Antes
que comecem a me espezinhar pelas costas ou pelas redes sociais, como nas
outras vezes em que abordei um
tema tão delicado, salto fora em minha defesa e justifico, antes de qualquer
outra coisa, o porquê de se intitular uma narrativa dessa forma, com um termo
tão revelador de personalidade. Tino é o protagonista da minha história e
coerente é, defini-lo com um adjetivo o mais fiel possível ao seu jeito de ser.
Acaso existe palavra que melhor
defina um sujeito que em sua trajetória inicial como músico, em Forquilhinhas
Do Leste, cidadezinha, é óbvio, do leste gaúcho, cantava e descrevia realidades
sonoras assim:
1-
Queimando um do
bom
2-
Zóio vermelho
3-
Chapadinho, mas
feliz
4-
Aperta logo
5-
Só uns tapinha
6-
Sujô a barra
7-
Quem é que tem?
8-
Pensando longe
9-
De lombra na báia
Se
agora foi chocante e surpreendente ler um set-list ou lista de músicas dessa,
na contracapa de um CD, imaginem qual não terá sido a surpresa do Ari, quando
finalmente recebeu do próprio filho, em mãos, o tão aguardado CD de estréia da
sua banda. Haviam transcorrido oito meses, quase uma gestação, com ensaios
técnicos em estúdio e trabalhos de lapidação das composições. Nunca, no
entanto, Tino havia entrado em maiores detalhes sobre suas, digamos assim, influências sonoras e
de comportamento. O nome do grupo, Brisa, não chegou a despertar desconfianças na cabeça do
velho, que esperava, no entanto, se deparar com outros títulos de canções.
Sabia que o guri tocava baixo num conjunto e ponto final. Não sabia nem queria
saber o que compunham aqueles quatro jovens na garagem do avô de um deles, o
Seu Lauro.
Puxando, tempos depois pela memória o velho
bem que se lembrou de algo. O guri chegava ás vezes um pouco diferente,
estranho para seus padrões habituais. Ele, que era normalmente calado, quando
chegava dos ensaios desatava a falar, puxar assunto toda hora com o pai, sempre
às voltas com o Passat na garagem. Ari achava um pouco estranhas aquelas
mudanças ocasionais de comportamento, mas nunca, até então, chegou a cogitar um
estado alterado de consciência no filho.
Semelhantemente, o jovem, que no dia-dia era reservado, contido,
discreto, desatava á rir por qualquer coisa em determinados momentos, que
coincidência ou não, eram noturnos e sempre após os referidos ensaios na
garagem. Sem falar naquela fome dos diabos que
dava nele de madrugada, assaltando geladeira e baixando estoque da cozinha..
Fora
isso, o velho aparentemente encarava com naturalidade e sem maiores
desconfianças o crescente interesse do seu rebento pela música. Se quisermos
ser mais precisos, em honra á verdade, foram os vizinhos quem haviam, a mais tempo, sacado o que se passava na
realidade:
-- O guri do Ari vive puxando fumo atrás da Caixa
D’água, tu sabia?
Isso disse Gilmar, o bigode, ao interromper 1 minuto e meio de silêncio durante
conversa privada com a própria esposa, na cozinha de casa.
-- Sabe quem eu
vi pegando uma paranga com o Vito, na esquina? Aquele cabeludo, filho do Ari.
-- Haaaaaaaaaaa... Mas tava na cara, Gilda... Esse
nunca me enganô. Gosta de fazê uma fumaça que se péla...Kkkkkkkkkkkkkk
Eneida, mulher do Cláudio Vesgo, havia assim atestado o que sabia das
idas, vindas e movimentos do Tino, filho único do maquinista de trem aposentado,
Ari.
As
músicas que o velho costumava escutar em seu rádio AM de pilha, muito pouco
guardavam semelhanças com as composições ali defendidas pelo filho: Coração Sofredor, Você foi a minha desgraça,
Bolero de um apaixonado, Seresteiro ao
luar e Amor de outono. Todas essas encabeçavam a sua lista de preferências. Essas eram as
composições e melodias que faziam a cabeça do conservador aposentado. Não era
dado a orgias ou aglomerados em festas, salões e botecos. Talvez por isso, tenha ficado tão surpreso e boquiaberto quando leu o encarte daquele CD, naquela emblemática
noite de quarta-feira.
Brisa, guardadas as devidas proporções e raio de alcance,
foi considerada pela crítica especializada da região, o Planet Hemp de Forquilhinhas
do Oeste. Ari, ingênuo, interpretou o nome de batismo do quarteto como singela homenagem ao
suave sopro da natureza. Só mais tarde
veio a perceber que essa Brisa
não era
bem aquela que ele pensava...
