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domingo, 6 de setembro de 2020

Escravidão e presença negra em Rio Grande- Parte I

                                                             


                                                                               RESUMO

 O artigo desenvolve os fundamentos preliminares para a compreensão do processo escravista na cidade do Rio Grande nos séculos 18 e 19. 

PALAVRAS-CHAVE: Escravidão negra; cidade do Rio Grande; séculos 18 e 19.

A presença da população negra junto à barra do Rio Grande de São Pedro remonta à vinda, até as proximidades da sede da atual cidade de São José do Norte, da frota de João de Magalhães, que perdurou entre 1725 e 1733, tendo a função estratégica de controle do fluxo de gado da Vacaria do Mar visando à dinamização da economia brasileira nos quadros do sistema colonial. A iniciativa da frota partiu do governador de São Paulo, D. Rodrigo César de Menezes, que ordenou ao capitão- mor da Laguna, Francisco de Brito Peixoto, que se deslocasse à barra do Rio Grande para fundar uma povoação. Posicionando-se na parte norte da barra do Rio Grande de São Pedro, lá permaneceram impedindo a passagem de castelhanos ou Tapes, nas campanhas do Rio Grande, sendo a maior parte desse corpo constituída por homens negros escravos. O povoamento da planície costeira na restinga de São José do Norte processou-se nesse quadro de expansão lagunense voltada ao controle do fluxo do gado da Vacaria do Mar. Até julho de 1734, já estavam estabelecidas 27 fazendas ou invernadas na restinga de São José do Norte (para o descanso do gado a ser transportado para São Paulo), demonstrando o interesse luso-brasileiro nesta atividade econômica e a necessidade em avançar para o Sul do Brasil. A partir de 1737, a atual cidade do Rio Grande se projeta como um laboratório de experiências culturais, biológicas e de complexas relações sociais que envolveram soldados, europeus, açorianos, índios, negros e colonizadores do Brasil e da Colônia do Sacramento. Na barra do Rio Grande de São Pedro tem início a formação luso-brasileira no Rio Grande do Sul.

1 – A PRESENÇA DOS NEGROS NOS PRIMÓRDIOS DA COLONIZAÇÃO

 Na chegada da expedição do Brigadeiro José da Silva Paes em fevereiro de 1737, alguns negros, possivelmente escravos de oficiais, estavam a bordo das embarcações quando da oficialização do controle português na barra do Rio Grande ¹. No ano de 1738, na Freguesia do Rio Grande de São Pedro, foram batizados dois escravos, sendo um nascido no Brasil e outro na África. Até 1749 foram batizados 98 escravos. Já os óbitos de escravos entre 1738 e 1749 totalizaram 54 indivíduos. Nesse período inicial do povoamento, o escravo teve pequena participação no conjunto da população. Quantificar com precisão a presença dos escravos negros no Rio Grande é tarefa inviável pela inexistência de censos demográficos, listas de escravos e de registros paroquiais precisos. Os registros de óbito são incompletos pela tendência do senhor de evitar o pagamento de despesas com o sepultamento e por ser comum sepultar os escravos nas fazendas. Assim, os registros de batismo eram incompletos. Até 1763, foram registrados somente 18 casais legítimos de escravos, o que mostra que os senhores não tinham interesse em legitimar as relações de concubinato praticadas por seus escravos. Nos registros documentais, a única informação confiável é a do nome do dono do escravo. Entre 1750 e 1763 existiram no Rio Grande 139 senhores de escravos. Essa camada senhorial da Freguesia, a elite local, era composta principalmente por militares, a maioria dos quais foram os primeiros povoadores que receberam terras da Coroa Portuguesa e que participaram da exploração do gado que aí existia. No século XVIII, a baixa rentabilidade da pecuária fez com que fosse utilizada a mão-de-obra indígena de remuneração irrisória e o trabalho livre. As aspirações alimentadas pela mentalidade senhorial dominante na sociedade colonial brasileira determinaram a formação de plantéis de escravos, nas estâncias do Rio Grande, destinados principalmente às atividades domésticas, consideradas economicamente não-produtivas, e ao setor de subsistência da propriedade (horta, pomar, lavoura e indústria doméstica de queijos, lingüiças, charque etc.), quando não tanto pela necessidade do serviço, pelo zelo da ostentação e do luxo. As condições sócio-econômicas precárias que caracterizaram essas décadas iniciais do povoamento da Vila do Rio Grande de São Pedro diferiram dos níveis de expansão do sistema escravista registrado em localidades portuárias e que concentram as atividades político-administrativas.

Com a dominação espanhola da Vila do Rio Grande (1763-1776), um personagem que se tornaria uma lenda nas atividades de guerrilha movidas contra tropas castelhanas utilizou escravos negros em suas incursões militares, precedendo a utilização dos lanceiros negros na Revolução Farroupilha. Um poema escrito em Montevidéu por um soldado espanhol, em 1778, perpetuou o medo em enfrentar estes homens: “Pinto Bandeyras llamado, era em efecto este tal, Fidalgo de Portugal, yera Coronel graduado; lleva siempre a su lado, segun voces diferentes, horror de negros valientes, que el temor no conocían, mas por Dios que no querian, hacerse nunca presentes”.² A presença de escravos chamou a atenção do comerciante francês John Luccock. Ele afirmou que, em 1809, uma porção considerável da população da América do Sul consistia de escravos: “Era de uso remeter para São Pedro, provindo de outras partes do Brasil, os escravos considerados incorrigíveis, e é certo que por aqui encontrei não só maus escravos como maus senhores”. A dificuldade em conseguir escravos e os altos preços “pode justificar o bom trato que lhes davam”, parecendo estarem “melhores e mais felizes” do que em outras províncias. Na cidade “pareceu-me que a situação deles era tão boa quanto lhes podia permitir a sua mentalidade e costumes”. A mão-de-obra negra também estaria ligada aos ofícios de carpinteiro e outras ocupações, sendo alugados para desenvolver essas atividades e, devido à carência de especialização profissional, eram “bastante estimados pelas suas prendas para que os protejam de fadigas excessivas e maus tratos”. Escravos eram ocupados no ofício de lavar roupa no sul da Vila – “ali existe um tanque com aberturas, encravado no chão, para dentro do qual as águas da baía destilam através da areia, perdendo assim o sal”. Um negro podia ganhar “numa hora dois vinténs, ou seja, cerca de quatro dinheiros, quantia suficiente para lhes prover o alimento por todo um dia”. Quando um negro é encontrado vadiando “e se lhe aconselha a tomar qualquer serviço, a resposta mais comum é: já ganhei meu dia. Pode-se, aliás, afirmar que talvez não exista uma só pessoa indigente na cidade...” Porém, Luccock relata que o racismo está presente, pois basta que uma pessoa tenha “a tez de um preto para que se o designe como objeto sobre o qual a tirania se pode exercer”³

                                                                                              Luiz Henrique Torres


                                                           REFERÊNCIAS 

 ¹QUEIROZ, Maria Luiza Bertulini. A Vila do Rio Grande de São Pedro. Rio Grande: Ed. da FURG, 1987, p. 50

² TORRES, Luiz Henrique. Câmara Municipal do Rio Grande: berço do parlamento gaúcho. Rio Grande:Salisgraf, 2001, p. 49. 

³ LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro. Belo Horizonte; São Paulo: Itatiaia/EDUSP, 1975.


Fonte: periodicos.furg.br


                                   Continua...




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