Com a dissolução da Frente Permanente de Algazarra, a Liga foi sendo aos poucos cortejada pelas idéias marxistas do sociólogo recém diplomado Lauro Pontes, que aproveitou a situação para tentar a sua autopromoção em meio á tantas mentalidades rudes. Tinha na ponta da língua 5334 citações de pensadores políticos socialistas e freqüentemente excedia-se em devaneios intelectuais perante companheiros cuja escolaridade não ultrapassava em média a 5ª série do 1º grau.
- U subjetivo, di uma certa forma é desprovido di nexo... A complexidade da dialética hegeliana coloca um paradoxo entre a sociedade capitalista e a realidade tecnológica di mercado... A cultura marginal, na verdade, não chega a desestabilizar u Estado im prol da sistematização da máquina administrativa si, é claro, nus detivermos aos aspectos neo-democratas dessa corrente...
- Ãããã, disculpa Lauro, eu tô ficando meio confuso... Teria como tu explicá um pouco mais devagar?
- Bom... eu posso fazê u siguinti... võ dexá êssi livro aqui cum vocês. Aí vocês xerocam... Ó, só vô lê u prefácio... Ah! Já ia mi esquecendo, o nome dele é A Sedução da Barbárie- Marxismo na Modernidade- de Nelson Brissac Peixoto... Olha só: “Com os olhos centrados na Europa expressionista dos anos 20 e 30, fascinado pelos encantos de atroz o autor elabora um instigante ensaio sobre a modernidade, cujas correntes estéticas se aventuravam pelo caos, atraídos pela transgressão.”... Cum êssi livro vocês vão intendê a raiz da questão.
- Aah tá... É, acho qui assim fica melhor...
Em seus discursos Lauro sempre detinha-se basicamente em alguns pontos específicos. Seu grande prazer consistia em arrotar conhecimento na cara da sua modesta audiência. Insistia obsessivamente na “Teoria do Subjetivo”, que, aliás, jamais conseguiu explanar objetivamente. Com oportunismo, costumava relembrar á exaustão diante de todos a sua mais ilustre façanha como ativista político, quando acompanhara cerca de 13 colonos sem-terra numa marcha de protesto de quase 3 Km na zona rural do vizinho município de Pelotas.
Segundo constava nos registros de imprensa da zona-sul, sua atuação restringia-se sempre a passeatas ou artigos publicados no jornalzinho de sua ex-colega de faculdade, Dulce Borges. Quando desafiado para um debate em Porto Alegre com sociólogos ligados ao movimento acadêmico “Sociólogo Ativo”, esquivou-se alegando uma forte gripe. Posteriormente, no entanto, em confissão a um de seus condiscípulos judiadeístas, definiu mais claramente a sua recusa:
- Não vô discuti política com quem não entende do assunto! Só converso com gente como us meus companheiros colonos, qui EU acompanhei naquela marcha exaustiva im Pelotas...
Lauro tentou criar uma mística em torno de sua própria pessoa. Ministrou durante dois meses, na Associação do Bairro Dom Bosquinho, aulas de iniciação política, as quais eram apenas um pretexto para os seus devaneios intimistas.
- EU sugeri à Universidade de Passo Fundo, a UPF, que utilizasse mais u seu complexo arborizado... Graças ao qui EU disse, eles começaram a tê aula na rua nos dias de calor... EU não dô aula im colégio particular porque mi formei numa universidade pública... EU prefiro assim. Aliás, quando EU e meus companheiros colonos marchamos em nome do (...)
Uma forte corrente oposicionista surgiu dentro da Liga, visando afastar Lauro do comando. Após algumas reuniões secretas no Bar do Tripa, um grupo liderado pelo próprio Ordenael Junqueira de Castro, o Tripa, resolveu pôr um fim naquela liderança tão subjetiva:
- É u siguinti Laurô, eu i us guri conversêmo onti sobri um assunto qui não pode mais sê adiado... A genti sabi qui tu tem alta cabeça, falas tri bem, mas u pessoal tá ficandu tudo confuso, magrão... Tâmo tudo perdido, sem sabê aondi qui tu qué chegá realmente... Á partir di hoji, qualquer decisão tomada im nomi da Liga vai passá à sê discutida pur nós tudo, pra não tê mais problema.
- Olha Tripa, pur mim tudo bem. Eu só tinha tomado a diantêra purque achei qui vocês tavam precisando duma força... Pur essi mesmo motivo EU acompanhei os colonos naquela caminhada que eu falei um tempo atrás...
No dia posterior a cordial intimação que sofreu, Lauro dirigiu-se ao guichê rodoviário para adquirir um bilhete de passagem intermunicipal com destino à Ronda Alta. Dois dias depois embarcou num ônibus semi leito para não mais retornar. O motivo da abrupta partida foi, segundo ele, um convite feito às pressas exortando-o á implantar naquele município uma Rádio Comunitária. Intencionava ainda, posteriormente, transferir-se para Guiné Bissau na África, para debater com os aborígines a superação do capital na dimensão subjetiva.
