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sábado, 21 de outubro de 2023

Como atingir a imortalidade

   


          Ainda jovem, Beethoven resolveu escrever alguns improvisos sobre músicas de Pergolesi. Dedicou-se durante meses ao trabalho e, finalmente, teve coragem de divulgá-lo.

          Um crítico publicou uma página inteira num jornal alemão, atacando com ferocidade a música do compositor.

          Beethoven, porém, não se abalou com os comentários. Quando seus amigos insistiram para que respondesse ao crítico, ele apenas comentou:

          -- O que preciso fazer é continuar meu trabalho. Se a música que componho for tão boa como penso, ela irá sobreviver ao jornalista. Se tiver a profundidade que espero que tenha, ela irá sobreviver ao próprio jornal. Então, se este ataque feroz ao que faço for lembrado no futuro, será apenas para ser usado como exemplo da imbecilidade dos críticos.

          Beethoven estava certíssimo, Mais de 100 anos depois, a tal crítica foi lembrada num programa de rádio em São Paulo.



Fonte: "Contos do Alquimista" Vol. I- Paulo Coelho- Editora Caras

quinta-feira, 12 de outubro de 2023

A cadela da Íris





             Pra tentar desfazer o clima de desconfiança e mágoa que paira em torno de mim,        particularmente despertado em minhas leitoras, inicio o conto em estado de exaltação ao sexo oposto. Com efeito, em pelo menos dois trabalhos recentes, coloquei demasiada atenção e foco narrativo na sensualidade da mulher, um atributo encravado no próprio  instinto do gênero.
         A Edna de “Namoro de carnaval”, apesar de inteligente, fez-se vulnerável em momento de profunda carência afetiva e isso cobrou-lhe o seu respectivo preço, materializado na forma de Melinho, o “mulato de olhos acesos”. Fui além e talvez tenha me excedido um pouco ao descrever Mika de “Aquela dor de cabeça", volúvel ao extremo, paixão à flor da pele.
          Não pensem vocês, no entanto, que me comprazo em tornar evidentes todos esses peculiares aspectos de feminilidade, como se fosse esta a minha especialidade narrativa. Rebato, pois, esse estigma negativo com dados biográficos, abonadores da conduta deste sexo erroneamente considerado frágil.
          Temos hoje, pra começar, o exemplo da jovem Malala, que confrontou em seu país natal, o Paquistão, os temíveis terroristas Talibãs, lutando pelo direito básico à educação e igualdade de gênero. Foi a mais jovem pessoa a receber o Prêmio Nobel da Paz, aos dezessete anos, em 2014. Retrocedendo alguns séculos, Nzinga¹, rainha angolana nascida em 1582, governou aquela região da África por aproximadamente quarenta anos. Hábil e carismática, comandou grupos de guerreiros e se destacou como grande negociadora, diplomata e estrategista, usando táticas de guerra e de espionagem. Na segunda metade do século XX, tornou-se um símbolo anti-imperialista, servindo de inspiração na luta pela independência do seu país. Madre Teresa de Calcutá² foi uma missionária católica macedônia famosa por seu trabalho de ajuda às populações carentes do terceiro mundo. Logo cedo descobriu sua vocação religiosa. Com dezoito anos entrou para a Casa das Irmãs de Nossa Senhora de Loreto. Criou a congregação Missionárias da Caridade. Dedicou toda a sua juventude aos pobres. Em 1979 recebeu o Prêmio Nobel da Paz. Foi beatificada pela igreja católica em 2003 e canonizada em 2016.
          Já a Íris, pegando um link nesse último exemplo, com certa hesitação lhes revelo, de santa, não tinha definitivamente nada. Prêmio Nobel ou alguma outra distinção de mérito, até onde se sabe, jamais fez jus. Habilidades, até tinha e uma das principais delas lhe rendeu até apelido, desenvolvendo-se  e aperfeiçoando-se nela  após o divórcio, aos vinte anos de idade: “Destruidora de lares”. O título, não fui eu quem lhe outorgou, mas as próprias colegas de trabalho e vizinhas. Acabou, sem dó nem piedade, com nada menos que três casamentos e esses, logo em seguida, após refazer a minha defesa e breve consideração íntima, superficialmente narrarei.
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      Num impulso talvez instintivo, acabei, logo no início, me extraviando do tom conciliador dos primeiros parágrafos. O conto-crônica que despontava ser uma exaltação à presença feminina na história, acabou enveredando, mais uma vez, pelo caminho da baixaria e isso enlaçou-me em contradição. Ao mesmo tempo em que peço a vocês leitoras, desculpas, firmo aqui um compromisso que, daqui pra frente poderá, se descumprido for, abalar ou afirmar definitivamente a minha credibilidade enquanto homem. O deslize parece ter sido mais forte que eu e a caneta, como que em obediência cega ao meu subconsciente, de novo, atraiu-se pela vida alheia. Agora, pois, que dei os primeiros passos àquela já manjada direção, principalmente pra não deixar na mão quem, na melhor das hipóteses, gosta ou tolera, sigo em frente nessa pegada, perdoem-me. 
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          Na visão da ciência comportamental e biológica, o CIO refere-se a um período em que fêmeas de diversas espécies ficam mais receptivas a atividades reprodutivas, buscando com um pouco mais de frequência, parceiros pro acasalamento. Em linhas gerais, isso ocorre apenas em ciclos, como as estações do ano, não é normal que dure permanentemente. Ocorre, no entanto, que em alguns casos pontuais essa particularidade específica vem com mais força ou manifesta-se em intervalos atipicamente curtos.
          A cadela Pretinha, lembro-me bem, na minha antiga rua de chão batido na zona sul de POA, ilustra com riqueza de detalhes esse primeiro caso atípico em que os instintos de procriação não falam mais alto, BERRAM. Não fui só eu quem viu. Vizinhos também presenciaram o bichinho esfregando a “periquita” no focinho dos pretendentes, sem fazer menção de fugir ou impedir o assédio se sentando ao chão, como a maioria das cachorras fazem quando entediam-se de serem usadas como objeto de consumo. Era uma cadelinha acesa, requisitada, ativa em seus momentos de cio que, diga-se de passagem, eram vários num mesmo ano.
          Essa volubilidade ocasionava, como era de se esperar, transtornos aos seus donos, que não a castravam e viam-se frequentemente às voltas com ninhadas de cachorrinhos bebês dentro do pátio. Certa ocasião, numa tentativa de moralizar a situação, Íris e o companheiro encurralaram um cusco amarelo e magro dentro do pátio, enquanto o coitado montava a Pretinha. Em seguida ouviram-se estalos de tábuas batendo no dorso do assustado pet, que enquanto apanhava dos dois ouviu ainda duras reprimendas do tipo:

