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quarta-feira, 9 de setembro de 2020

A escravidão e presença negra em Rio Grande- Parte IV

 


Um perfil da população negra envolvida com a justiça, os escravos em processos criminais, foi pesquisado no Arquivo Público do Rio Grande do Sul por Solimar Lima (22), que, para o período de 1818 a 1833, encontrou referências de autos de prisão para a Vila do Rio Grande. Nesses autos, era feita a descrição  física de todos os presos, ocorrendo o registro de vários escravos. Conforme Lima, o prisioneiro normalmente chegava a pé à delegacia ou cadeia, não importando a distância em que havia sido detido. Preso pelos pulsos, escoltado por dois os três soldados. Se mais de um, com uma mesma corda ou corrente amarravam-se todos, em fila. O cortejo chegava à cadeia tendo à frente ou na retaguarda o oficial encarregado da prisão. No caso de escravos, muitos eram conduzidos amarrados e puxados por capitães- do-mato. Após a prisão, os autos buscavam o registro das características físicas, propiciando no presente um resgate quase fotográfico desses infelizes personagens, exemplificado nos registros a seguir: 

– o réu Antônio, mulato escravo de Manoel de Oliveira, de Rio Grande, era de estatura “muito baixa e muito grosso do corpo, rosto redondo e feio bastante, cabelo encarapinhado com algum branco, com uma cutilada na testa do lado direito, e sinal de outra no esquerdo, olhos pardos, nariz chato, orelhas grandes e calvo no meio da cabeça, boca grande”. 

– Severino, pertencente ao Padre Paulo Joaquim de Sousa Prates, era de “estatura alta, rosto redondo com sinais de bexigas e com uma cicatriz no lado esquerdo ao pé da orelha”.

 – Brás, escravo do vigário Jacinto José Pinto, era “de estatura ordinária, rosto redondo, barba grande e preta, cheio do corpo, nariz chato, beiços grossos, com sinais de bexigas e com um vinco ou cova sobre o nariz, tendo um dedo do pé direito cortado”. 

– Antônio, preto de José Antonio Vaz, tinha “estatura baixa, rosto redondo, olhos pardos, nariz chato, beiços grossos, sem camisa, com um colete de baeta azul muito velho e uma tanga de algodão, com grilhões aos pés”.

 – Antônio, do mestre pedreiro José Martins, possuía “estatura ordinária, magro, pouca barba, olhos pardos e deles doente da vista”.

 

É comum a referência a problemas de embolia (obstrução de vaso sanguíneo) nos olhos e de bexigas (marcas na pele deixadas pela varíola). Nesses autos, segundo Solimar Lima, os retratos compõem um quadro de miséria. Fisicamente os escravos estavam muito próximos de seres raquíticos. Vítimas das péssimas condições de cativeiro. Homens com tamanho de crianças, marcados por doenças e deformações corporais. Herança do tráfico, da vida nas senzalas e das extenuantes jornadas de trabalho. 

4 – A ESCRAVIDÃO E O ÁRDUO CAMINHO PARA A LIBERDADE

Não há mais edificante espetáculo, ainda não reconhecemos ato mais belo do que aquele em que existe um homem a derramar pela classe opressa, pelo fruto escravo, a divina luz, coada da Liberdade! (...) Caminhemos, ergamos o pavilhão nacional a uma altura suficiente, a que não possa salpicá-lo a lama do escravagismo. O caminho é completamente nosso; caminhemos, resolutos, para ele. (23)

 As atividades de comércio de escravos faziam parte do cotidiano da cidade do Rio Grande, assim como do Brasil Colonial e Imperial.  