O referido sociólogo escreveu o livro “A subjetividade do capital”, que trazia na capa, preciosa informação;
ESTE LIVRO FOI INICIADO EM PLENA MARCHA DE PROTESTO REALIZADA PELOS COLONOS PELOTENSES NA HISTÓRICA TARDE DE 5 DE AGOSTO DE 1988.
Deixou Lauro uma contribuição inestimável ao cenário de radiodifusão local, implementando com suor a 1ª Rádio Comunitária Alternativa da cidade, a “Subjetiva Fm”, que acabou consolidando-se no veículo de comunicação mais imparcial da região. É bem verdade que, na busca pela audiência, a postura da emissora acabou degradando-se com o correr dos meses, momento este que culminou na contratação do comunicador André Lazarotto Filho, o “Sussuca”. Sussuca passou a comandar as noites de segunda à sexta-feira com o seu “Sussucaldeirão”, das 22 horas às 2 hs da madrugada, extravasando depravação:
- Oi, oi, ôoooi pessoal... tudo legal? Cumé qui tá?... Sussuca chegando pra comandá com muita alegria, com muita fissura o seu final di noiti i nício di madrugada... Na mesa de som, como sempre, como não poderia deixar de ser, o requisitado, o corpinho enxuto... Alcidino Prates, o popular... LLLinguinha... Dale Lingüinha! Huuuuu! Isso aqui vai pegá fogo hoje... To cum brotinho aqui no gancho i vô senti qualé qui é a dela: Óóó, tudo bom? Com quem falo?
- Tudo bom Sussuca? Não tais reconhecendo a minha voz?
- Não, não tô. Com quem falo?
- É a Suzana, a Suzana Esqueminha.
- Haaaaaaaaa... Suzaninha, claro, claro... Cumé qui tá? Tudo bom?
- Tudo bom. Depois eu quero falá cuntigo fora do ar, tá?
- Claro, claro, depois a genti cunversa melhor... Agora pra abreviá u assunto qui u tempo é curto, eu quero ti ouvi... eu quero ti sentí pronunciando a identificação toda especial du meu programa. Diz aí Suzana!
- Ssssssssssssussssssssssssuca.
- Aaaai qui delícia! Que gostooso... Qui música vais querê ouvi, meu corpinho?
- Hhhhhhhhum... deximivê... ah, toca uma qualquer aí qui tu quisé. Bem bunita ta?
- Então ta ... ta legal, eu rodo, rodo uma bem legal... E vai sê agora mesmo... Só qui antes eu vô tê qui fazê uma pergunta pra tu levá no mole um ingresso pro show de amanhã do Musical Calígula no Clube Rosa Branca... O que é o que é... um pontinho vermelho no canto do carpete?
- Aaaaaaaaah... não sei. Não sei o que é.
- É uma ervilha menstruada... Mas vô ti dá ôtra chance... O que é o que é... um ator anão qui só contracena em comédias?
- Bah... mi pegassi di novo... não sei.
- Um comicuzinho. HA HA HA HA HA HA HA HA HA HA HA HA HA HA HA HA HA HA HA HA HA HA! Hoje eu tô dimais, HA HA HA HA HA HA HA HA HA! ... Agora vâmo di Wando... Manda aí Lingüinha!
“Eu já tirei a tua roupa, Nesses pensamentos meus, Já bolei mil fantasias...”
E já que o assunto é rádio-comunicação, torna-se oportuno fazermos uma incursão ao trabalho desenvolvido em uma emissora de ondas médias desta mesma cidade. Trabalho este desenvolvido pelo experimentado, usado e abusado radialista Afrânio Lazarini, conhecido em muitos botequins como ‘Xulapa”. Xulapa mantinha um perfil do estilo “cão que ladra”, descarregando avalanches de impropérios contra pessoas que sequer estavam no estúdio encarando-o:
- Êssi marginal safado tem qui sê amarrado pelos pé i pelas mão i depois apedrejado!... Heim ô? Tem qui ficá sem comida uma coisa dessas... Heim ô? Heim? Tem qui passá fome, vagabundo! Heim? Heim ô? Vai trabalhá nu mercado, nu porto descarregando saco? Não qué? Isso tu não qué né? Heim ô? Heim?
Afrânio utilizava-se no ar, na falta de pauta jornalística, do espaço “Diga Leitor”, editado nas terças, quintas e sextas-feiras nas páginas do jornal Aqui. Assim o fazia para rebater as opiniões populares que lhe desagradavam e feriam as suas convições sócio-econômicas e ideológicas:
- Francamenti... qui pobreza essa opinião aqui heim? Heim? Heim ô? Heim? Heim ô? U que qui é isso? Dizê qui não si deve dexá uma Usina Atômica, qui é uma geradora di imprego, si instalá aqui na cidade... Tu ti acha inteligenti? Heim? Heim ô? Si a tua consciência tivéssi num mal dia ela ia ti dizê um palavrão... aaah si ia... Heim ô? Heim? Heim ô?
