duma mulher qui quiria contratá êli... Êli dissi pra mim qui viu até um carrapato gordo caminhando na borda du póti di milho verde...

- É? Qui barbaridadi... Como tem gênti porca...

                                                          ¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨¨


            A Liga do Judiados, que teve grande parte dos seus membros infectados intestinalmente pela salmonela, sentiu-se traída e humilhada, assumindo á partir dali uma postura bem mais atuante. Passaram a panfletear no mínimo uma vez por semana, disseminando denúncias alarmantes contra o Executivo. Por essa época começou a sobressair-se em liderança o co-fundador da Liga Federativa de Futebol de Sete (LFFS) e ex-segurança de boate, Simão Veiga, o “Tarrafa”. Tarrafa tentou conduzir os seus companheiros a uma tendência bem mais baderneira e anarquista, ganhando de imediato a antipatia dos judiadeístas moderados. 

            Segundo ele, somente teriam fim os males que afligiam o município quando os governantes tivessem medo do povo. Para tal, de acordo com o seu raciocínio, tornava-se necessário à criação de uma Frente Permanente de Algazarra (FPA), que seria a responsável pelas imprescindíveis conturbações da ordem pública. Levando adiante o seu intento oposicionista, recrutou na periferia, jovens elementos dispostos a esculhambarem com o sistema papareia³. Téia, Ganso, Jaques Pezão e Naldo eram alguns dos encrenqueiros que toparam sem maiores pudores a incumbência. Depredaram praças, tombaram placas de sinalização do trânsito e sabotaram viaturas oficiais da prefeitura (furando pneus), tudo isso em nome de um ideal revolucionário alicerçado na raiva e no menosprezo pela lei orgânica em vigor.

            A ousadia do esquadrão acabou, porém extrapolando. Na noite do dia 11 de dezembro de 1989, na tradicional Chegada do Papai Noel realizada anualmente no largo da prefeitura, os cinco integrantes mais ativos da FPA (Frente Permanente de Algazarra) dirigiram-se desrespeitosamente ao “bom velhinho” após demolirem no local, á pauladas, uma árvore de natal feita inteiramente com lâmpadas multicoloridas. Acionada pelos guardas municipais de serviço no local, a Brigada Militar entrou em ação numa das ofensivas mais bárbaras de sua história naquele município. Tarrafa, que observou á distância toda a operação, no momento da batida policial fugiu em sua CG 125 sem ao menos pensar em intervir a favor dos comparsas, que levaram safanões até não quererem mais. Uma semana após, recebeu em casa uma visita pouco amistosa de Jaques Pezão, que tinha ainda no corpo os hematomas do confronto com os PM’s.


- Intão a tua jogada era aquela, né Tarrafa? Botássi uma baita pilha na gênti i na hora du pau tu foge... Sai pra rua qui eu quero trová um bagulho cuntigo aqui fora...

- Pô neguinho, tu acha qui eu dexei vocês na mão? Eu saí pra vê si achava uns reforço pra nus ajudá... Quando eu voltei, já apavorado pur não tê achado ninguém, us homi já tinham levado vocês.

- Aaaah, tá... Então vem aqui na rua... Vem mesmo lokô.

- Pô neguinho, qualé? Vai pra casa i isfria a cabeça... Ôtra hora a gênti cunversa...

- Ou tu sai agora ou eu arrebento essa cerca!


                                                         Continua



¹ O  brigadeiro que fundou e administrou a cidade de Rio Grande.

² Designação empregada para discernir os membros ativos da Liga.

³ Devido o território arenoso e o vento sempre presente, os moradores dessa região do extremo-sul gaúcho, nos primórdios da colonização,  ficaram  conhecidos como Papareia.