-- Agora tu vai aprendê a não entrá no pátio dos ôtro!

-- Te atreve a vim pegá minha cadela di novo pra tu vê o que qui eu ti faço, bicho dus inferno! 

          Pretinha, se correta estiverem as minhas contas, pariu três ninhadas no período de um ano, o que torrou de vez a paciência da Íris, que convenceu o parceiro a uma drástica solução: Sumir de vez com a cachorra, numa estrada da zona rural, próxima à Praia do Lami, extremo sul da capital gaúcha. O que fizeram com os filhotes, á cada cria anteriormente nascida, isso ninguém ficou sabendo. Simplesmente, um á um, iam desaparecendo.
          Ironia do destino, e vocês me entenderão logo em seguida, foi o que aconteceu dois meses após o exílio do Lami. A rapariga e o companheiro, por motivo torpe e banal, trocaram tapas dentro de casa, só parando com a intervenção de vizinhos. Foi o fim de uma união estável que durou quase quatro anos e encerrou-se com uma representação judicial de Maria da Penha³. Solicitou ela, medida protetiva que impedia seu antigo macho de aproximar-se á menos de quinhentos metros dela, distância que, no andar da carruagem, acabou sendo reduzida literalmente á nada. Pelo menos umas duas vezes, segundo um vizinho, foram avistados juntos, se trancando em casa sozinhos, pra sessões de nostalgia, coisa que decididamente não é da minha conta, ninguém precisa me lembrar
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          Talvez pra muitos não faça qualquer sentido voltar atrás pra defender algo aparentemente tão inexpressivo quanto uma cadela. Minha simpatia pelos animais, no entanto, impele-me justamente á isso. Esse substantivo feminino, no jargão popular, é um termo pejorativo que denigre a reputação da mulher. Em contraponto ao significado,  nomenclatura á parte, digno de registro, foi a capacidade da Pretinha acolher os filhotes à cada nova ninhada que pariu. Cuidou de todos, com aflorado instinto maternal, esforçando-se pra fornecer-lhes calor e amamentá-los. Defendia os seus protegidos com unhas e dentes. Não deixava visitantes estranhos, macho ou fêmea, homem ou bicho, chegar perto da sua casinha, um antigo balcão cheio de cupins, que chovia dentro e apesar disso foi improvisado como moradia. 
          Os indícios mostram-nos que essa característica pessoal do bichinho não foi herdada da sua antiga dona, que contrariando o que razoavelmente se espera de uma mulher que abriga um feto dentro de si, durante nove meses, não priorizava o bem estar de suas crianças. Parecia, numa análise superficial, odiar cada uma das filhas, estorvos a novos relacionamentos amorosos. Queria curtir, aproveitar aquilo que é bom e a fazia revirar os olhos. Após namorar a dois, juntinho, aconchegado, sentia-se motivada, relax, descontraída, moça. Em casa, por outro lado, em meio aos afazeres domésticos, na companhia das gurias, tinha sempre os olhos turvos, era gritona, irritadiça, depressiva. Gostava, acima de tudo e sem sombra de dúvidas, do romance apaixonado, do beijo na boca e não é por isso que eu a recrimino, quem sou eu. De vocês, aliás, quem não gosta dum enrosco, atire, pois, a primeira pedra. É bom sim, faz bem até pra pele, dizem os cientistas. Tira o stress, aumenta a autoestima, rejuvenesce.
          Ela tava, portanto, ao menos em parte, certa. O que a tornava um caso pitoresco em relação à média habitual era a intensidade com que os instintos reprodutivos invadiam-na. Pelo menos nesse ponto G da questão, em nada a rapariga era superior á sua própria cadela. Era fera no cio e bicho vadio uivando paixão.

                  A destruidora de lares

