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terça-feira, 8 de setembro de 2020

A escravidão e presença negra em Rio Grande- Parte III



 3 – ESCRAVIDÃO E RESISTÊNCIA 

Às 11 horas da manhã é enforcado no Largo do Moinho (Praça Barão de São José do Norte) o preto Porfírio, que tentara contra a vida do seu senhor, Felipe Antonio de Araújo, conhecido por Felipe Galego, estabelecido com taverna à rua dos Cômoros (rua Silva Paes) esquina da do Castro (rua Duque de Caxias). (10)

 

A pedagogia da desumanização e da brutalização exercida pela sociedade escravista passava pelas condições subumanas das viagens promovidas pelos empresários do tráfico negreiro da África até o Brasil e pelo estado de saúde dos sobreviventes ao chegar aos portos de destino. 

Depoimentos da época descrevem o desembarque dos homens e mulheres, adultos, jovens e crianças escravizados. Pareciam fantasmas. Os homens nus, os sexos desproporcionalmente grandes para os corpos magérrimos; as mulheres, só ossos, as tetas caídas; as crianças arrastadas pelas mãos, pequenos zumbis (11).

Eram prática comum, inclusive em Rio Grande, os leilões de escravos. Conforme Emília Viotti da Costa (12), os negros ficavam expostos sobre tablados e o leiloeiro os apregoava, anunciando suas qualidades. Suas descrições que afrontam a dignidade humana não chocavam os habituais freqüentadores de leilões. Em 1820, Auguste Saint-Hilaire registrou a severidade com que os escravos, no caso das charqueadas pelotenses, eram tratados por seus proprietários: “Nas charqueadas os negros são tratados com muito rigor. O senhor Chaves [Antônio José Gonçalves Chaves] é considerado um dos charqueadores mais humanos, no entanto ele e sua mulher só falam a seus escravos com extrema severidade, e estes parecem tremer diante dos seus patrões”. Conforme Agostinho Dalla Vecchia, o trabalho escravo era cercado de violência e brutalidade, permeadas pela sistemática vigilância e repressão: 

A generalizada agressão física é a face exterior da extrema violência com que era tratada a pessoa do escravo. O mito de que a escravidão no Rio Grande do Sul foi mais branda e suave foi um mecanismo ideológico para encobrir uma situação marcada por atitudes que reclamam justiça. (13)


 3.1 – As faces da resistência ao escravismo


Fugiu hoje a escrava crioula de nome Izabel, cor preta, e pintando já os primeiros cabelos brancos, levou vestido de lanzinha já bastante usado e bata branca, esta foi escrava de Ignácio Francisco da Costa, de Pelotas, por isso se previne aos Senhores Comandantes dos vapores daquela carreira, assim como se protesta contra quem a tiver acoutado (14)
Frente a tantas modalidades de brutalização institucionalizadas pela sociedade senhorial, a resistência ao escravismo esteve presente de diferentes formas entre a população escrava: fugas, agressão ou assassinato de proprietários, suicídio e formação de quilombos. Resistências que levaram os proprietários e os órgãos legais de repressão à aplicação sistemática de castigos físicos, prisões e até execuções públicas de escravos. Jornais da cidade do Rio Grande na segunda metade do século 19 estão repletos de anúncios, pagos pelos senhores, sobre fugas de escravos. As fugas eram comuns. Existiram  quilombos em Pelotas, em São José do Norte, e inclusive nas imediações de Rio Grande, no interior da Ilha dos Marinheiros, o Quilombo do Negro Lucas. Nesse quilombo abrigaram-se vários negros fugitivos durante mais de dez anos. Conforme o jornal O Observador (15) de 9 de janeiro de 1833, o líder do grupo chamava-se Lucas e ocupava uma casa no meio da mata que havia na Ilha: “armado de espingarda, espada e faca, saía de vez em quando a passear pela Ilha, ameaçando os moradores brancos, a quem se tornava ainda mais terrível pela grande proteção que tinha dos pretos e pardos forros, que ali residiam...”. Acusado de ter matado o filho de um delegado, o negro Lucas foi morto numa armadilha feita por quatro integrantes da Guarda Nacional e um delegado. A emboscada ocorreu quando Lucas foi fazer uma visita na casa de um negro da ilha junto com dois companheiros e uma negra, sendo surpreendido pela força policial:
No mesmo instante o negro recuou, pôs o joelho em terra, e com a maior rapidez disparou a espingarda para dentro da casa, de cujo tiro pouco faltou que matasse um dos Guardas Nacionais, avançando depois sobre eles de espada, e ao mesmo tempo os outros dois de lança: os Guardas Nacionais, vendo-se em iminente perigo, um deles disparou sobre eles um tiro, do qual caiu morto Lucas, pondo-se os outros dois em apressada fuga. 

