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sábado, 7 de março de 2020

U maconhêro



            Antes que comecem a me espezinhar pelas costas ou pelas redes sociais, como nas outras vezes  em que abordei um tema tão delicado, salto fora em minha defesa e justifico, antes de qualquer outra coisa, o porquê de se intitular uma narrativa dessa forma, com um termo tão revelador de personalidade. Tino é o protagonista da minha história e coerente é, defini-lo com um adjetivo o mais fiel possível ao seu jeito de ser.
         Acaso existe palavra que melhor defina um sujeito que em sua trajetória inicial como músico, em Forquilhinhas Do Leste, cidadezinha, é óbvio, do leste gaúcho, cantava e descrevia realidades sonoras assim:

1-   Queimando um do bom
2-   Zóio vermelho
3-   Chapadinho, mas feliz
4-   Aperta logo
5-   Só uns tapinha
6-   Sujô a barra
7-   Quem é que tem?
8-   Pensando longe
9-   De lombra na báia


          Se agora foi chocante e surpreendente ler um set-list ou lista de músicas dessa, na contracapa de um CD, imaginem qual não terá sido a surpresa do Ari, quando finalmente recebeu do próprio filho, em mãos, o tão aguardado CD de estréia da sua banda. Haviam transcorrido oito meses, quase uma gestação, com ensaios técnicos em estúdio e trabalhos de lapidação das composições. Nunca, no entanto, Tino havia entrado em maiores detalhes sobre suas, digamos assim, influências sonoras e de comportamento. O nome do grupo, Brisa, não chegou a despertar desconfianças na cabeça do velho, que esperava, no entanto, se deparar com outros títulos de canções. Sabia que o guri tocava baixo num conjunto e ponto final. Não sabia nem queria saber o que compunham aqueles quatro jovens na garagem do avô de um deles, o Seu Lauro.
           Puxando, tempos depois pela memória o velho bem que se lembrou de algo. O guri chegava ás vezes um pouco diferente, estranho para seus padrões habituais. Ele, que era normalmente calado, quando chegava dos ensaios desatava a falar, puxar assunto toda hora com o pai, sempre às voltas com o Passat na garagem. Ari achava um pouco estranhas aquelas mudanças ocasionais de comportamento, mas nunca, até então, chegou a cogitar um estado alterado de consciência no filho.
           Semelhantemente, o jovem, que no dia-dia era reservado, contido, discreto, desatava á rir por qualquer coisa em determinados momentos, que coincidência ou não, eram noturnos e sempre após os referidos ensaios na garagem. Sem falar naquela fome dos diabos que dava nele de madrugada, assaltando geladeira e baixando estoque da cozinha..
           Fora isso, o velho aparentemente encarava com naturalidade e sem maiores desconfianças o crescente interesse do seu rebento pela música. Se quisermos ser mais precisos, em honra á verdade, foram os vizinhos quem haviam, a  mais tempo, sacado o que se passava na realidade:

-- O guri do Ari vive puxando fumo atrás da Caixa D’água, tu sabia?

          Isso disse Gilmar, o bigode, ao interromper 1 minuto e meio de silêncio durante conversa privada com a própria esposa, na cozinha de casa.

 -- Sabe quem eu vi pegando uma paranga com o Vito, na esquina? Aquele cabeludo, filho do Ari.
-- Haaaaaaaaaaa... Mas tava na cara, Gilda... Esse nunca me enganô. Gosta de fazê uma fumaça que se péla...Kkkkkkkkkkkkkk

           Eneida, mulher do Cláudio Vesgo, havia assim atestado o que sabia das idas, vindas e movimentos do Tino, filho único do maquinista de trem aposentado, Ari.
          As músicas que o velho costumava escutar em seu rádio AM de pilha, muito pouco guardavam semelhanças com as composições ali defendidas pelo filho:  Coração Sofredor, Você foi a minha desgraça, Bolero de um apaixonado,  Seresteiro ao luar e  Amor de outono. Todas essas encabeçavam a sua lista de preferências. Essas eram as composições e melodias que faziam a cabeça do conservador aposentado. Não era dado a orgias ou aglomerados em festas, salões e botecos. Talvez por isso, tenha ficado tão surpreso e boquiaberto quando leu o encarte daquele CD, naquela emblemática noite de quarta-feira.
           Brisa, guardadas as devidas proporções e raio de alcance, foi considerada pela crítica especializada da região, o Planet Hemp de Forquilhinhas do Oeste. Ari, ingênuo, interpretou o nome de batismo do quarteto como singela homenagem ao suave sopro da natureza. Só mais tarde veio a perceber que essa Brisa não era bem aquela que ele pensava...


