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quinta-feira, 16 de junho de 2022

A história do Kuat (Sol)

            



           Começo aqui uma sequência de duas postagens sobre o livro " Xingu Os Contos do Tamoin", dos irmãos Villas-Bôas, indigenistas brasileiros da década de sessenta, idealizadores do Parque Nacional do Xingu, reserva ecológica dos povos nativos da floresta, em Mato Grosso do Sul.

                         🌞🌞🌞🌞🌞🌞🌞


            Todo mundo queria ouvir a história que o murá (velho) prometera. Era de quando o Sol ainda não existia. Tudo era escuro. O Sol ainda era gente. A Lua também. O frio era grande, ninguém enxergava. O mundo era triste, ninguém cantava, ninguém dançava. Por isso é que todo mundo queria ouvir a história do Tamoin (avô). Em roda do velho, duas dezenas de meninos, alguns taludos, se acotovelavam por um lugar melhor.

            -- Como eu tinha prometido, hoje eu vou contar a história do Kuat. Era de quando o Sol não existia.

            -- Conta, Tamoin! Puxa vida!... Tudo escuro... Como é que o pessoal fazia? A gente nem podia fazer caminho, roça, nem nada!

            -- Isso mesmo. No começo era tudo escuro. Era sempre noite. Não havia Sol. Não havia dia. Todo mundo morava em roda do cupim, pois era só ali que havia uma luzinha saída duns cupins pequenininhos, que até hoje existem. Era tudo atrapalhado. Ninguém via nada. As aves e os passarinhos faziam as necessidades em cima da gente. Não havia fogo nem roça, nada!

            -- E o Sol e a Lua, Tamoin?

            -- O Sol e a Lua ainda eram gente; não clareavam nada e nem sabiam o que fazer com o pessoal deles que andava morrendo de fome. Ninguém podia trabalhar; todos viviam com fome e sempre pensando num jeito de fazer claridade. Depois de pensar muito e perguntar para todo mundo, o Sol e a Lua ficaram sabendo que na aldeia do urubutsin (urubu) havia claridade, havia dia. Os dois irmão ficaram preocupados e pensando numa maneira de tirar o dia do urubutsin. "Como será que devemos fazer?" falavam eles. "Não é fácil, ele é muito desconfiado", diziam os outros. Depois de muito pensar, os dois, o Sol e a Lua, assentaram um plano. Sabendo que junto com o urubutsin e seus parentes moravam também os passarinhos, os dois irmão mandaram juntar uma porção de coisas que passarinho gosta, como insetos, corós (larva, bicho de pau poder, de bicheira, etc.) Depois de tudo muito bem embrulhado em folha de bananeira, incumbiram as moscas de levarem o "presente" para o urubutsin e sua gente. As moscas foram, mas a primeira dificuldade logo surgiu. Não havia lá ninguém que entendesse o que as moscas diziam. Era só: "Zum... zum... zum...". O urubutsin, desconfiado, perguntou: "Por que vocês vieram?" A resposta das moscas atrapalhava tudo. Para tentar entender as moscas, chamaram o xexéu, aquele pássaro preto que tem penas amarelas na cauda, e que é tido como muito sabido. Não adiantou nada. Ficou tudo na mesma. Daí, o urubutsin mandou chamar o jacubim, que também é tido como muito sabido e, além disso, meio pajé.. O jacubim chegou, fez pajelança, mas não resolveu nada. O zum.. zum... continuava. A coisa já estava começando a complicar. Ambas as partes já estavam se impacientando. De repente, alguém se lembrou do cáá-aiat, parente do xexéu. Ele foi chegando e logo conversando com as moscas. Estas mostraram o embrulho, dizendo que aquilo era simplesmente uma amostra do muito que havia lá embaixo. Aberto o pacote, as coisas que continha foram consumidas rapidamente. Informados de que lá embaixo havia muito daquilo que tinham acabado de comer, todos perguntavam quando é que podiam descer para se banquetear. "Hoje mesmo, se vocês quiserem", responderam as moscas. Urubutsin, sempre desconfiado, dizia que aquilo era golpe dos dois irmãos. Eles eram inteligentes, por isso todo cuidado era pouco. Mesmo assim, os pássaros foram descendo. O urubutsin desceu por último. Os dois irmãos, o Sol e a Lua, tinham matado uma anta e estavam escondidos dentro dela. O Sol olhava para fora pelos olhos da anta. Houve um momento em que ele, sem querer, mexeu com os seus olhos. Nesse instante, todo mundo estava lá comendo a anta. Só o urubutsin e um gavião, também bastante desconfiado, ficaram empoleirados ao longe. Quando o Sol mexeu com os olhos, o gavião, que estava prestando atenção, percebeu e deu um grito de aviso. Todos levantaram vôo. Instantes depois, lá estavam todos de volta na carniça da anta.