 

Na seqüência da diligência policial foi encontrado o acampamento com uma casa com várias peças, além de couros de boi, assim descrito pelo jornal: “muita carne, graxa, sebo, panelas de ferro, chocolateiras, garrafas, frascos, garrafões, uma lança, grande porção de lenha cortada e amarrada, e muitas provisões; tendo–se ali evadido cinco pretos e quatro pretas, que estavam debaixo das ordens do tal Lucas...”. A narração da imprensa registra uma suposta legitima defesa da força policial e não a execução do quilombola que era acusado da morte de sete pessoas.  A classe senhorial da Vila do Rio Grande respirou aliviada. Porém, a resistência ao escravismo tornou-se intensa durante o II Império Brasileiro, seja pela estratégia da resistência negra ou pelos movimentos abolicionistas. A imprensa da cidade do Rio Grande registrou centenas de fugas de escravos desde a década de 1850 até a abolição da escravatura em 1888. A seguir temos alguns exemplos destes anúncios.

O Barão de Piratini dá quatrocentos mil réis a quem capturar e vier entregar-lhe na cidade de Pelotas o crioulo Zacharias, seu escravo, que fugiu na noite de 20 de agosto deste corrente ano, o qual é de estatura regular e com 25 anos de idade. Tem barba cerrada e com espinhas, é retinto e a cabeça pontuda para trás; no rosto tem um pequeno sinal de queimadura; as orelhas pequenas, fala bem e tem muita vivacidade; é bolieiro e bom campeiro. Levou uns arreios velhos e uma parelha de cavalos malacaras bragados, (...) também levou roupa consigo: dois ponches, uma japoneta de pano azul, um jaleco preto de seda, uma calça de cachemira, cor clara, além de outras seis camisas finas, um par de botins novos de couro, etc. É de supor que tenha fugido em companhia do pardo Demétrio, escravo de D. Clara Maria da Silva e Cunha, que também fugia na mesma noite, talvez com o projeto de irem para o Estado Oriental. (16)


 Fugiu no dia 31/01 das 5 para as 6 horas da tarde da casa de seus senhores Antônio José Martins de Castro e C., o seu escravo de nome Manuel, cor fula que passa por mulato, usa barba e bigode, dentes ralos, fala descansada, as pernas um pouco tortas para dentro, pés descarnados, inculca-se forro, levou vestido camisa de riscado e calça de algodão mescla, chapéu baixo e branco muito usado. Quem o capturar e levar em casa de seus senhores será gratificado. Assim como protesta- se com todo o rigor da lei contra quem o tiver acoutado (17)


 Desapareceu domingo seis do corrente, o crioulo João, de 20 anos de idade, sem barba, bastante retinto, trajando de preto. É escravo de Antônio José Martins de Castro e costuma intitular-se forro, usando para isso de um nome suposto. Gratifica-se a quem o apreender, e protesta- se contra quem o acoutar. (18)



Ao buscar a fuga, os escravos tentavam cruzar a fronteira com o Uruguai para terem o estatuto de homens livres. A atenção dos proprietários e das autoridades estava voltada a impedir esse deslocamento utilizando o capitão-do-mato ou forças policiais para prenderem o escravo fujão. Além disso, ameaçava-se com a força da lei, inclusive a prisão, aqueles que dessem proteção (acoutar) ou passassem a usar a mão-de-obra do escravo para seu proveito. Fugas em Pelotas, às vezes também eram publicadas em jornais de Rio Grande para impedir que o escravo passasse por forro (livre) e vivesse clandestinamente em alguma atividade de trabalho urbano ou até fugisse pelo porto do Rio Grande para outra cidade da Província.

3.2 – Outras faces da resistência

Na maioria das vezes, o escravo podia não ter claro que seu ato significava um grito de rebeldia contra uma situação que lhe era insuportável. Para o senhor, porém, isso ficava claro. Essa tríade, o ato de sangue contra o amo, seu feitor ou sua família; a fuga e o suicídio foi eterna preocupação do mundo dos senhores, pois, em todos os casos, o senhor, ou a sua propriedade, eram duramente golpeados. (19)

Múltiplas foram as faces da resistência à escravidão. O suicídio do escravo foi um ato comum ao longo do período escravista no Brasil. Maus tratos, desespero, depressão, ódio ou expectativa de romper com o vínculo sádico de sujeição ao senhor levaram a esta modalidade de ação que representava uma perda financeira e instabilidade psicológica da base escravocrata para o senhor. O jornal Echo do Sul do dia 18 de janeiro de 1862 registrou uma dessas situações que chocava a sociedade escravista

Suicídio. Apareceu na manhã de ontem enforcado em casa do senhor Domingo José da Silva Farias, comerciante desta praça, um escravo que exercia o mister de cozinheiro. Ignoramos o motivo que levou esse infeliz a tentar contra a própria existência, porque nos consta que, além de ter ótimo tratamento, saíra nessa manhã satisfeitíssimo da casa de seu senhor, fez as compras de comestíveis de que fora incumbido e no seu regresso cometeu o delito que as leis divinas e filosóficas o condenam...(20).