          O aposentado, à princípio, fez o certo, buscou auxílio em dicionário pra saber com certeza o significado daquele nome para aquele conjunto de jovens. Encontrou, na página 104 do Mini Dicionário FTD que tinha em mãos: Aragem, arzinho fresco, viração. Não desconfiou de nada. Achou, em contrapartida, que era só homenagem ao ar fresco, quando na verdade, a Brisa que soprava na mente do filho era aquela da boa, da tranqüila.
         

             O CD em mãos foi quem, finalmente, acendeu-lhe a luz da compreensão. Foi a revelação que ele não esperava e a opinião alheia, lamentavelmente, prevaleceu em sua decisão final.

       Em casa, o guri era calmo, quieto, não incomodava. Atencioso, solícito, amoroso com a mãe. Cooperativo, disposto, obediente ao pai. Teve gosto pela música desde pequeno. Aprendeu a tocar violão de ouvido e revelou talento precoce para composições. Naquela minúscula cidade do interior as oportunidades praticamente não existiam. Tinha um só estabelecimento que contratava músicos de vez em quando, a Churrascaria do Gago, mas as vagas eram para os tradicionalistas, da lide campeira, do fogo de chão, da gordura no espeto. Fazer rock, naquela época e local, não enchia barriga. Não havia mercado para composições locais, muito menos pra um tema tão espinhoso como a Brisa.
     Mesmo assim, contornando as limitações impostas, os quatro companheiros tiveram gana suficiente pra alugar um estúdio na vizinha cidade de Penedo Abreu e gravarem o CD de estréia. Foi uma bomba que caiu e impactou, como nunca antes, as opiniões e comentários pelas avenidas, vielas e praça de Forquilinhas.

-- Mi diz uma coisa Eneida, foi tu mesmo que viu o maconhêro sem vergonha do Tino pegando uma paranguinha no Vito?

-- Não, Baxinha, não foi uma, foi duas paranga. Fui eu sim... Depois fiquei ligada e via ele toda semana lá...

-- Pois é... e o velho, sustentando esse vagabundo. Ahhh é músico o moço, desculpa... Kkkkkkk. Quem é qui vai vivê di música nêssi fim di mundo?
-- É mais parece qui ele trabalha na chácara do velho, como um cavalo. Ajuda no serviço pesado, parece...
-- Não interessa! É vagabundo, marginal, traficante, maconhêro!   

         

          A Baixinha não foi a única. Comentários cada vez mais mordazes, pejorativos, tornaram-se a pauta predileta nos chimarrões, festinhas de aniversário e no campo de várzea, no freqüentado Torneio da Associação. O velho Ari, mais do que outro qualquer, sofria intensamente com tudo aquilo.

-- O guri do Ari anda no meio da vagabundagem, dos marginal então... Tinha que ta preso pra não dá mau exemplo e ficá passando droga... O Exército tinha é que chegá saracoteando bala naquele beco e não interessa... quem vai comprá sustenta esse negócio. Cadeia neles também.

-- É Nico, mas mesmo se continuá proibindo du jeito que ta, quem gosta vai dá um jeito e vai continuá comprando. É isso que acaba financiando esse poder todo do tráfico. Claro que Legalização ou Regulamentação, tem que sê discutido, esclarecido à sociedade pra que se faça do jeito que tem que sê feito, entende?
 -- Qui discuti o quê... Tu é PT. Tu é dessa turma do socialismo di isquerda. Tu é comunista. Tu é admirador dessis inimigo da família, é isso que eu tô vendo.

          O grande impasse era que, inevitavelmente, os burburinhos chegaram aos ouvidos cheios de pêlos do velho e isso lhe irritou. Na cidadezinha de 17.000 habitantes, literalmente falando, todos se conheciam, desde o último cusco nascido ao prefeito, que por sinal, acumulava também as funções de parteiro, capelão, tabelião e, em alguns delitos de menor gravidade e repercussão, juiz criminalista. E foi justamente o prefeito quem sugeriu a internação forçada de Tino na clínica de um cunhado seu, o Netto, que tinha um irmão pastor na Igreja Universal.
          Ari, atazanado com tantos comentários e projeções maldosas, não quis nem ouvir as explicações do guri. Botou ele pra fora, de mala e cuia, com uma mão na frente e outra atrás. O aposentado sentiu-se traído, envergonhado, decepcionado. O que falavam ou ouvia insinuarem a respeito do filho era pra ele insuportável e exigiu-lhe atitude.

-- Pega as tuas coisa no quarto e vai!

          Tino, antes que interroguem-se os interessados, foi ao mundo, de fato. Foi pra capital e depois deixou o país, sempre tocando a sua música, suave como o sopro da brisa.



                                                                                        Cesar
          



         






         
           
           


Um comentário:

Dioceli disse...

E assim nossa sociedade condena antes mesmo de saber quem realmente a pessoa é.