           -- Tamoin, esse gavião é muito esperto. Como é que ele foi ver, lá de longe, o Sol piscar os olhos?

           -- Todo gavião é assim. É danado para prestar atenção e muito desconfiado. Vendo que tudo estava correndo direito, o urubutsin resolveu também sair do seu galho e ir comer a anta. Mal ele tinha sentado, o Sol agarrou-o pela perna. Nesse momento, todos, assustados, saíram voando, enquanto o gavião, aquele observador, gritava: "Eu não disse que tinha visto gente lá dentro?" O urubutsin levou um susto muito grande, mas o Sol sossegou-o: "Nós não vamos fazer mal a você. Queremos só que nos dê o dia. foi por isso que chamamos você." Com a prisão do urubutsin, todas as aves fugiram, voltando para a aldeia, lá em cima. Com o chefe urubutsin, ficaram somente o jacubim e o seu parente jacu-verdadeiro. O urubutsin mandou o jacubim ir buscar o dia. Não demorou muito. lá veio ele de volta,  trazendo uma pequena claridade. O Sol não ficou contente com aquele dia quase apagado. O urubutsin  mandou que o jacubim voltasse e trouxesse coisa melhor. Foram precisas algumas viagens para que ele trouxesse o dia verdadeiro nas penas da arara vermelha. O Sol ficou contente e disse: "Chamei você, Tamoin (avô) -- era assim que ele chamava o urubutsin -- não foi para matar, não; foi só para que nos desse o dia. Toda a nossa gente estava morrendo de fome e no escuro. Nós precisávamos do dia. Como é que podíamos fazer roça, casa, caminho, pescar e caçar sem claridade?"

            -- Tamoin, o urubutsin não ficou bravo?

            -- Não ficou, não. Ele até começou a ensinar o Sol direitinho: "De manhã começa o dia; de tarde, ele vai sumindo até desaparecer de vez. Quando isso acontecer, não vá pensar que fomos nós que o levamos de volta. Depois do dia vem a noite. Vai ser sempre assim". Quando o urubutsin acabou de falar, o Sol começou a enfeitá-lo. Raspou-lhe o alto da cabeça com uma pedra, passou urucum e, em volta, amarrou uma linha branca de algodão. "Agora vai ser sempre assim", disse ele. É por isso que todos os urubutsin têm, hoje, a cabeça vermelha contornada por penas brancas. Antes de ir embora duma vez, lá para a sua aldeia, o urubutsin disse para o Sol e para a Luz: "Quando vocês matarem bicho grande, ponham em lugar que eu possa ver lá de cima". Foi assim que começou a existir o dia.

            -- Tamoin, daí em diante não ficou mais escuro?

            -- Não, Xaá, ficou sempre assim.

            -- Já acabou, Tamoin? Essa foi muito curta. Conta outra.

            -- Não, por hoje chega. Se eu contar mais de uma por dia, vocês vão ficar cansados e não vão prestar atenção. E, depois, começam a querer que eu conte outra vez.


            

Um comentário:

J.P. Alexander disse...

Genial historia me gusto mucho. Te mando un beso.