Outras vezes, o suicídio revestia-se de um ato de violência contra a vida de seu algoz e familiares. Muitas vezes, antes do suicídio o escravo expressava o seu ódio contra familiares ou o próprio proprietário. É o caso deste episódio:
 
Tentativa de assassinato e suicídio. Ontem de manhã deu-se uma cena de horror nesta cidade, numa casa à rua do Carmo, do capitão de navio mercante Antônio E. da Rocha. Mandando a dona da casa dizer a um escravo que se achava descascando marmelos que andasse com o seu trabalho, este enfureceu-se e deu uma facada na preta que lhe levara o recado, tentando depois ferir uma criança e em seguida a sua própria senhora. Não podendo executar o seu nefando propósito por haver a senhora com a criança fugido para a rua, o monstro suicidou-se com uma facada no peito e um golpe fundo no pescoço. (21)

A imprensa noticiava os casos sem considerar a essência sádica do escravismo e lançando o peso dos atos ao desatino ou a doenças desconhecidas que o escravo deveria portar para lançar mão destes atos de violência. Conforme José Alípio Goulart, no livro Da fuga ao suicídio, tirar a própria vida foi o mais trágico recurso de que se valeu o negro escravo para fugir aos rigores do regime que o oprimia – excesso de trabalho, maus tratos, humilhações e, em muitos casos, para eliminar a saudade da pátria distante, para sempre fisicamente perdida, à qual só tornaria a voltar graças ao processo de ressurreição, como acreditava. Além de constituir a abreviação dos sofrimentos físicos e morais que o atormentavam, o negro via no suicídio, por igual passo, certa modalidade de vingança contra o detestado senhor. Em relação aos homicídios a documentação apresenta algumas execuções de escravos em espaço público por terem assassinado ou agredido seus senhores. A execução se dava por enforcamento em praça pública (na Praça dos Enforcados ou atual Praça Barão de São José do Norte), num ritual de grande participação popular que fez parte do cotidiano da cidade do Rio Grande até a década de 1850, quando D. Pedro II não autorizou mais a pena de morte no Brasil apesar de ela persistir até o final do Império. Por longo período os próprios senhores exerciam a justiça contra a rebeldia dos escravos, prerrogativa que passa, em termos formais, ao controle estatal. Conforme Perdigão Malheiro (A escravidão no Brasil), a legislação enunciava: 

 Serão punidos com a pena de morte os escravos ou escravas, que matarem por qualquer maneira que seja, propinarem veneno, ferirem gravemente, ou fizerem qualquer outra grave ofensa física, a seu senhor, a sua mulher, a descendentes ou ascendentes que em sua companhia morarem, a administrador, feitor, e as suas mulheres que com eles viverem.




                                                                         REFERÊNCIAS


10  Diario do Rio Grande. Rio Grande, 05 mar. 1850. 

11 MAESTRI FILHO, Mário. O escravo no Rio Grande do Sul. Caxias do Sul: Edusc,1984.

12  COSTA, Emília Viotti da. Da senzala à colônia. 3. ed. São Paulo: Brasiliense, 1989. 

13  VECCHIA, Agostinho Dalla. Memórias do cativeiro e transição Estudos Ibero- Americanos. Porto Alegre: PUCRS, v. 16, n. 1-2, p. 331, 1990.

14  Diario do Rio Grande. Rio Grande, 25 nov. 1878.

15  O Observador. Rio Grande, 9 jan. 1833.

16  Echo do Sul. Rio Grande: 11 set. 1861.

17  Diário do Rio Grande. Rio Grande, 02 fev. 1879. 

18  Diário do Rio Grande. Rio Grande, 02 fev. 1879.

19  MAESTRI FILHO, Mário. O escravo no Rio Grande do Sul. Caxias do Sul: Educs, 1984.

20  Echo do Sul. Rio Grande, 18 jan. 1862

21  Echo do Sul. Rio Grande, 28 fev. 1862. 


                                       
                                                  Continua...



 

       


 

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