          Dizem, porém, que ela não foi sempre assim, que acreditou um dia em conto de fadas. Decepcionada, com um B.O (Boletim de Ocorrência) de traição, no seu primeiro caso amoroso sério, entretanto,  separou-se, deixou a filha com a vó e passou a destruir, sem dó nem piedade, matrimônios de papel passado.
          Oscar foi o primeiro, onze anos de casado, quatro filhos, encanador hidráulico muito requisitado na construção civil, pai amoroso que só tinha olhos pra esposa. Conforme o dialeto do povo, “riscava numa só caixa de fósforos”. Ao ouvir Íris, de uma amiga em comum, que tudo naquele lar parecia dar certo, inflou-se de inveja. Encurralou o homem até fazê-lo perdido de amores por ela, ao ponto de pedir divórcio da antiga companheira de uma década. Amigou-se com  o cara por um período não superior a oito meses e após isso, satisfeita com a desunião concretizada, abandonou-o com se faz com roupa desbotada que perde o brilho. 
     Quem acha que a rapariga se satisfez plenamente e que algum lampejo de arrependimento invadiu lhe o peito após seu primeiro caso proibido, é porque não sabe ainda de que maneira a preta se preparou pra receber a visita de um certo técnico em ar condicionado pra uma corriqueira avaliação e orçamento de serviço. Abreviando a minha análise sobre o assunto, não era o tipo de roupa que uma mulher direita espera um homem que, sabidamente, era casado à época. Aquele shortinho talvez fosse aplicável á um ambiente mais descontraído, de paquera, num quiosque á beira-mar, entre descompromissados. O Carlos, pra quem não sabe, era marido do pai da Aninha, colega de escola da sua filha mais velha. Sondou o terreno, observou o rapaz levando a menina pra aula, sempre jovial, brincalhão, às vezes de mãos dadas com a esposa. Informou-se sobre ele e escolheu a melhor hora pra atraí-lo ao seu cafofo do amor, tal qual aranha preparando a teia. Ligou, disse que o ar não tava esquentando, agendou visita pro dia seguinte, no início da tarde. Abriu a porta daquele jeito, bem á vontade, pouca roupa, comunicativa, dengosa. Carlos foi firme, á princípio, não balançou, tinha estrutura e metas estabelecidas com a família. Íris estava, no entanto, preparada ao extremo e obstinada. Perfumou-se, pôs música romântica na caixinha bluetooth, rebolou, se esfregou “acidentalmente” nele, ofereceu amendoim torrado, capturou, literalmente, todos os seus sentidos, vencendo aquela inicial resistência. A exemplo da primeira investida, foi lar desfeito, lar formado. Amigaram-se e dessa vez a paixão ardeu um pouco mais, foram dez meses e mais uma filha. Pariu ainda uma terceira criança, menina novamente, mas isso já faz parte do seu caso seguinte. 
          O cara era de igreja, todo certinho, noventa e nove por cento família. Foi, no entanto, aquele um por cento duvidoso, a causa da sua queda. De uma microscópica fagulha a morena de ancas grandes e cochas grossas fez o seu incêndio. Dessa vez, pra manter comigo meus antigos leitores fiéis, não me aprofundarei nos métodos de sedução empregados, bastando ressaltar que foi exatamente nesse período que surgiu, na boca da vizinhança, o apelido que até hoje, aqui e acolá a acompanha: Destruidora de lares.
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          Feitas as devidas considerações, o fato que agora nos interessa, a voz que não quer calar, a bola da vez, o ponto crucial é o seguinte: Sua relação com as filhas. Desprezava-as como carga que não nos pertence. Não se ocupa mais em dissolver matrimônios, tenho que pontuar, mas não perdeu em nada o gosto pelo namoro. Gosta, é só perguntar, ele não nega, dum chamego bem gotoso.