Para abreviar a descrição do perfil físico de Afrânio, cumpre-nos salientar que ele media 1,55 de altura era gordinho, grisalho e quando na rua passava por alguma ninfeta pronunciava bem juntinho ao seu ouvido elogios “calientes”. Fazia juntamente com a sua rádio, “Vento-Sul”, o jogo do prefeito Valadão Paiva e das forças papareias economicamente ativas.
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Tripa era um sujeito bem mais moderado que o seu predecessor Lauro. Freqüentava esporadicamente as reuniões vespertinas do Café & Letras, às 19 hs. O Café & Letras, que situava-se á Rua General Osório nº 500, entre a Floricultura Suíta e o Mini-Mercado Macedinho, era na verdade um ponto de efervescência cultural naquele município. Fora idealizado pelo bacharel e professor de História quase aposentado, Jacó Martins, o “Professor”. Jacó, descontente com o cenário político-social estagnado dos rio-grandinos, com muito sacrifício alugou o referido prédio para nele abrigar o primeiro NPD (Núcleo De Difusão Política). Lá desenrolavam-se diálogos francos e expressivos sobre a desoladora conjuntura municipal, tão pobre em perspectivas.
A ATA da reunião número 14, redigida pelo próprio Professor, fora bastante reveladora:
“Ao décimo nono dia do mês de novembro do ano de 1990, rigorosamente na décima nona hora iniciamos os trabalhos. Sem que todos houvessem ainda sentado-se em suas cadeiras, Tripa, em nome dos seus companheiros da Liga dos Judiados, anunciou que a mesma apóia o êxodo proposto na ATA nº 13 e aprovado por todos os presentes, exceto o Rui, que não veio com boas intenções naquela tarde, disposto à encrencar.
Fica, portanto confirmado através da presente, a nossa grande debandada coletiva em direção à Ilha dos Marinheiros, visando lá estabelecermos habitat em caráter definitivo, sobrevivendo da pesca e do cultivo de legumes, hortaliças e árvores frutíferas. Não agüentamos mais vivermos num ambiente tão poluído em diversos aspectos. Iremos embora porque nada mais nos resta a obter nessa terra cruel. A partir do término desta, apenas duas semanas nos separam do êxodo final.
Rio Grande, 19 de novembro de 1990
A bombástica iniativa daqueles abnegados desbravadores pegou os rio-grandinos de surpresa. Muitos escarneceram de tal idéia, duvidando da sua concretização. Os idealizadores, porém, alheios ao deboche, utilizaram a Rádio Subjetiva FM para divulgarem o êxodo através de uma canção raulseixiana sugerida pelo irmão de criação do Professor:
“Vamos logo que já ta na hora de zarpar, vem sem medo que não vamos naufragar. navegador, vê se na praça tem alguém para vir, a barca de noé tá pra sair (...)”
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- Tão é tudo doente da cabeça... Ondi si viu só!? Í pra Ilha dus Marinhêro... Pur pior qui teja a situação não si dévi abandoná a cidade assim... Mas aproveitando a nossa prosa, Seu Jurandí, u senhor qui é um homi culto, pódi mi ixplicá uma coisa... A minha véia dissi qui saiu nu jornal qui u Exército vai começá à entrá nus terreno qui não tem banhêro di tijolo pra demoli as patente... É verdadi?
- Como é qui é essa história?
- Peraí qui eu vô lá dentro pegá u jornal... Ó taquí, vô lê pru senhor: “ O presidente disse ontem em Uberaba, no Triângulo Mineiro, que o país vai quebrar patentes sempre que for necessário para a saúde e o bem estar do povo brasileiro. Em seu pronunciamento ele foi enfático: - Não estamos aqui para desafiar e quebrar patentes à torto e a direito, mas estamos aqui para dizer que, quando for necessário para a saúde do nosso povo, não hesitaremos... Viu só? I quem não tem condição di fazê um banhêro melhor agora? Tô apavorado! Pur que qui essi homi vai fazê isso cum as nossa patente?
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Três caícos abarrotados de ativistas descontentes com a política do prefeito Valadão Paiva, que cumpre o seu 5º mandato, atracaram no trapiche norte da Ilha dos Marinheiros. Segundo informações de dois pescadores ilhéus encarregados da recepção, eles vieram pra ficar e estão dispostos a tudo para manterem-se no local.
Jornal Aqui, 3 de dezembro de 1990.
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O jornal Folha Papareia não publicou, no referido dia, notícia alguma á respeito.
FIM
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