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segunda-feira, 7 de setembro de 2020

A escravidão e presença negra em Rio Grande- Parte II



 Vende-se um escravo de meia idade, que dá jornal de 640 réis diários. Quem o pretender dirija-se à Tipografia do Diário. (4)

Durante o século 17, especialmente entre 1601 a 1640, os portugueses dominaram o tráfico de escravos negros no Rio da Prata. Com o fim da União Ibérica, o comércio continuou através do contrabando com base no Rio de Janeiro. A fundação da Colônia do Sacramento em 1680 teve como um dos objetivos implementar essas atividades comerciais com o hinterland do sistema colonial espanhol no Prata. Com o governador Dom Manuel Lobo vieram 200 homens, dois padres jesuítas, carpinteiros, pedreiros e 60 negros. Para o historiador Corcino Medeiros dos Santos (5), os portugueses criaram a mentalidade de que qualquer tipo de trabalho manual era destinado ao escravo e não ao homem branco europeu. Este viera ao Novo Mundo não para lavrar a terra como o camponês, mas para dirigir, para mandar, dominar e enriquecer-se à custa do trabalho escravo. Os pioneiros que se estabeleceram nos territórios do atual Estado do Rio Grande do Sul não eram infensos a estas idéias. É por isto que já nas expedições de Brito Peixoto e João de Magalhães, encontramos a presença de escravos. Conforme Santos, durante os confrontos militares entre Portugal e Espanha pelo controle da barra do Rio Grande, os espanhóis fizeram presas de guerra no ano de 1770 de sete canoas de pescadores do Rio Grande e levaram com elas, além de seus capitães, 20 escravos que as tripulavam. Para efeito de indenização, as canoas foram avaliadas em 90$000 cada uma e os escravos a 132$000 réis cada um, que totalizam 3:270$000 réis. Também os portugueses apresentaram às autoridades espanholas uma relação nominal de 278 escravos que desertaram para a América Espanhola em conseqüência da desorganização provocada pela guerra de 1763, quando da invasão da Vila do Rio Grande. A documentação não permite precisar os escravos evadidos para o espaço platino e aqueles que permanecem com os portugueses na Capitania do Rio Grande. Durante o comércio legal de escravos nos quadros do tráfico negreiro transatlântico até a primeira metade da década de 1850, a chegada de negros à Província se dava pelo porto do Rio Grande. A recuperação  quantitativa dessas populações e também de imigrantes poderia ser resgatada através da documentação da Alfândega do Rio Grande, porém essa fonte virou papel picado na década de 1970. Um registro que ficou da passagem de escravos pela Alfândega do Rio Grande foi deixado por Antônio José Gonçalves Chaves, que levantou para o período de 1816 a 1822 a chegada de 6.157 escravos ao Rio Grande do Sul. Esses dados destruídos seriam fundamentais para o resgate demográfico. As localidades de relevância econômica tinham maior alocação de mão-de-obra escrava, como é o caso de Pelotas, Porto Alegre, Rio Pardo e Rio Grande. A importância econômica da Vila do Rio Grande acentuou- se desde os primórdios do século 19, como se constata pela instalação da Alfândega em 1804. Em 1820, Auguste Saint-Hilaire observou o trabalho dos escravos nas ruas da Vila do Rio Grande: 

“Vi negros ocupados em desentulhar os arredores das casas de seus donos, que me informaram serem obrigados a repetir, sem descanso, esse trabalho”,(6)

 Registrou, em suas anotações,  o avanço das areias que soterravam as residências. Ele viu “negros acocorados” vendendo couves, cebolas e alfaces na rua. Nas tarefas urbanas de prestação de serviços aos senhores, ou alugados para atividades gerais para o público, a presença negra é constante em diferentes modalidades de trabalho na Vila do Rio Grande. As atividades ligadas ao porto, carregamento e descarregamento das mercadorias das embarcações, também contavam com a presença do escravo negro. A participação da mão-de-obra dos escravos nas atividades urbanas e domésticas não era ocasional, mas intensa em Rio Grande. Senhores de escravos alugavam os seus escravos a outros senhores ou comerciantes para um amplo espectro de atividades. Os escravos de aluguel eram presença comum nas vilas ou cidades do Brasil. Para Leila Algranti, no livro "O feitor ausente", os senhores que possuíam mais escravos do que necessário podiam alugá-los a terceiros e conseguir dessa forma um bom rendimento, além da manutenção dos seus serviços. O sistema de aluguel de escravo era uma das características mais importantes da escravidão urbana. Enquanto as mulheres negras eram procuradas para serviços domésticos e como amas-de-leite, os homens podiam atuar em serviços gerais ou especializados, como pedreiros, pintores, cozinheiros, tanoeiros, carpinteiros, vendedores de frutas e legumes etc. Um comentário de um viajante inglês em sua estadia no Brasil durante o período imperial sintetiza a participação dos negros no funcionamento da sociedade tradicional brasileira:

 " O negro não só é o trabalhador dos campos, mas também o mecânico; não só racha a lenha e vai buscar água, mas também com habilidade de suas mãos contribui para fabricar os luxos da vida civilizada. O brasileiro usa-o em todas as ocasiões e de todos os modos possíveis; desde cumprir a função de mordomo e cozinheiro até servir os propósitos de cavalos; desde fabricar vistosos berloques, a fazer a roupa, até executar o mais vil dos deveres servis". (7)

Ressaltando a importância da mão-de-obra escrava, o sargento- mor Domingos Fernandes nos primórdios do século 19 alertava que não se deveria exportar escravos para os territórios espanhóis no Rio da Prata, atitude perniciosa ao Estado Português, 

"porque este não pode subsistir sem escravos e por maior que fosse o número deles, nunca deixaria de achar terras incultas, em cujo trabalho se empregassem. E quanto maior é o número de escravos que levam os Espanhóis tanto mais diminuem as nossas forças e aumentam a suas. (8)

2.1 – Crescimento da população e o contingente negro 

 A partir de diversas fontes documentais e censos, pode-se buscar uma aproximação, mesmo que imprecisa, da evolução demográfica da atual cidade do Rio Grande e da presença dos contingentes negros ao longo dos séculos. Em 1744 a população era de aproximadamente 1.400 almas (a maioria militares) e poucos negros vindos com os oficiais aqui estavam vivendo; na década de 1750, com a chegada dos açorianos, ocorreu um incremento na população da Vila em mais de 1.300 pessoas. Porém, com a invasão espanhola em 1763, grande parte da população dispersou-se e, com exceção da presença militar após a retomada lusitana em 1776, a população sofreu uma profunda redução. Em 1780 a população do Governo do Rio Grande era de 17.923 habitantes, sendo que na Freguesia do Rio Grande havia 1.643 brancos, 182 índios e 596 pretos, totalizando 2.421 habitantes. Em 1803 a Vila do Rio Grande possuía cerca de 2.500 habitantes e 500 fogos (casas). Em 1814 o censo é mais específico, indicando na Vila do Rio Grande 3.590 habitantes, sendo 2.047 brancos de ambos os sexos, 38 indígenas, 160 livres de todas as cores, 1.119 escravos e 226 recém-nascidos. Nesse ano, a população estimada para o Rio Grande do Sul era de aproximadamente 70.000 habitantes (32.300 brancos, 8.655 indígenas, 5.399 livres, 20.611 escravos e 3.691 recém-nascidos). Em 1848 a população da cidade do Rio Grande estimada pelas listas eclesiásticas era de 10.152 habitantes. Em 1858, era de 13.514 habitantes, sendo 11.375 livres, 52 libertos, 2.087 escravos. No relatório de 1861 da Santa Casa de Misericórdia da cidade do Rio Grande, o provedor registrou que, das 423 pessoas falecidas naquele ano, 291 eram livres e 132 escravas. Também afirmou que dos enterramentos no Cemitério do Bom Fim entre 1843 e 1855, 2.865 eram livres e 2.705 eram escravos, o que demonstra quase uma paridade no quantitativo de óbitos. Em 1872, Rio Grande totalizava 16.883 habitantes e 2.226 casas. Em 1890, Rio Grande e Povo Novo totalizavam 24.653 habitantes. Levantamento diferenciado foi feito por Margaret Bakos e Zilá Bernd (9), indicando a população escrava na Vila/Cidade do Rio Grande nos seguintes patamares: ano de 1780 – 596 escravos; 1814 – 1.119 escravos; 1859 – 4.369 escravos; 1884 – 2.345 escravos; 1885 – 1.616 escravos; 1887 – 844 escravos. 


                                                                   
                                                                  
                                                                  REFERÊNCIAS


4  Diário do Rio Grande. Rio Grande, 26 jan. 1855. 

5  SANTOS, Corcino Medeiros dos. Economia e sociedade do Rio Grande do Sul século XVIII. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1984.

6  SAINT-HILAIRE, Auguste. Viagem ao Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Martins Livreiro, 1990.

7  Citado por Marilene Nogueira da Silva. Negro na rua: a nova face da escravidão. São Paulo: Hucitec, 1988. 

8  FERNANDES, Domingos José Marques. Descrição corográfica, política, civil e militar da capitania do Rio Grande de São Pedro do Sul (1804). Pesquisas. História, Porto Alegre, Instituto Anchietano de Pesquisas, n. 15, p. 88, 1961. 

9  BERND, Zilá; BAKOS, Margaret. O negro: consciência e trabalho. Porto Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS, 1991, p. 72. 



                                                  Continua...




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