- Se tu cruzá na frente da câmera quando eu tivé falando no celular com o cara de novo eu vô ti enchê toda di tanto tapa, guria disgraçada...

          Essa foi ouvida num final de tarde, era uma ameaça à filha caçula, que tentava receber alguma atenção ou carinho , num gesto natural e infantil de aproximação à mãe,  que paquerava ao smartphone. A rapariga era fria, distante, impaciente com a própria prole. Como qualquer criança e adolescente, necessitavam cuidados particulares, cada uma delas,  atrapalhando suas pretensões constantes de namoro.
          “Ai que saco!” “Assim eu não aguento”. “Guria me dexa em paz!” “Sai Pretinha, para di mi cherá bunda!” “Infeliz! Não lavasse a loça”! Expressões desse tipo, pronunciadas por ela, empesteavam o ar e eram repetidas à exaustão, praticamente todos os dias na casa. No decorrer do tempo o vocabulário acabou sendo transmitido às filhas, que passaram á brigar entre si pra extravasarem, talvez, o stress daquele convívio.
          Desabafo feito, razões e contrarrazões apresentadas, encerro, não só o conto, mas esse meu ciclo literário, com uma última avaliação pessoal em tom de sentença. Ironias à parte, não me resta qualquer sombra de dúvida: A cadela da história, pejorativamente falando, contrariando prognósticos iniciais, não se chama Pretinha.

                                                                                                                                   Cesar


¹ multirio.rj.gov.br

² ebiografia.com

³ lei federal brasileira cujo objetivo principal é estipular punição adequada e coibir atos de violência doméstica contra a mulher.

domingo, 1 de outubro de 2023

Morte e vida, moça e velha

 



                                           Antes de ser criança eu fui velha                              
                                           e de velha, eu morri.                          
                                           Morri tantas vezes de velha e de  moça
                                          que um dia senti.                                 
                                           Antes de ser velha eu fui criança    
                                          e, ao querer, eu cresci.                    
                                          Cresci tanto de criança pra moça                             
                                          que um dia eu parti                           
                                          Meu sorriso, que era puro, era sincero 
                                          e nunca foi moldura tão somente,               
                                          ficou comigo e de forma permanente       
                                          me acompanha em tudo o que espero.      
                                          Ai, as dores. Também elas são passagem.  
                                          Tatuam o coração de cicatrizes.         
                                          Depois de muito tempo, as imagens
                                          confundem-se em nomes e matizes...                      
                                          Porque eu morri tantas vezes.
                                          Porque eu vivi tanto e tanto.
                                          Porque vivi tantas vezes.
                                          E morri em um só tanto.


                                                                                                        Jacqueline Ainsenman