O
aposentado, à princípio, fez o certo, buscou auxílio em dicionário pra saber
com certeza o significado daquele nome para aquele conjunto de jovens.
Encontrou, na página 104 do Mini Dicionário FTD que tinha em mãos: Aragem, arzinho
fresco, viração. Não desconfiou de nada.
Achou, em contrapartida, que era só homenagem ao ar fresco, quando na verdade,
a Brisa que soprava na mente do filho era aquela da boa, da tranqüila.
O CD
em mãos foi quem, finalmente, acendeu-lhe a luz da compreensão. Foi a revelação
que ele não esperava e a opinião alheia, lamentavelmente, prevaleceu em sua
decisão final.
Em
casa, o guri era calmo, quieto, não incomodava. Atencioso, solícito, amoroso
com a mãe. Cooperativo, disposto, obediente ao pai. Teve gosto pela música
desde pequeno. Aprendeu a tocar violão de ouvido
e revelou talento precoce para composições. Naquela minúscula cidade do
interior as oportunidades praticamente não existiam. Tinha um só
estabelecimento que contratava músicos de vez em quando, a Churrascaria do
Gago, mas as vagas eram para os tradicionalistas, da lide campeira, do fogo de
chão, da gordura no espeto. Fazer rock, naquela época e local, não enchia
barriga. Não havia mercado para composições locais, muito menos pra um tema tão
espinhoso como a Brisa.
Mesmo
assim, contornando as limitações impostas, os quatro companheiros tiveram gana
suficiente pra alugar um estúdio na vizinha cidade de Penedo Abreu e gravarem o
CD de estréia. Foi uma bomba que caiu e impactou, como nunca antes, as opiniões
e comentários pelas avenidas, vielas e praça de Forquilinhas.
-- Mi diz uma coisa Eneida, foi tu mesmo que viu o
maconhêro sem vergonha do Tino pegando uma paranguinha no Vito?
-- Não, Baxinha, não foi uma, foi duas paranga. Fui eu
sim... Depois fiquei ligada e via ele toda semana lá...
-- Pois é... e o velho, sustentando esse vagabundo.
Ahhh é músico o moço, desculpa... Kkkkkkk. Quem é qui vai vivê di música nêssi
fim di mundo?
-- É mais parece qui ele trabalha na chácara do velho,
como um cavalo. Ajuda no serviço pesado, parece...
-- Não interessa! É vagabundo, marginal, traficante,
maconhêro!
A
Baixinha não foi a única. Comentários cada vez mais mordazes, pejorativos,
tornaram-se a pauta predileta nos chimarrões, festinhas de aniversário e no
campo de várzea, no freqüentado Torneio da Associação. O velho Ari, mais do que
outro qualquer, sofria intensamente com tudo aquilo.
-- O guri do Ari anda no meio da vagabundagem, dos
marginal então... Tinha que ta preso pra não dá mau exemplo e ficá passando
droga... O Exército tinha é que chegá saracoteando bala naquele beco e não
interessa... quem vai comprá sustenta esse negócio. Cadeia neles também.
-- É Nico, mas mesmo se continuá proibindo du jeito
que ta, quem gosta vai dá um jeito e vai continuá comprando. É isso que acaba
financiando esse poder todo do tráfico. Claro que Legalização ou
Regulamentação, tem que sê discutido, esclarecido à sociedade pra que se faça
do jeito que tem que sê feito, entende?
-- Qui discuti
o quê... Tu é PT. Tu é dessa turma do socialismo di isquerda. Tu é comunista.
Tu é admirador dessis inimigo da família, é isso que eu tô vendo.
O
grande impasse era que, inevitavelmente, os burburinhos chegaram aos ouvidos
cheios de pêlos do velho e isso lhe irritou. Na cidadezinha de 17.000
habitantes, literalmente falando, todos se conheciam, desde o último cusco
nascido ao prefeito, que por sinal, acumulava também as funções de parteiro,
capelão, tabelião e, em alguns delitos de menor gravidade e repercussão, juiz
criminalista. E foi justamente o prefeito quem sugeriu a internação forçada de
Tino na clínica de um cunhado seu, o Netto, que tinha um irmão pastor na Igreja
Universal.
Ari,
atazanado com tantos comentários e projeções maldosas, não quis nem ouvir as
explicações do guri. Botou ele pra fora, de mala e cuia, com uma mão na frente
e outra atrás. O aposentado sentiu-se traído, envergonhado, decepcionado. O que
falavam ou ouvia insinuarem a respeito do filho era pra ele insuportável e
exigiu-lhe atitude.
-- Pega as tuas coisa no quarto e vai!
Tino,
antes que interroguem-se os interessados, foi ao mundo, de fato. Foi pra
capital e depois deixou o país, sempre tocando a sua música, suave como o sopro da brisa.
Cesar