Analisando o comércio interno à cidade de Rio Grande, consideramos o quanto à atividade de leilão e venda foram corriqueiras. Estava presente em todas as casas, no cotidiano das pessoas. Revelando o quanto a escravidão perpassou as relações sociais. Para lavar roupa, passear com uma criança, era necessário o escravo. A elite brasileira tinha uma visão perversa do trabalho que perpassa até hoje. Esse comércio interno, doméstico e diluído, visava especialmente suprir com mão-de-obra escrava as atividades improdutivas. Sem sombra de dúvida, o comércio de escravos foi o grande negócio da escravidão. (24)

Modificar práticas sociais de perspectiva senhorial fundadas na escravidão foi um processo lento e um desafio ainda não concluído. Afinal, ao longo de mais de três séculos, o escravo era uma “mercadoria que, em caso de necessidade, podia ser vendida ou alugada, possuindo, assim, um duplo valor: valia o que produzia e valia como mercadoria. Além de que, possuir escravos conferia ao indivíduo posição social (...) sendo apontados pela coletividade como pessoas de relevo e projeção”. (25)  
A partir de 1869, as sociedades ou clubes abolicionistas passaram a comprar cartas de alforria. Até a imprensa passa a reduzir ou negar-se a publicar anúncios de compra, venda ou aluguel de escravos. O avô do deputado Carlos Santos, o carpinteiro Manoel Conceição dos Santos, atuou ativamente na luta abolicionista e, na condição de recém-liberto, participou de um clube e de um raro jornal: A Voz do Escravo, um veículo abolicionista e republicano feito por ex- escravos e editado em Pelotas a partir de 1881.
 Em Rio Grande, circulou entre março e outubro de 1884 o periódico A Luz, que defendia a liberdade dos escravos e o acesso destes à instrução, pois considerava a educação como a forma de emancipação da condição servil e inserção na sociedade. Na defesa da abolição, ressaltava: 
 
É impossível que os nossos patrícios não compreendessem já, que viver escravo é ter no coração espinhos cruciantes que o retalham; que, enquanto entre nós perdurar o elemento servil, não há de haver Pátria, e sim o aconchego de uma multidão de homens, que pouco se dão em atormentar seus semelhantes, seviciando-se barbaramente. (26)

 É relevante assinalar que na cidade do Rio Grande foi fundada em 1850 a Sociedade Liberdade à Escravatura, o primeiro clube abolicionista do Rio Grande do Sul, em cujo programa estava expresso: 

Sendo esta a época mais profícua para se coadjuvar ao governo imperial na extinção da escravatura no Brasil, recorre-se à filantropia dos habitantes desta cidade para inscreverem-se numa associação, mediante 500 réis por mês, a fim de, em cada ano, libertar-se uma ou mais cativas, conforme os fundos da sociedade. (27)

Posteriormente, na década de 1880, intensificou-se o movimento abolicionista em Rio Grande, com a fundação do Clube Abolicionista 14 de Julho, a Sociedade Abolicionista 28 de Novembro e a Comissão Abolicionista. (28) 



 

                                                               REFERÊNCIAS


22  LIMA, Solimar. Retrato falado: o escravo em processos criminais. In: FLORES, Moacyr (Org.). Negros e índios: história & literatura. Porto Alegre: Edipucrs, 1994.

23  Jornal abolicionista A Luz. Rio Grande: 31 ago. 1884. Ver: ALVES, Francisco das Neves. A Luz: uma folha abolicionista na cidade do Rio Grande. Rio Grande: Fundação Universidade Federal do Rio Grande, 2002.

24  GATTIBONI, Rita. O comércio de escravos na cidade do Rio Grande na década de 1860 In: FLORES, Moacyr (Org.). Negros e índios: história e literatura. Porto Alegre: EDIPUCRS, 1994, p. 207.

25  COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia. São Paulo: Brasiliense, 1989.

26  A Luz. Rio Grande, 31 maio 1884. Outros jornais da cidade que nesse período defenderam a causa abolicionista foram O Artista, O Bisturi e o Echo do Sul. 

27  Programa da Sociedade à Liberdade da Escravatura In: ERICKSEN, Nestor. O sesquicentenário da imprensa sul-rio-grandense. Porto Alegre: Sulina, 1977, p. 75. 

28  SCHIAVON, Carmem. Maçonaria e abolição da escravatura no Sul do Brasil. Rio Grande: FURG, 2004, p. 89.



                                          Continua...




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